“Sejam realistas, exijam o impossível!” O ano de 1968 foi marcado por frases de impacto como essa, por conta de uma série de eventos: a ofensiva dos vietcongues em janeiro; as manifestações dos setores operários e estudantis franceses em maio e a brasileira “Marcha dos 100 mil”, em junho. Este texto pretende celebrar os 50 anos do ano de 1968, mostrando o que torna essa data tão especial em nossa atualidade, além de evidenciar quais os impactos históricos causados no mundo há 50 anos (e até hoje!). E o melhor: vamos ver como isso se deu através de filmes?
Leia mais: Sabia que temos uma categoria específica só para posts relacionando política a livros, filmes e séries? É a Politeca, vem ver!
Uma história intensa: contextualizando o ano de 1968
O ano de 1968 pode ser compreendido como o ápice de uma série de transformações sociais, políticas, econômicas e culturais que estavam fervilhando na década de 1960. Um primeiro pano de fundo era a Guerra do Vietnã, promovida pelos Estados Unidos contra o governo comunista de Ho Chi Min, que havia chegado ao poder em 1959 e era apoiado pela China comunista de Mao Tsé Tung.
A Guerra do Vietnã é um exemplo da lógica militarista que contaminou a diplomacia mundial ao longo da Guerra Fria. De um lado, os vietnamitas do Norte lutavam pela sua autonomia e, de outro, os vietnamitas do Sul que assumiram a bandeira do combate ao comunismo em seu território nacional. Entre eles, os aparelhos de televisão ocidentais que cada vez mais alcançavam o protagonismo da vida doméstica das classes médias. Aos olhos norte-americanos, gradativamente os noticiários da guerra se tornavam cotidianos e se somavam aos ritmos diários das notícias de grande impacto, tal como o assassinato do presidente John Kennedy em 1963.
Quanto à França, intelectuais como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Michel Foucault se engajavam nas questões públicas. Eles estiveram envolvidos em eventos como a Guerra de Independência da Argélia em 1962, os debates sobre os excessos do sistema carcerário francês e as mobilizações operárias e estudantis que, enfim, travaram a cidade de Paris em 1968.
Em relação ao Brasil, o país assistia à progressiva repressão da Ditadura Civil-Militar que, desde o golpe de 1964, restringia direitos, censurava obras culturais e cassava direitos políticos daqueles considerados como “inimigos internos”. Como se pode notar, a lógica militarista não regia somente as diplomacias internacionais, mas transbordava também para as relações cotidianas.
Feita esta introdução, o nosso texto segue a cronologia de 1968 através de três eventos: a “Ofensiva do Tet”, iniciada em janeiro e que, como dizem os norte-americanos, marcou um turning point – isto é, um ponto de virada – na Guerra do Vietnã. Depois, seguimos para o famoso “Maio de 1968”, tão celebrado pelos revolucionários e tão contestado pelos conservadores – e logo vamos entender os porquês de tal polêmica.
Por fim, chegaremos ao mês de junho de 1968, mês da morte do estudante Edson Luís no restaurante Calabouço, na zona sul carioca. Um evento que serviu de estopim para a chamada Marcha dos Cem mil, uma das muitas manifestações de setores civis contra a Ditadura Civil-Militar brasileira. Já antecipamos os filmes que nos servem de termômetros históricos para que você tome nota: “Corações e Mentes”, de Peter Davis, “Os Sonhadores”, de Bernardo Bertolucci e “O dia que durou 21 anos”, de Camilo Tavares. Vamos lá?!
Leia mais: Ditadura Militar no Brasil
Corações e mentes
O cineasta francês Jean-Luc Godard afirma que as melhores ficções são aquelas que se aproximam do documentário e vice-versa. Em outras palavras, os melhores filmes de ficção são aqueles capazes de provocar o que chamamos de “epistemofilia”: uma vontade de conhecimento, ou seja, uma vontade de conhecer melhor o mundo e a realidade em seu entorno. Da mesma forma, os melhores documentários são aqueles capazes de lançar luzes sobre eventos históricos de modo que sejam apresentados como algo espetacular, como uma coisa que exige atenção e nos faz querer conhecer mais a respeito de pessoas, suas experiências e visões de mundo.
Corações e mentes é um desses filmes. Premiado como melhor documentário no Oscar de 1975, reúne uma série de imagens televisivas e filmagens amadoras do cotidiano da Guerra do Vietnã junto com entrevistas de políticos, militares de alto comando e mariners, os soldados rasos responsáveis pelo front da guerra.
A justaposição da montagem do filme expõe as contradições entre “a guerra planejada” e a “guerra combatida”: ao mesmo tempo em que ouvimos o Secretário de Estado dos EUA, Robert McNamara, arquiteto da Guerra, dizer que seria preciso conquistar as “mentes e corações” da população vietnamita para a causa estadunidense de combate ao comunismo.
Cenas fortes como as de um ataque aéreo de napalm sobre as comunidades agrícolas do país também compõem o filme. Detalhe: o napalm era um agente químico capaz de provocar queimaduras a mais de três mil graus celsius, e foi largamente utilizado pelos EUA para desfolhar as florestas tropicais para que, dos helicópteros, se identificassem os inimigos comunistas.
Quanto aos testemunhos dos soldados norte-americanos que estiveram em combate nas florestas, os seus relatos são feitos de raivas, hesitações, interditos e, algumas vezes, de fascínio pelo aparato militar norte-americano. Fascínio este que o filme faz questão de relativizar como se dialogasse com a visão de mundo do filósofo Walter Benjamin, para quem “toda manifestação de cultura também é um documento de barbárie”. Em outras palavras, o filme se esforça em relativizar a ideia de avanço tecnológico.
Veja o trailer de Corações e mentes!
Os sonhadores
Realizado em 2003, o filme de Bernardo Bertolucci revela as transformações nos hábitos e costumes franceses. Adaptado do livro de Gilbert Adair, originalmente intitulado “Os sagrados inocentes”, o filme acompanha um jovem norte-americano que está de passagem por Paris e cuja viagem coincide com os eventos de Maio de 1968, que você pode conhecer melhor nesta série de videorreportagens. Mas claro, sendo Bertolucci, o filme também acaba sendo uma grande homenagem à própria cinefilia: a paixão pelo cinema leva o jovem Mathew para a Cinemateca Francesa, um templo onde ele acaba encontrando os gêmeos Isabelle e Theo, que apresentam as tensões geracionais através de um convívio irreverente com seus pais. Isto é, a todo instante, a juventude deles se propõe como uma tomada de atitude, como algo necessariamente contestatório, um instrumento de ruptura de tradições e padrões sociais.
Além disso, a narrativa é permeada por cenas de muitos outros filmes, o que demonstra a força do cinema na contracultura da época. Traduzindo: a contracultura era tudo aquilo que não estava na televisão, nos jornais impressos e radiofônicos e, portanto, valia como um gatilho detonador de novos comportamentos. O culto ao cinema, a chamada cinefilia, servia como um espelho em que se refletia as novas experiências ligadas ao erotismo, às drogas, às artes, enfim às diferentes formas de amor à vida.
Aliás, a música também acompanha o cotidiano deste trio de amigos e vai servir como um mecanismo que coloca a Guerra do Vietnã em debate entre eles – quem seria mais revolucionário: os Stones ou os Beatles? E quanto à guitarra elétrica, quem de fato deu dignidade a ela: Eric Clapton ou Jimmy Hendrix?
Como se pode notar, debater cinema, literatura, música, enfim arte e cultura, era também assumir um compromisso ético e político que aquela realidade impunha aos jovens daquele momento – e que percorre toda a trama fílmica.
Veja o trailer de Os sonhadores!
O dia que durou 21 anos
O filme que nos informa sobre o 1968 brasileiro tem um título poético: O dia que durou vinte e um anos. Produzido em 2012 por Camilo Tavares – filho do jornalista Flávio Tavares, um dos muitos intelectuais perseguidos pela ditadura -, o filme informa que aqueles que acreditaram que o golpe civil-militar teria vida curta, erraram. Em realidade, desde cedo, os setores envolvidos no golpe contaram com o apoio dos EUA tendo em vista a instalação de um regime militar que contaria com o uso sistemático da violência para coagir os diferentes setores da sociedade civil.
Um detalhe importante para seguir adiante: o golpe de 1964 não foi somente militar, mas também civil: a ruptura política contou com apoio de políticos influentes como JK, Carlos Lacerda e de instituições como as Organizações Globo, a Volkswagen, a Ultragaz entre outras. E este é um dos temas do filme, junto com uma novidade: Tavares traz as documentações que comprovam o envolvimento dos Estados Unidos no golpe civil-militar de 1964. A razão disso é que o realizador estava em diálogo com os andamentos da nossa Comissão Nacional da Verdade, estabelecida naquele ano de 2012 e que funcionou até 2014.
O seu propósito era revelar as violações de Direitos Humanos ocorridas no Brasil durante o regime ditatorial, mas ao contrário das comissões chilena, argentina e uruguaia, a brasileira só teria poder investigativo e não punitivo. Traduzindo: a nossa Comissão foi composta por intelectuais e juristas que tiveram como objetivo a atualização das memórias sociais daquele período, e não o julgamento dos agentes envolvidos no uso da violência como recurso de governo.
Todos estes aspectos estão contidos no filme que percorre a história brasileira desde a renúncia do ex-presidente Jânio Quadros, em 1961, até o sequestro do embaixador Charles Elbrick, em setembro de 1969. Nesse sentido, o filme mostra como os eventos internacionais que citamos na introdução também contaminaram a vida cotidiana brasileira. Enfim, para muitas pessoas, o ano de 1968 fez da vida um gesto político, uma realidade diante da qual era preciso se renovar e assumir uma postura crítica e engajada.
Leia mais: Tortura no Brasil e Tortura no Mundo.
Veja o trailer de O dia que durou 21 anos!
O que resta após 50 anos de 1968?
Atualmente, mesmo completando 50 anos de 1968, ainda se discute a liderança global norte-americana como uma nação beligerante. Mas fica uma reflexão: a guerra precisa realmente ser uma continuação das atividades políticas? Os Governos Bush (2001-2009) e Trump (2017-2021) demonstram como as atividades militares ainda mexem com o imaginário de setores da população norte-americana.
E o que dizer de nosso debate contemporâneo sobre comportamento de polarização? Isso é o que mais engaja a nossa sociedade nas redes sociais! Discutir “ser de direita” ou “de esquerda”, sexualidade, gênero, religião, o papel social do aborto, a descriminalização ou a legalização das drogas… Enfim, isso que chamamos de “pauta de costumes” se tornou cada vez mais politizado desde 1968 – e meio século depois, essas discussões ainda fazem muito sentido!
Perceba que o debate dessas questões nem sempre foi tão natural assim. Afinal, sexualidade e gênero é uma coisa que se resolve em família ou em escolas? Cabe aos pais e mães ou ao Estado disciplinar ou mesmo legislar sobre as confissões religiosas pessoais? E você, já sabe como se posicionar diante destes temas? Para isso, podemos contar com os filmes como janelas através das quais encaramos os nossos erros e acertos do passado em busca das garantias democráticas no futuro!
Conseguiu entender a importância dos 50 anos de 1968? Gostou das nossas sugestões de filmes? Nos avise se você já assistiu e, se tiver outras sugestões, deixe nos comentários!
Aviso: mande um e-mail para contato@politize.com.br se os anúncios do portal estão te atrapalhando na experiência de educação política. 🙂
Referências do texto:
VENTURA, Zuenir. 1968, o ano que não acabou. SP: Objetiva, 2013
NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. SP: Papirus, 1995
HOBSBAWM, E. A Era dos extremos. SP: Cia das Letras, 1995
https://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/tag/1968/
Entrevista com Camilo Tavares: https://www.youtube.com/watch?