Guerra Civil espanhola: o ensaio da Segunda Guerra Mundial

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Entre 1936 e 1939, a Espanha esteve dividida em um dos conflitos internos mais sangrentos do século XX. O país foi usado como campo de testes para a indústria bélica e antecipou o enfrentamento entre democracia e fascismo da Segunda Guerra Mundial. Neste texto, a Politize! abordará as causas, as fases e os desdobramentos da Guerra Civil espanhola, que serviu de ensaio para o maior conflito armado da História – até o momento.

Antecedentes da Guerra Civil espanhola

A Espanha que ingressou no século XX era atrasada em comparação com países industrializados. A maioria de sua população vivia nas áreas rurais, onde imperavam o analfabetismo e o caciquismo – equivalente hispânico ao clientelismo brasileiro no mesmo período. A economia nacional era dependente da agricultura e carecia dos recursos outrora enviados pelas colônias. Os tempos áureos em que a Espanha colonizava parte do mundo haviam ficado no passado.

O atraso espanhol era criticado por inúmeros setores da sociedade que demandavam reformas. No entanto, os ímpetos reformistas eram sufocados pelas forças de reação, em especial a Igreja Católica. Os frequentes conflitos internos desencadeavam pronunciamentos militares e tentativas de golpes de Estado. Desta forma, o histórico de instabilidade havia tornado legítimo o uso da força para assumir o poder.

Neste contexto de ódios políticos enraizados, a Espanha dos anos 1930 passava por profundas transformações. O processo de mudanças, por sua vez, trouxe uma série de contradições entre setores da sociedade e regiões do país. De uma forma resumida, a Guerra Civil espanhola foi provocada pela incapacidade de resolver estas contradições históricas.

Os setores religiosos resistiam de forma tenaz à toda iniciativa reformista de diminuir o poder e a influência da Igreja Católica. Junto aos católicos, os monarquistas acusavam os defensores da República de serem ateus e bolcheviques. Os latifundiários refutavam todas as demandas de reformas agrária e laboral dos trabalhadores rurais. Do mesmo modo, a burguesia industrial resistia às pressões por leis trabalhistas que vinham do combativo operariado, principalmente na Catalunha.

Diferentemente de países como Inglaterra e França, a Espanha não tinha uma burguesia forte capaz de liderar um processo revolucionário moderado. Acuada diante da ascensão da URSS e da atuação de partidos de esquerda e sindicatos, a fraca burguesia orbitava em torno aos setores conservadores da sociedade espanhola.

Igreja Católica, monarquistas, latifundiários e empresários se uniram ao Exército na defesa de uma Espanha unida e administrada de forma centralizada por Madri. Ao unitarismo madrilenho, os reformistas opunham uma administração que concedesse maior autonomia para a Catalunha e o País Basco. Impactados pela perda de sua última colônia em 1898 (Cuba), os militares espanhóis voltaram-se para a defesa intransigente da unidade da Espanha. Qualquer tipo de aceno aos regionalismos era visto como um atentado à integridade nacional.

Desta forma, a Espanha dos anos 1930 estava profundamente dividida. À esquerda se encontravam os grupos reformistas e revolucionários (republicanos, democratas, socialistas, comunistas e anarquistas). Os grupos mais combativos se organizavam em torno de instituições como a Federação Anarquista Ibérica (FAI) e a Confederação Nacional do Trabalho (CNT) e o Partido Operário de Unificação Marxista (POUM). Foi junto ao POUM que o escritor George Orwell lutou na guerra civil junto das Brigadas Internacionais.

Com o início da guerra, muitos empresários foram executados ou fugiram. Diante da fuga dos patrões, os trabalhadores tomaram as fábricas e aplicaram a auto-gestão na administração

Do outro lado, se encontravam os setores resistentes às demandas de reforma, inclusive os que defendiam a volta da Monarquia. Além da Igreja Católica, dos militares, monarquistas, latifundiários e empresários, as direitas também reuniam grupos fascistas. Dentre estes se encontravam a Falange Espanhola e a Confederação Espanhola de Direitas Autônomas (CEDA).

Entre 1931 e 1933, a República espanhola foi governada pelas esquerdas. O governo promoveu uma série de reformas que atingiram os interesses das direitas. A Constituição de 1931, por exemplo, reconheceu o direito de voto e de divórcio para as mulheres. No entanto, entre 1934 e 1935, as direitas assumiram o poder e reverteram as reformas aprovadas. Aquele biênio ficou marcado pela redução dos salários e o aumento dos preços dos alugueis. Em resposta, grupos da esquerda radical reagiram incendiando igrejas pelo país e realizando greves. Em 1934, mineiros grevistas realizaram a Revolução das Astúrias e foram duramente reprimidos pelo governo.

Durante os anos 1930, inúmeras igrejas e autoridades religiosas foram alvos de ataques por parte de grupos radicais de esquerda.

Naquele cenário explosivo repleto de hostilidades, as esquerdas formalizaram uma coalizão de partidos. Em 1936, as esquerdas unidas na Frente Popular venceram as eleições. Diante da expectativa de a Frente Popular retomar reformas laborais, agrária, educacional e laicas, os grupos de direita articularam um golpe de Estado com parte das Forças Armadas. O movimento começou no dia 18 de julho de 1936, mas não contou com todos os apoios esperados. O golpe tampouco contava a tenaz reação da população, que saiu às ruas para defender a República. Tinha início a guerra civil da Espanha.

Na Catalunha, o início da guerra foi seguido a uma revolução social que possibilitou às mulheres o ingresso nas milícias populares para combater o golpe franquista.

Guerra Civil espanhola: entre democracia e Franquismo

Liderado pelos generais José Sanjurjo e Francisco Franco, o movimento golpista foi exitoso em algumas partes do país. Cidades como Saragoça, Córdoba e Sevilha caíram sob controle dos nacionalistas. Cidades maiores, como Madri, Barcelona e Valência, porém, permaneceram leais ao governo republicano, chefiado naquele momento por Manuel Azaña. Logo nos primeiros dias de conflito, inúmeras execuções ocorreram pelo país. A Guerra Civil espanhola deixou um número até agora incerto de fossas comuns repletas de cadáveres.

Com a morte de Sanjurjo logo no começo do conflito, os nacionalistas ficaram sob ordens do General Francisco Franco. O movimento foi iniciado a partir das Ilhas Canárias e do Marrocos espanhol. Com o auxílio de aviões alemães e italianos, as tropas golpistas foram transportadas para o Sul da península ibérica. O bando nacionalista avançou a partir do Sul e do Oeste da Espanha, alcançando o Norte do país em 1937. Ao controlar a porção Oeste do país, Franco conseguiu controlar a fronteira com Portugal, de onde recebia apoio. Desde 1933, o país vizinho era governado pela ditadura de António de Oliveira Salazar, aliado de Franco.

Após terem conquistado várias cidades ao Sul e a Oeste, o bando nacionalista investiu sobre a capital Madri. No entanto, várias ofensivas foram frustradas pela resistência do Exército republicano, auxiliado pelas Brigadas Internacionais. Milhares de cidadãos se voluntariaram para lutar junto aos batalhões internacionais, dentre eles cerca de 40 brasileiros. A resistência popular país afora era estimulada por cartazes, canções de guerra e lemas, como o “Não passarão”.

O lema “Não passarão” se tornou um bordão para movimentos e partidos de esquerda após a guerra civil

Diante do prolongamento do conflito, a guerra gerou um profundo acirramento ideológico. Adolf Hitler e Benito Mussolini viram a oportunidade de usar o conflito para testar novos armamentos e técnicas de combate. A União Soviética, por sua vez, enviou para a Espanha soldados e técnicos. Os soviéticos tinha a missão de estabelecer a ordem nas milícias populares que se organizaram de forma improvisada e faziam uso da guerra de guerrilha contra os franquistas. Embora tenha sido um conflito interno, a Guerra Civil espanhola foi internacionalizada pela presenta de tantos estrangeiros.

A presença de grupos de orientação comunista, socialista e anarquista nas filas republicanas contribuiu para a ocorrência de conflitos dentro do mesmo bando. Enquanto os comunistas priorizavam a vitória no conflito, outros grupos mais radicais acreditavam ser aquele o momento oportuno para fazer uma revolução.

Apesar da ajuda soviética, na prática o governo republicano espanhol lutou sozinho, pois contava unicamente com a solidariedade do México. Adeptos da política de apaziguamento, França e Inglaterra se mantiveram neutras no conflito. Mesma posição adotada pelos Estados Unidos.

A população espanhola como um todo sentiu os efeitos do conflito, mas eles foram mais severos no lado controlado pelos republicanos. Devido ao isolamento, as áreas legalistas sofreram com a inflação, o racionamento e a escassez de alimentos, além dos bombardeios alemães.

Diante deste isolamento e enfrentando um inimigo armado por Hitler e Mussolini, a República espanhola foi perdendo territórios entre 1937 e 1938. No verão de 1937, os nacionalistas romperam o “cinturão de ferro” republicano ao conquistar Bilbao, Santander e Gijón. No contexto de avanço de Franco em direção ao Norte ocorreu o devastador bombardeio da cidade de Guernica. O bombardeio alemão foi retratado na icônica obra Guernica, de Pablo Picasso.

Obra cubista pintada em 1937 pelo espanhol Pablo Picasso retrata o bombardeio da cidade do mesmo nome, no País Basco.

Ainda em 1937, o bando republicano tentou contra-atacar na célebre Batalha do Ebro, mas teve que bater em retirada. As derrotas nas margens do rio Ebro abriram espaço para que os nacionalistas isolassem a Catalunha em 1938. Após padecer de intensos bombardeios, a cidade de Barcelona caiu nas mãos dos franquistas em 1939.

Naquele mesmo ano, disputas dentro do próprio bando republicano conduziram ao fim do governo constitucional. Cercada e parcialmente destruída por bombardeios, Madri sucumbiu em março de 1939. A cidade já não exercia mais a função de capital da Espanha desde 1937, quando foi transferida para Valência. A nova capital, no entanto, foi tomada por Franco em 30 de março. No dia 1º de abril de 1939, a Guerra Civil espanhola terminou com a vitória do bando nacionalista liderado por Francisco Franco.

Ilustração da divisão da Espanha durante os anos de Guerra Civil

Desdobramentos da Guerra Civil espanhola: o Franquismo

Franco herdou uma Espanha parcialmente destruída. O conflito deixou um legado de cerca de 500 mil mortos e outros milhares de refugiados. A maioria dos combatentes que conseguiu escapar fugiu para a França cruzando os Pirineus. Milhares destes refugiados foram reunidos em um precário campo de concentração na cidade de Argelès-sur-Mer.

Muitos destes emigrados recorreram a países da América hispânica para recomeçar a vida, como México, Argentina e Chile. O poeta Pablo Neruda, aliás, enviou o navio Winnipeg repleto de refugiados espanhois para o Chile enquanto cônsul na Espanha. A história destes embarcados foi retratada pela escritora Isabel Allende em livros como “O vento sabe meu nome” e “Longa pétala de mar“.

Aos que ficaram na Espanha após o conflito, não restaram muitas alternativas. Os combatentes republicanos que não foram executados e lançados em covas comuns, permaneceram anos em prisões. Outros optaram por se esconder em sótãos, paredes falsas e porões. Estas pessoas ficaram conhecidas como “topos” (toupeiras) e inspiraram o filme Trincheira Infinita.

As celas abrigaram prisioneiros de guerra do bando franquista até a queda de Barcelona. A partir de 1939, o castelo passou a abrigar prisioneiros do bando republicano.

Com o término da guerra, o General Francisco Franco impôs uma ditadura inspirada nos governos totalitários do Entre Guerras. Porém, seu regime estava mais próximo do Salazarismo lusitano, pois apostava na despolitização da população após três anos de conflito interno.

Além da perseguição a opositores e a aversão ao comunismo, o Franquismo também esteve marcado pelo culto ao líder e pelo forte apego ao Catolicismo

Além da perseguição a opositores, da censura a meios de comunicação e as propagandas de culto ao líder, o Franquismo impôs uma administração centralizada a todo o país. Os regionalismos foram silenciados e o idioma castelhano imposto. De uma certa forma, a vitória de Franco na Guerra Civil espanhola representou a vitória de Madri sobre os regionalismos catalão e basco.

O Franquismo, aliás, conseguiu sobreviver ao pós-Segunda Guerra. Embora fosse aliado de Hitler e Mussolini, Franco declarou neutralidade durante a contenda. E, no pós-guerra, seu governo ditatorial conservador era preferível pelos EUA no cenário da Guerra Fria. Desta forma, ainda que ditatorial e arbitrário, seu regime sobreviveu até a morte do “caudilho”, em 1975. Somente com o falecimento do Generalísimo que a Espanha pôde dar início a um questionável processo de redemocratização.

Para muitos, as feridas da Guerra Civil espanhola ainda não cicatrizaram. Ainda há famílias que aguardam pela localização dos corpos de seus entes. O conflito continua dividindo e polarizando o país, principalmente com a ascensão do Vox. O partido de extrema-direita exalta o Franquismo e a figura de Francisco Franco em suas manifestações. Além disso, as tensões regionais seguem vigentes, com movimentos pela independência da Catalunha e do País Basco ainda ativos.

E você, sabia que o conflito interno da Espanha havia mobilizado tanta gente de fora do país? O que você pensa a respeito do efeito de uma guerra civil em uma sociedade?

Referências

BUADES, Josep M. Os espanhois. São Paulo: Contexo, 2013.

GIBSON, Ian. Vida, pasión y muerte de Federico García Lorca, 1898-1936. Barcelona: DeBolsillo, 2006.

ORWELL, George. Homenagem à Catalunha. A luta antifascista na Guerra Civil espanhola. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

PHILLIPS, William; PHILLIPS, Carla. História concisa da Espanha. São Paulo: Edipro, 2015.

PRESTON, Paul. La Guerra Civil española. Barcelona: Debate, 2020.

TREMLET, Giles. Las Brigadas Internacionales. Fascismo, libertad y la Guerra Civil española. Barcelona: Debate, 2020.

VILAR, Pierre. A Guerra da Espanha. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

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Conteúdo escrito por:
Mochileiro, professor e Mestre em História pela UFRGS. Apaixonado por Filosofia, Política, História e Fotografia. Defensor da Educação Pública, ministra aulas de História, Filosofia e Sociologia na Educação Básica e de Atualidades para Concursos Públicos.

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09 set. 2024

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