Milícias no Brasil: como funcionam?

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Este texto foi atualizado em: 06 de novembro de 2024.

Se anos atrás, no lançamento dos filmes Tropa de Elite 1 e 2, o Brasil se indignava com o poder político nas milícias do estado do Rio de Janeiro, imagina quando descobriram o quão antigos são esses grupos no país – e que o crime de formar uma milícia foi legislado somente em 2012. 

Durante décadas, diversos bairros ou comunidades conviveram com moradores, policiais, bombeiros e até mesmo agentes penitenciários que buscavam garantir a segurança pública, fossem remunerados para isso ou não.

Como um grupo criado para oferecer serviço de segurança privada, se tornou a imagem da violência e da extorsão pelas cidades? Neste texto, você encontrará a interpretação da lei sobre o assunto e como as milícias entraram na política brasileira. Além disso, contaremos como as milícias se relacionam ao caso Marielle.

Veja também nosso vídeo sobre o que é a milícia!

O que é uma milícia?

No Brasil, a milícia é um grupo de pessoas que realiza patrulhas contra narcotraficantes, geralmente em regiões onde o Estado não está presente com serviços básicos à população – como a própria segurança pública

Há quem diga que as milícias são uma justiça paralela, que supre o abandono social de um Estado mal-sucedido em políticas públicas.

Portanto, podemos definir milícias como organizações formadas por agentes de segurança, como policiais militares, civis, penais ou bombeiros, que surgem com o objetivo de oferecer serviço de segurança privada em lugares que o Estado não atende as demandas de segurança pública.

Embora essa interpretação tenha conexão com a realidade brasileira, o significado de milícia, hoje, é bem diferente no seu contexto de origem. A palavra militia é formada pelas raízes latinas miles (soldado) e itia (estado, condição ou atividade), sugerindo apenas um serviço militar. 

Grupos de homens armados em prol da defesa de algo está presente na história mundial desde a Idade Média. Em alguns países, no início do século passado, as reservas do Exército e mesmo a própria Guarda Nacional eram chamadas de milícias, como na Austrália e no Canadá. 

Na União Soviética e em Cuba, milícias foram compostas também por mulheres e jovens. Já na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), existiam milícias contra as invasões de outros países, mas também haviam as milícias paramilitares que serviam aos governos ocupados.

Veja também nosso vídeo sobre a história das milícias no Brasil!

Como surgiu a milícia no Brasil?

Nas décadas de 1960, 1970 e 1980, por exemplo, cidades como Recife, Salvador e Rio de Janeiro tinham grupos de extermínio, que utilizavam meios ilegais para resolver conflitos, tendo seus serviços armados solicitados por moradores. 

Os chamados justiceiros, exterminadores ou linchadores mudaram de nome ao longo dos anos, mas eram vistos como soluções alternativas às falhas nas seguranças públicas dos governos estadual e federal. Desse modo, ao substituírem o Estado, as milícias adquiriram novas funções e novas representações, como:

  • Cobrança da taxa de proteção, marcando com símbolos as casas dos moradores que a pagam e, assim, oferecendo proteção contra quaisquer crimes, seja um roubo ou a venda de drogas;
  • Exploração clandestina ao cobrar e centralizar serviços de gás, televisão a cabo, máquinas caça-níqueis, cocos verdes, crédito pessoal, imóveis e transporte alternativo;
  • Oposição aos narcotraficantes e ao domínio territorial de facções;
  • Segurança alternativa provida por policiais, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares, fora de serviço ou ativos, como integrantes da milícia.

Em resumo, o serviço militar provido pela milícia funciona na base da oferta de segurança e de serviços no lugar do Estado ou de empresas privadas, de modo que a região, comunidade ou favela se torne dependente da milícia. 

Como isso acontece? 

Basicamente, quem não paga, não está seguro, podendo até ser morto como um recado aos demais moradores que tenham oposição a essa dinâmica. Se em uma época a milícia era querida pela população, hoje a visão já é diferente.

Essas vivências foram retratadas também na ficção do filme nacional Tropa de Elite, inspirado na Baixada Fluminense e em favelas da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Com os filmes e o caso de jornalistas torturados por milicianos, o país começou a conhecer casos de milicianos políticos e de políticos envolvidos com milícias. Vamos entender um pouco mais dessa relação?

Veja também: O PCC e as facções criminosas

Milícias e políticos: o que tem a ver?

Em 2008, a Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, indiciou mais de 250 pessoas envolvidas em atos ilícitos, principalmente por meio da extorsão de comunidades vulneráveis e de baixa renda, mas também por curral eleitoral.

Ao garantirem a segurança e a entrada de serviços às favelas, por exemplo, os líderes das milícias ganharam a afeição da população e, por muitos anos, foram elogiados por autoridades públicas. Quando alguns deles se candidataram e foram eleitos, conquistando cargos políticos como vereadores ou deputados, a separação entre “polícia alternativa” e Estado tornou-se menos distante. Além disso, tinham o poder de proibir campanhas eleitorais dos opositores, projetando-se como heróis da justiça e os outros, como vilões.

Exemplos disso foram o vereador Jerônimo Guimarães (PMDB), da milícia chamada “Liga da Justiça”, e o deputado estadual Natalino Guimarães (ex-DEM), atuante na comunidade Rio das Pedras no Rio de Janeiro, condenados a dez anos de prisão por formação de quadrilha. 

Apesar do resultado expressivo da CPI das Milícias, com mais de 1.100 pessoas presas – até 2008, foram 219 policiais militares, um deputado estadual e 791 civis -, a fonte de renda das milícias ainda não foi extinguida e, assim, continuam a existir.

Isso acontece porque, embora estejam prendendo os milicianos desde então, o acesso a luz, saneamento básico, água, internet e demais serviços públicos ou privados ainda não se estabeleceu nessas zonas, muitas vezes consideradas de risco.

Nesse sentido, é importante saber que não há somente grupos paramilitares de extorsão, mas também grupos de pessoas agindo como se fossem uma polícia ou guarda civil. Desse modo, milícia e política se confundem na disputa de poder e domínio por uma região, seja na corrida por uma eleição, seja no dinheiro que circula nos serviços taxados pelo grupo.

Quando o assunto ganhou destaque nos jornais, no cinema e na boca do povo, o Código Penal ainda não previa a existência de milícias no sentido criminal, então os julgamentos se enquadravam em formação de quadrilha. Em setembro de 2012, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 12.720, que tipifica como crime a formação de milícias ou de organização paramilitar.

O caso Marielle Franco

Imagem: Tomaz Silva/Ag. Brasil.

Em 14 de março de 2018, Marielle Franco (vereadora eleita pelo PSOL-RJ) e seu motorista, Anderson Gomes, foram executados na cidade do Rio de Janeiro.

Em 2024, seis anos depois do crime, a motivação central do assassinato foi revelada: a regularização de territórios no Rio de Janeiro

Ao longo de toda a investigação, a principal suspeita era de que o crime tenha sido ordenado por milícias atuantes no estado. Veja esta declaração de Ricardo Lewandowski, ministro da justiça e segurança pública:

“[…] a motivação básica do assassinato da vereadora Marielle Franco, que se opunha, justamente, a esse grupo, que, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, queria regularizar terras, para usá-las com fins comerciais, enquanto o grupo da vereadora queria usar essas terras para fins sociais, de moradia popular.”

Além disso, Lewandowski citou trechos do relatório da Polícia Federal que destacavam a divergência entre Marielle Franco e o grupo político do vereador Chiquinho Brazão em relação ao Projeto de Lei (PL) 174/2016, que buscava formalizar um condomínio na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

A grilagem de terra para especulação imobiliária e a expansão do controle da milícia pelo Rio, revelam as motivações para o desenvolvimento deste crime.

Em março de 2024, enfim, os mandantes da execução de Marielle Franco foram revelados, evidenciando ainda mais a relação entre políticos e milícias. Foram eles: 

  • Chiquinho Brazão: deputado federal; 
  • Domingos Brazão: conselheiro do Tribunal de Contas estadual; 
  • Rivaldo Barbosa: ex-chefe da Polícia Civil. 

Um dia antes do crime acontecer, o delegado Rivaldo Barbosa havia sido nomeado chefe da Polícia Civil e, no início das investigações, se colocou como uma pessoa de confiança para a família Marielle e prometeu priorizar o andamento das apurações, mas não foi o que aconteceu.

Além disso, em outubro de 2024, o Ronie Lessa e Élcio Queiroz, assassinos de Marielle Franco e Anderson Gomes, foram condenados a 78 anos e 9 meses de prisão e a 59 anos e 8 meses, respectivamente, pelos crimes de:

  • Duplo homicídio triplamente qualificado;
  • Tentativa de homicídio contra Fernanda Chaves, assessora de Marielle que sobreviveu ao atentado;
  • Receptação do carro, um Cobalt prata, clonado, que foi usado no crime.

Além da prisão, ambos deverão pagar pensão para o filho de Anderson, o Arthur, até os seus 24 anos, além de arcar com outros custos como Indenização de R$ 706 mil por dano moral para cada uma das vítimas — Arthur, Ághata, Luyara, Mônica e Fernanda Chaves — e custas do processo.

Leia mais: Quem foi Marielle Franco? Conheça a sua história

O que a legislação diz sobre os crimes da milícia?

De maneira um pouco irônica, a Lei nº 12.720 também busca proteger a paz pública, a segurança e os direitos do cidadão, mas ao invés de tratar as milícias como heróis, entende a formação de milícias privadas como crime. A penalização varia de quatro a oito anos de reclusão. O Código Penal descreve o crime de milícia como:

Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código.

Desde a prática da extorsão às ameaças de morte de opositores, os crimes cometidos por uma milícia estão previstos nos casos em que a organização paramilitar:

  • Seja destinada à prática de crimes previstos na lei de drogas;
  • Seja destinada à prática de genocídio, ou seja, de extermínio de pessoas;
  • Tenha como objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado;
  • Seja destinada à prática de crimes previstos na formação de quadrilhas ou bandos, como o transporte alternativo de vans ou mototáxis e a cobrança de taxa por segurança.

Pela lei, a milícia é uma formação criminosa por se entender como um grupo de quatro ou mais pessoas, com estrutura interna ordenada por divisão de tarefas, que visa obter vantagens por meios ilegais, principalmente por crimes de pena igual ou superior a quatro anos. 

De heroínas à vilãs, as milícias são mais combatidas, mesmo que ainda haja um longo caminho para garantir acesso a serviços básicos à nossa população, evitando, assim, o predomínio delas.

E então, ficou mais fácil de entender como funcionam as milícias no Brasil? Você conhece outros exemplos? Conta para a gente nos comentários!

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Conteúdo escrito por:
Bacharel em Produção Editorial na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ferro, Clarice; Chagas, Inara. Milícias no Brasil: como funcionam?. Politize!, 28 de agosto, 2017
Disponível em: https://www.politize.com.br/milicias-no-brasil-como-funcionam/.
Acesso em: 21 de dez, 2024.

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