Embora sejam cotidianas as notícias acerca de diversos litígios ao redor do mundo, o recurso à guerra é expressamente vedado pelo Direito Internacional. Ainda que sejam admitidas exceções a essa proibição, diversas são as normas que buscam regular os conflitos internacionais, sob o arcabouço do Direito Internacional Humanitário (DIH). Os crimes de guerra incluem diversas condutas proibidas e são alvos de muitos debates e polêmicas. Você sabe o que são e como ocorre a punição de seus violadores? Venha descobrir.
A PROIBIÇÃO DA GUERRA
A Carta da ONU, assinada em São Francisco, deu origem à organização no período do fim da Segunda Guerra Mundial. A organização, que já possui 193 Estados-membros, teria entre seus principais objetivos evitar novas guerras e promover relações amistosas entre os povos.
De fato, alguns autores, como Bardo Fassbender, chegam a defender que a Carta de São Francisco representa uma verdadeira Constituição da Comunidade Internacional. Entretanto, o debate é polêmico e, para não nos aprofundarmos no tema, seria mais fácil apenas afirmarmos que a Carta possui algumas características constitucionais.
De toda forma, a Carta prevê, em seu art. 2º, § 4º, que:
“Todos os membros deverão evitar, em suas relações internacionais, a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com os propósitos das Nações Unidas”.
Percebe-se, portanto, uma proibição formal e extensiva ao recurso à guerra, que inclui até a ameaça ao uso da força. Entretanto, duas são as exceções aceitas a essa proibição, previstas nos artigos 42 e 51 da mesma Carta: a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a legítima defesa.
Leia mais: o Brasil e a dança das cadeiras permanentes na ONU
A POSSIBILIDADE DE USO DA FORÇA
O Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) foi um órgão criado especialmente para tratar de temas relacionados à paz e segurança internacionais. É composto por quinze membros, sendo cinco permanentes, com direito a veto (EUA, China, Rússia, França e Reino Unido). Suas decisões podem incluir o uso da força e obrigar mesmo Estados não membros da ONU.
O exemplo mais evidente da utilização da força pelo CSNU seria a criação de Missões de Paz. O Brasil, por exemplo, liderou a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), encerrada recentemente, desde sua criação em 2004.
Por sua vez, no que se refere à legítima defesa, alguns requisitos devem ser atendidos, de forma a evitar a violação do Direito Internacional. Primeiramente, é necessário que o Conselho de Segurança seja imediatamente informado, permitindo que o órgão tome as providências que considerar pertinentes para colaborar com o fim das hostilidades.
Ademais, Accioly menciona dois princípios básicos que permeiam o DIH como um todo, que devem ser respeitados:
O Princípio da Humanidade exige que sejam tomadas sempre todas as medidas possíveis para reduzir o sofrimento humano, optando-se sempre pelo ataque menos gravoso. Esse princípio justifica a regulação ou mesmo vedação de categorias inteiras de armamentos, como armas químicas, por não ser possível controlar seus destinatários e o sofrimento causado.
O Princípio da Necessidade demanda que cada ataque armado busque sempre uma vantagem militar específica e só seja realizado em última instância, após esgotadas todas as demais opções. Assim, enquanto o ataque a uma estrada ou instalação militar seria justificável, seriam vedados os ataques a escolas ou hospitais.
Por fim, é possível ainda acrescentar um terceiro princípio, mencionado inclusive em relatórios de agências da ONU, como a OCHA (Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários). Assim, o Princípio da Proporcionalidade dita que uma ação militar não deve causar danos colaterais desproporcionais à população e bens civis, em relação à vantagem militar específica obtida.
A critério exemplificativo, a Corte Internacional de Justiça, em Parecer Consultivo de 1996, afirmou que, embora não existissem à época (tratado nesse sentido foi assinado em 2017) normas internacionais que proibissem expressamente o uso de armas nucleares, a utilização de armas dessa natureza seriam, em regra, sempre desproporcionais.
Confira: e se o Brasil desenvolvesse armamento nuclear?
OS CRIMES DE AGRESSÃO E OS CRIMES DE GUERRA
Os elementos analisados até aqui dizem respeito à possibilidade do uso inicial da força nas Relações Internacionais, compondo o que pode ser chamado de um Jus Ad Bellum.
O Jus Ad Bellum, portanto, regula as exceções, vistas acima, à proibição da guerra, definindo quando e sob quais limites um conflito poderia ser iniciado. Sua violação daria origem aos chamados Crimes de Agressão (distintos da agressão entre indivíduos).
Assim, o uso da força que não seja em legítima defesa ou autorizado pelo CSNU, bem como ignorando algum dos princípios analisados, pode gerar a responsabilização internacional por Crime de Agressão, tema de alta relevância no contexto atual, frente à ativação da competência do Tribunal Penal Internacional para seu julgamento.
Por sua vez, os Crimes de Guerra dizem respeito à violação das normas que regulam os conflitos armados em andamento, contidas no Direito Internacional Humanitário. Diferentemente dos Crimes de Agressão, que controlam quando é possível que uma guerra seja iniciada, o DIH trata das condutas dos combatentes em um conflito já iniciado (muitos o chamam de Jus In Bello).
O DIH busca limitar o sofrimento humano no contexto de conflitos armados, tanto internos quanto internacionais. Esses sofrimentos devem evitados a todo custo, de forma que é necessário que se faça o possível para conter os impactos sobre não combatentes. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha define o DIH da seguinte forma:
“O Direito Internacional Humanitário é um conjunto de normas que procura limitar os efeitos dos conflitos armados. Protege as pessoas que não participam ou que deixaram de participar nas hostilidades, e restringe os meios e métodos de combate. O Direito Internacional Humanitário (DIH) é também designado por ‘Direito da Guerra’ e por ‘Direito dos Conflitos Armados”.
O acesso de ajuda humanitária, como caminhões com alimentação e medicamentos, por exemplo, é constantemente solicitado pela ONU e não deve ser restringido. Na Guerra da Síria foram frequentes as críticas da ONU quando a passagem desses recursos era impedida por adversários. Em síntese, não se pode utilizar o sofrimento humano, seja a fome, doenças ou acesso a serviços básicos, como estratégia de guerra. Trataremos mais a fundo desses aspectos ao nos debruçarmos sobre o DIH.
QUAIS SÃO OS CRIMES DE GUERRA?
Segundo Malcolm Shaw, um dos principais internacionalistas da atualidade, os Crimes de Guerra são:
“(…) essencialmente violações graves das normas do direito costumeiro e convencional relacionadas ao Direito Internacional Humanitário, também conhecidas como as normas que regulam os conflitos armados” (Tradução Livre)
Percebe-se, portanto, que os crimes de guerra compreendem uma categoria ampla, que envolvem diversas condutas específicas. O estudo individual de cada uma dessas condutas, além de demasiadamente extenso, teria menor relevância acadêmica que a compreensão mais ampla de seu significado.
De fato, o Estatuto de Roma trata dos crimes de guerra em seu artigo 8º, incluindo em seus dispositivos os diversos atos incluídos em cada categoria, que podem ser desde homicídios dolosos até a utilização indevida de uma bandeira de trégua, bandeira branca que anuncia um pedido pelo fim das hostilidades e garante a inviolabilidade de seu portador.
Destaque especial é dado às Convenções de Genebra, que resguardam os não combatentes. Em seus aspectos mais gerais, o Estatuto de Roma define crimes de guerra como:
“a) As violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949 (…)
b) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do direito internacional (…)
c) Em caso de conflito armado que não seja de índole internacional, as violações graves do artigo 3º comum às quatro Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949 (…)
e) As outras violações graves das leis e costumes aplicáveis aos conflitos armados que não têm caráter internacional, no quadro do direito internacional (…)”
Tomando essas definições como parâmetro, podemos mencionar, como exemplos de violações das Convenções de Genebra, “a tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas”, bem como a “tomada de reféns”.
Na segunda hipótese prevista pelo Estatuto, temos como exemplo mais relevante “dirigir intencionalmente ataques à população civil, em geral ou civis que não participem das hostilidades”.
Interessante notar que, embora o DIH regule conflitos de caráter internacional, as quatro Convenções de Genebra possuem o artigo 3 em comum, que prevê a possibilidade de aplicação de alguns de seus dispositivos em conflitos internos. Dessa forma, os itens “c” e “e” do Estatuto de Roma impedem que em conflitos dessa natureza sejam praticados atos contra a dignidade humana ou intencionalmente dirigidos a civis.
Leia mais: direito humanitário e os limites da guerra.
QUEM JULGA OS CRIMES DE GUERRA
Criado em 1998, pelo Estatuto de Roma, ao Tribunal Penal Internacional (TPI) foi conferida competência para julgar indivíduos responsáveis por crimes considerados “de maior gravidade com alcance internacional”, dentre os quais foram incluídos os crimes de guerra.
De fato, o TPI julga apenas indivíduos, o que justifica a afirmação de Malcolm Shaw:
“Essencialmente, o Direito dos Crimes de Guerra aplica-se a indivíduos e o Direito Internacional Humanitário a Estados”.
Vale ressaltar que as responsabilizações de indivíduos e Estados, embora possam estar relacionadas ao mesmo fato, não são dependentes uma da outra. De fato, se o Tribunal Penal Internacional julga apenas indivíduos, a Corte Internacional de Justiça julga apenas Estados.
Um Estado pode ser responsabilizado pelas condutas de quaisquer órgãos de quaisquer de seus poderes, independentemente de sua hierarquia. Vale ressaltar que o fato de uma autoridade atuar excedendo seus poderes ou contrariando as instruções recebidas não exclui a responsabilidade estatal.
Se um soldado comete um crime de guerra, por exemplo, mesmo se em desobediência a suas instruções, tanto o indivíduo quanto o Estado poderiam ser responsabilizados. Ocorre que isso dependeria de uma série de requisitos. Se o Estado em questão não for membro do TPI e da CIJ, ambas as cortes não poderiam atuar. Isso não significa necessariamente impunidade, já que os órgãos judiciais internos aos Estados poderiam realizar o julgamento.
A responsabilização por atos de particulares não é a regra, mas pode ocorrer em alguns casos. Em 1979, no Irã, particulares invadiram a embaixada dos EUA e fizeram seus diplomatas de reféns. Embora a conduta não tenha sido conduzida pelo Estado iraniano, este a adotou como sua, o que permitiu sua responsabilização.
O Tribunal possui sede em Haia, nos Países Baixos, e pode julgar apenas fatos ocorridos após o início de seu funcionamento, ocorrido em 2002 (não seria possível, por exemplo, realizar um julgamento acerca dos eventos relacionados às bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki).
Ademais, o TPI julga apenas indivíduos nacionais de Estados que ratificaram seu Estatuto, atualmente 122, ou que cometeram o crime em território de um Estado membro. Não sendo atendidos esses requisitos, o TPI só poderia atuar mediante solicitação do CSNU, que pode requerer a análise de quaisquer indivíduos, independentemente de sua nacionalidade.
Não sendo possível a atuação do TPI, a punição ficaria novamente adstrita ao julgamento por órgãos nacionais. Por serem considerados crimes de caráter mais grave, de interesse de todos os estados, seria possível que qualquer país realizasse o julgamento, o que esbarra em questões políticas. Ainda que realizasse o julgamento de um estrangeiro, a menos que este estivesse em seu território, o Estado dependeria da extradição do acusado. Na prática, não havendo interesse de seu país de nacionalidade no julgamento, é possível que o indivíduo permaneça impune.
O QUE É PERMITIDO E O QUE É PROIBIDO
O funcionamento do Tribunal engloba diversas particularidades, especificados em seu Estatuto, mas é possível apontar alguns elementos de destaque.
Se um Estado aderiu ou vier a aderir ao Estatuto de Roma após o início de sua vigência, a regra geral é de que o Tribunal possa julgar apenas fatos ocorridos a partir de sua adesão.
Mas o referido Estado tem a opção de aceitar efeitos retroativos. Dessa forma, a jurisdição do TPI seria aplicada a fatos anteriores à adesão, a partir de data estipulada pelo Estado, desde que não anterior ao início do funcionamento do Tribunal.
A competência do Tribunal é complementar à dos Estados, de forma que o mesmo só poderá atuar se os países com jurisdição para julgar o caso não queiram ou não possam realizar o julgamento. A única possibilidade para a atuação do Tribunal em detrimento da competência dos Estados é se for verificado que o julgamento não foi realizado de forma independente ou imparcial.
Ainda assim, o TPI conta com um Promotor próprio, e a análise de um caso depende de três possibilidades: o acionamento do caso pelo promotor, por iniciativa própria; por solicitação de um estado-parte no Estatuto; ou pelo acionamento pelo CSNU. Vale repetir que, dentre as três hipóteses, o único que não está restrito pelos limites de atuação do tribunal é o CSNU, podendo acionar quaisquer indivíduos.
Não havendo o julgamento interno pelos Estados ou o acionamento do TPI por um dos capacitados acima, o Tribunal também não atuará, possibilitando que um caso nunca seja julgado. De fato, diversos Estados africanos já demonstraram insatisfação com o Tribunal, alegando que o mesmo julgava quase que exclusivamente indivíduos desse continente.
Ademais, o Tribunal não pode julgar in absentia, ou seja, depende da presença do acusado para realizar o julgamento. Esse fator foi responsável por várias polêmicas internacionais, sendo acusado por vezes de estimular a impunidade.
POLÊMICAS HISTÓRICAS
Ao longo das décadas, diversas polêmicas ou questões interessantes surgiram envolvendo aspectos relacionados aos crimes de guerra e conflitos internacionais. Vejamos algumas delas.
Após o término da Segunda Guerra Mundial, os Tribunais de Nuremberg e Tóquio foram criados para julgar crimes cometidos durante o conflito. Prevendo o julgamento pela execução de crimes de guerra, estes tribunais receberam críticas por serem criados após o conflito. O argumento seria de que, ao praticarem os atos de que eram acusados, sequer existia tribunal que previsse a punição de crimes dessa natureza, o que violaria o que é conhecido como Princípio da Reserva Legal.
O Direito Internacional prevê a possibilidade de um Estado enviar indivíduos para serem julgados perante outras cortes. A extradição é uma modalidade de cooperação jurídica com outros Estados, que permite que um país envie uma pessoa que esteja em seu território para ser julgado ou cumprir pena em outro. A entrega, por sua vez, diz respeito ao envio de um indivíduo para o julgamento perante um tribunal internacional.
Ocorre que a Constituição Brasileira proíbe a extradição de brasileiros natos e naturalizados (com exceções), o que gerou polêmicas acerca da possibilidade de entrega de nacionais ao TPI. Entretanto, o instituto da entrega não se confunde com a extradição (distinção feita pelo próprio Estatuto de Roma, em seu artigo 102), de forma que seria possível a entrega mesmo de brasileiros natos ao TPI (não havendo interesse do Estado brasileiro em realizar o julgamento, pelo qual tem primazia).
Por fim, tendo sido firmado recentemente um Tratado que proíbe completamente as armas nucleares, vale ressaltar novamente o Parecer Consultivo emitido pela Corte Internacional de Justiça em 1996, no qual afirmou que o uso de armas nucleares seria, em regra, desproporcional. O interessante acerca deste caso é que, ao analisar a hipótese do uso de armas nucleares por um Estado como forma de defesa quando sua própria existência esteja ameaçada, a Corte afirmou que não poderia pronunciar-se.
Os crimes de guerra configuram um tema complexo, que relaciona diversos institutos e discussões inseridas na disciplina de Direito Internacional. Sua compreensão total não seria possível sem serem feitas diferenciações com relação a outros temas e institutos. Ainda assim, espera-se que seus aspectos mais relevantes e características gerais tenham deixado mais claro o funcionamento de um tema tão relevante.
Conseguiu entender o que são crimes de guerra? Deixe suas dúvidas e sugestões nos comentários!
Referências:
BRASIL. Tribunal Penal Internacional. Site do Itamaraty. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/paz-e-seguranca-internacionais/152-tribunal-penal-internacional
CASELLA, Paulo Borba; ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2012.
CICV. O que é o Direito Internacional Humanitário? Site Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Disponível em: https://www.icrc.org/por/resources/documents/misc/5tndf7.htm
OCHA. Princípios Gerais do Direito Internacional Humanitário. Blog Oficial do Escritório para Coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas. Disponível em: https://ochamini2009.wordpress.com/2009/07/29/principios-gerais-do-direito-internacional-humanitario/
REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. São Paulo: SARAIVA, 2008.
ROMA. Estatuto de Roma (1998). Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
SHAW, Malcolm N. International Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.