Este é o segundo texto de uma trilha de conteúdos sobre a administração pública no Brasil. Confira os demais posts: #1 – #2 – #3 – #4
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A História como norteadora
No primeiro texto desta trilha, vimos que o primeiro modelo de administração pública a ser implantado no Brasil foi o patrimonialismo. Discutimos alguns conceitos e práticas inerentes a este modelo, bem como o contexto histórico em que se desenvolveu. Neste segundo texto, vamos tratar do segundo modelo de administração pública: o modelo burocrático. Mas qual a fronteira que separa os dois modelos de administração pública? O que diferencia um modelo de outro? Pois bem, podemos dizer que o cerne desta divisão está na ideia de separação por parte do detentor do poder daquilo que é público em relação ao que é privado. Ou seja, parte-se do pressuposto que aquele que detém o poder não é dono dos bens públicos, e sim responsável legal por eles. Assim, um presidente quando assume o poder não vira dono dos bens do Estado, continua dono de seus próprios bens e o que é do Estado permanece como tal.
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É claro que em teoria isso já passa acontecer a partir da Proclamação da República, porém é apenas mais adiante com a implantação de práticas burocráticas que essa distinção fica mais clara. Vamos detalhar melhor essa ideia a seguir sempre tendo a história como norteadora de nossa discussão.
Falem bem, e falem de mim!
Finalizamos a discussão sobre o modelo patrimonialista na administração pública, quando chega ao fim no Brasil a chamada Primeira República ou República Velha, que vai até 1930, quando Getúlio Vargas assume o poder. Vale destacar que a própria chegada de Getúlio ao poder é um tanto quanto conturbada, tendo em vista que ela não se dá pelas vias democráticas. Revolução ou golpe, o fato é que Getúlio torna-se presidente do Brasil após a destituição de Júlio Prestes, eleito presidente democraticamente, mas impedido de assumir. E se a chegada ao poder não fora democrática, é certo que o governo também ganhara contornos não democráticos: os governadores (interventores) passam a ser indicados pelo Presidente; o Congresso é suspenso; o Poder Executivo, na figura do Presidente, passa a ser soberano; e parte da imprensa contrária ao governo passa a ser censurada, apenas para citar alguns exemplos.
Como prática não democrática do período podemos citar o Decreto-Lei 1.938 de 2 de janeiro de 1940, que dentre outros aspectos taxou a importação de papel feita pela imprensa, bem como submeteu a importação de papel à autorização feita pelo governo por meio do Departamento de Imprensa e Propaganda. Assim, podemos perceber que tais práticas favorecem a manutenção de características patrimonialistas na administração pública brasileira, conforme vimos no post anterior, principalmente por meio do amplo uso de decretos-lei substituindo a atuação legislativa do Congresso: é como se Getúlio fosse o Rei e a “música tocasse” conforme seus mandos e desmandos.
Agora vai… #SQN
Por outro lado, mais especificamente em termos de gestão, temos uma pretensa mudança na forma de conduzir a administração pública. Tal pretensão se concretiza com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP, em 1938, que tinha dentre outros objetivos implementar na administração pública brasileira os princípios da estrutura burocrática. Dentre esses princípios destaca-se a profissionalização dos serviços, seja com o ingresso dos funcionários nos quadros da administração pública por meio de concursos públicos, seja por meio da substituição de critérios políticos por critérios técnicos na condução da máquina pública. Tudo parece ótimo, certo? Pois bem, na prática as coisas não funcionaram bem como se pretendia…
Vai ser assim e deu!
Vamos a um exemplo fictício: o Senhor Burocrata da Silva é Diretor da Gerência de Enrolação do Ministério de Faz de Conta. O Senhor Burocrata decide que a melhor opção para desafogar o trânsito de uma determinada capital é construir mais uma ponte de acesso à cidade. Sem mais justificativas, além das técnicas elaboradas por ele e sua equipe a ponte é construída. Questionado pela imprensa, o Diretor responde que as decisões foram tomadas de acordo com estudos eminentemente técnicos de funcionários altamente especializados e conhecedores do assunto. Nesse exemplo fica claro um traço bastante característico do período em que prevaleceu o modelo burocrático de administração pública: o insulamento burocrático. O próprio nome remete a um isolamento por parte de certos administradores públicos da influência política de outros agentes da sociedade no sentido de debater com estes a melhor decisão em relação a uma determinada ação. No caso da construção da ponte de nosso exemplo, não houve nenhuma audiência pública ou discussão sobre qual a melhor solução para o problema do trânsito, pois para o Senhor Burocrata não há argumentos contra uma decisão eminentemente técnica. Foi por pensarem nesta linha que esses administradores públicos foram denominados de tecnoburocratas.
Em suma, em nome da técnica, esses administradores justificavam suas decisões, tomadas de ação e consequentemente o poder que detinham para tais. Isso acabava prejudicando aspectos fundamentais que hoje nos são muito caros: o interesse público, a participação do cidadão e a democracia (e se o senhor Burocrata decidisse que a melhor ponte do ponto de vista técnico fosse da empreiteira do Senhor Amigo do Burocrata???).
Eu sei, tu não sabes, ele não sabe… Nós sabemos, vós não sabeis, eles não sabem…
O insulamento burocrático se mostrou presente em outros momentos da administração pública, como no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), por ocasião da criação do Conselho de Desenvolvimento para colocar em prática seu Plano de Metas; e durante o Regime Militar (1964-1985) com o fortalecimento da chamada Administração Pública Indireta, que possibilitou a criação de várias agências que não contavam com a participação e o controle da sociedade.
Impressionante como todo mundo se dava tão bem (rsrsrs…)
Outro aspecto que se mostrou presente durante o chamado modelo burocrático da administração pública, também iniciado durante a Era Vargas foi o corporativismo, uma forma de o Estado intermediar os interesses da classe trabalhadora de um lado e da classe empresarial de outro com o objetivo de evitar conflitos. Isso impedia a paralisação das atividades industriais (bom para os empresários!), tão importantes para o desenvolvimento econômico do país (bom para o Estado!) e ao mesmo tempo garantia direitos aos trabalhadores, por meio da legislação trabalhista (bom para os trabalhadores!).
O que precisa ser mencionado, no entanto, é que muitas vezes essa inexistência de conflitos era falsa. Os conflitos existiam sim, porém eles eram reprimidos pelo governo, que perseguia aqueles que não se alinhavam ao espírito corporativista. Com o tempo, a ideia de corporativismo foi se transformando e passou a ser entendida também como uma forma de determinado grupo profissional defender seus próprios interesses. Ou seja, o Estado deixa de ser protagonista e muitas vezes passa a ser visto até mesmo como antagonista, seja pela classe empresarial, seja pela classe dos trabalhadores. Na prática da administração pública, isso vai se configurar muitas vezes em ações ilícitas por parte de alguns funcionários públicos em relação a seus próprios colegas, como: encobrir faltas, arquivar processos de sindicância, fazer vistas grossas por irregularidades cometidas, etc (vai um dedo de silicone para bater o ponto?)
Onde você estiver, não se esqueça de mim…
O clientelismo (lembram dele no primeiro post?) também perdurou durante o modelo burocrático da administração pública. Uma das diferenças é que agora ele se dá dentro de instituições formais, ou seja, muitos daqueles que atuam na máquina estatal passam a se utilizar das facilidades inerentes a seus cargos (acesso a informações, conhecimento dos processos, relacionamentos, etc.) para favorecer certas pessoas ou grupos em troca de manutenção no poder. Samuel Wainer, dono do Jornal Última Hora (UH), fundado na década de 1950, por exemplo, tinha um excelente relacionamento e proximidade com políticos de sua época, incluindo aí ex-presidentes.
Em uma entrevista concedida à jornalista e professora Ana Paula Goulart Ribeiro em 1999, o ex-diretor do referido jornal, Theodoro Barros faz uma narrativa que demonstra bem como essa característica se fazia presente na década de 1960: era enorme o prestígio de Samuel junto aos governantes (“era tão importante quanto um ministro de estado”) e que, como consequência, formava-se em torno dele uma teia de relações de poder baseada em complicados laços de compadrio e vassalagem: “Talvez o único que tivesse tido esse poder fosse o Chateaubriand, o Rei do Brasil. Eu me lembro que, como diretor da UH, eu recebia telefonema do Roberto Silveira pedindo para eu interceder junto ao Samuel, para o Samuel falar com o Jango para recebê-lo. Negócio de louco. Quer dizer o governador do Estado do Rio tinha quer falar com o diretorzinho da UH, para falar com o diretorzão, para falar com o presidente da República”.
Mas não me altere o samba tanto assim…
Durante o Regime Militar, que finaliza na segunda metade da década de 1980, houve uma série de tentativas de se modernizar a administração pública brasileira, como foi o caso da edição do Decreto-Lei nº 200 de 1967, que trata da Reforma Administrativa do Estado, que estabeleceu como princípios fundamentais da Administração Federal: o planejamento, a coordenação, a descentralização, a delegação de competência e o controle. A grande ressalva que se faz em relação à administração pública no período diz respeito ao retrocesso político com a instauração de um regime autoritário de governo, repressão aos adversários e às correntes político-ideológicas contrárias às daqueles que detinham o poder. Por consequência, as ações e medidas durante o Regime Militar traziam à tona, ainda que de forma implícita, muitas características observadas durante a prevalência do modelo patrimonialista de administração pública, quando a vontade do soberano era a lei.
Vimos, portanto, que uma série de iniciativas foram tomadas pelos governos que se sucederam a partir da República Nova no sentido de modernizar a administração pública brasileira. O objetivo era dar conta das transformações pelas quais o país atravessou ao longo do século XX em busca do desenvolvimento econômico, tendo o Estado como principal indutor. Por esse motivo a estrutura da administração pública cresceu, porém em desalinho com práticas eficientes e eficazes de gestão e principalmente que garantissem o atendimento das demandas dos cidadãos.
Veremos no próximo post que a falta de efetividade do modelo de administração pública burocrática, bem como a constatação de que não dava conta de atender aos anseios da população exigiu um “novo modelo”, que discutiremos no próximo post. Até lá!
Fonte de conteúdo e sugestão de leitura:
NUNES, Edson. A Gramática Política do Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. 3. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Brasília, DF: ENAP. 2003.