Black Mirror é uma série de televisão britânica de ficção científica de um futuro próximo fazendo alegorias de tecnologias que já vemos presentes em nossos dias atuais, mas ainda não na escala e proporções apresentadas na série. A série é exibida no Netflix e se destaca por episódios independentes entre si, mas unidos em seu propósito global de discutir nossa sociedade em mudança em função da tecnologia. Se fosse um livro seria um livro de contos ao invés de um romance.
O que atrai nesta série é que poucas peças disponíveis na cultura pop se dedicam a analisar temas políticos e Black Mirror certamente é uma dessas. Este texto pretende apresentar a discussão política de um episódio em particular: “Quinze Milhões de Méritos”, que envolve temas como alienação e ideologia. Segue com a gente!
E do que trata esse episódio?
O episódio, segundo da primeira temporada de Black Mirror, nos mostra a vida de um trabalhador num cenário futurista meio esquisito: sua “ocupação” é pedalar uma bicicleta que não sai do lugar num ambiente fechado em frente a uma TV enorme.
Nosso personagem acorda para o trabalho. Nos espanta a falta de naturalidade do ambiente: não existem janelas e um vídeo de um galo cantando é seu despertador. A tela ocupa literalmente a parede inteira! Compra-se pasta de dente direto do console, por peso, e a tela gigantesca nos apresenta o preço dessa compra, além de anúncios comerciais que só são dispensáveis gastando-se dinheiro. Parece ser desnecessário existir mercados nesse mundo-lugar, tudo se alcança a palma da mão apenas aceitando a compra, sem a necessidade de pegar em dinheiro ou cartões. As telas-por-todo-lado se encarregam de ler comportamentos e fazer operações bancárias.
O trabalho é um sempre-o-mesmo: pedalar uma bicicleta que não sai do lugar. Seu salário é um dígito bancário atualizado em tempo real: cada segundo pedalado rende 1 mérito, como é chamada a moeda local.
É possível comprar entretenimento enquanto se pedala. Uma enorme tela cobre toda a parede do salão de trabalho. Espantam os preços das coisas: desviar um anúncio custa 500 méritos, assistir um vídeo custa 10 mil.
Nosso personagem principal se interessa por uma colega de pedaladas mas não se encoraja de ir falar com ela. Se incomoda com o vizinho de bicicleta, jogando um jogo eletrônico ao pedalar em que o objetivo é matar faxineiros, exatamente como os faxineiros do salão de trabalho. Espanta a sem-cerimônia deste jogo online, jogado em pleno salão de trabalho, à frente dos faxineiros reais. É como se sua posição social permitisse serem tratados assim, e portanto, que alguma posição social acima os violentasse dessa forma.
Ao longo do episódio vamos percebendo mais explicações e formando melhor um quadro completo em nossas mentes, mas uma certa sensação de estranhamento nunca nos deixa ao assistir o episódio. Esse estranhamento vem quando percebemos que os quartos-dormitórios ficavam anexos à área de trabalho, pela continuidade estética dos ambientes; pela ausência de vermos o céu durante todo o episódio, sugerindo que não existe necessidade de transporte até lá.
E também pelo fato de que a mesma empresa de comunicação digital parece controlar tanto a tela do salão de trabalho quanto a tela de consumo dentro do quarto. De forma que esta ocupação define sua vida por todo seu tempo e não apenas durante as horas trabalhadas. Os quartos-dormitórios são lares … apesar de não terem espaço, móveis, decoração e nem, como veremos mais à frente, privacidade.
Notamos que a vida levada pelo nosso personagem principal é bastante parcimoniosa: possui poucos objetos pessoais, faz força para economizar cada centavo, alimenta-se mal, contando os centavos pra comer, numa profissão que não escolheu. Estamos assim diante de um proletário futurista! Sempre vestidos de cinza, espanta a falta de naturalidade de seus corpos.
Assistimos, neste esforço total de organização do trabalho, um quadro completo de ultra-exploração da força de trabalho combinado com um ultra-consumo, aonde bicicletas e anúncios extraem o máximo de nossas capacidades de produção e consumo.
O episódio nos provoca também a refletir sobre a utilidade do esforço físico mesmo num futuro tecnológico onde tudo pode ser alcançado tão facilmente com ajuda da inteligência artificial. Neste episódio-provocação ainda são necessários braços e pernas fortes (como o jurado do concurso de talentos do qual nosso protagonista participa mais a frente no episódio nos deixa claro, o trabalho de pedalar é necessário para produzir energia elétrica! Não seria isso uma referência ao filme Matrix?). E este tipo de trabalho é socialmente localizado em uma certa classe social. O futuro não é para todos.
Sobre Fabiano e Fabianos
A série Black Mirror, de forma geral, não costuma tratar o ser humano com grande consideração: nossa espécie é vista como bastante apta a aproveitar oportunidades mesquinhas, exercer controle pela mera possibilidade de controlar outros, é gananciosa, insegura, hostil, entre outras qualificações.
São poucos os episódios nos quais a humanidade é vista com olhar tenro e delicado, mas eles existem. No caso deste episódio, nosso personagem principal é um sujeito entediado, em busca de um sonho, ansiando contato humano verdadeiro, soterrado pela tecnologia (e sem dinheiro para se livrar dos anúncios de propaganda).
Nosso personagem parece-se muito com Fabiano – do livro Vidas Secas, escrito em 1938, de Graciliano Ramos – um ser humano desumanizado e incapaz de se comunicar e sentir. O episódio dialoga com esta obra quando esta desumanização é decorrente, em certa medida, das condições de vida dos personagens, tanto lá como cá. Objetificação. Isolamento. Isolamento-em-meio-à-total-conexão-digital. Isolamento-da-internet.
A vida de nosso Fabiano ultramoderno é similar ao original na medida em que leva uma vida meio automática. Passa muito de sua existência sem entender bem o mundo a sua volta, e possui grande dificuldade em se comunicar (na obra textual essa dificuldade se expressa mesmo dentro de seus diálogos internos, em seus pensamentos). Ambos possuem também uma certa característica que os leva a agir de forma heroica e destemida.
Só que, enquanto o isolamento desempenhava um papel importante na condição humana do Fabiano-original, a tecnologia é quem desempenha o mesmo papel em nossa versão futurista, ocupando todos os espaços possíveis de sua vida. Desde o acordar até o trabalhar, até o entretenimento, até… tudo.
Sua própria existência é mediada pelo dinheiro e os direitos mais básicos, como a privacidade, sucumbem através da tecnologia: Fabiano-futurista é vigiado por câmeras dentro de seu próprio quarto, como somos levados a entender observando que as reações de seu avatar durante o show de talentos são expressões reais das suas – dentro do quarto-cubículo.
Tempo livre, ócio, fazer nada, lazer, repouso, além do trabalho e do consumo como o praticamos hoje são, neste futuro, entendidos como oportunidades comerciais, e mediados pela tecnologia a serviço da venda de mercadorias. Esta tecnologia é o equivalente futurista do isolamento a que se refere Graciliano Ramos, e o seu resultado é similar: Fabiano lá e Fabiano cá!
Lembram-se daquele personagem de Charles Chaplin em Tempos Modernos? Operário de uma máquina industrial que acaba soterrado por ela? Aqui, o homem-peça (Fabianizando-se) se enquadra na máquina-mãe que é metáfora da sociedade moderna. Voltemos ao sucesso de nosso Fabiano-futurista em enquadrar-se nesta sociedade.
E que fim leva essa história? Tem final feliz?
Falemos da catarse de nosso Fabiano. Como dissemos, nosso Fabiano tem vontade de conhecer uma colega de trabalho, mas sempre hesita em fazer algum tipo de aproximação. Mas essa aproximação acaba acontecendo por ação dela quando ela o ajuda a lidar com a máquina de vendas no refeitório. Quando conversando sobre seus sonhos ela revela que gostaria de poder comprar um aplicativo de amigo virtual, e ele expõe sua opinião que isso e tantas outras coisas não o satisfazem. São apenas coisas.
“stuff, just a bunch of stuff” (só um monte de tranqueiras… em tradução livre)
Ao notar que sua parceira de bicicleta possui um talento para cantar, ele se dispõe a gastar todas suas economias para inscrevê-la num show de talento similar a atual franquia Got Talent. Aliás, a provocação do episódio é explícita quando o principal jurado é muito similar em estilo e aparência ao Simon, jurado icônico do Got Talent. Aqui, no entanto, ele se chama simbolicamente Hope. Esse nome lhe cai bem pois ele é literalmente a esperança de sair das bicicletas e dos cubículos, ao mesmo tempo que simbolicamente a esperança de vencer no desafio social de ascensão econômica, e obter o reconhecimento do programa, do público, além da renda do prêmio.
Nosso Fabiano idealista acaba de gastar tudo o que tem guardado, e portanto, se condenar a nunca mais desviar de anúncios, e se entediar ainda mais durante o trabalho, para ter a chance de mostrar seus sentimentos em busca de uma conexão verdadeira com sua parceira de pedaladas.
Mas o show de talentos se revela uma farsa cruel: além do ingresso ser uma desnecessária e dolorosa impressão tatuada na pele, e da infinita espera no camarim lotado de candidatos, sua parceira foi drogada pela produção do evento para que falhasse durante sua apresentação! A direção já havia decidido de antemão sua narrativa no programa: seria uma atriz de filmes adultos e não uma vencedora, independentemente de seu talento. Conduzida pelos jurados, pela plateia, pelas drogas que tomou, e mais um sem número de motivos, bons e maus, ela aceita, para desespero de nosso Fabiano apaixonado.
Um detalhe cruel: O único momento em que não se assemelham a zumbis trabalhadores, a única espontaneidade dos corpos se movendo durante todo o episódio se dá durante a espera para o concurso, dentro do camarim. Os participantes acreditam em sua grande chance, e por isso são livres e motivados. Em meio àquela sensação de estranhamento que permeia o episódio, neste momento um sopro de entusiasmo surge.
Eis então que o desfecho da participação no concurso retira de nosso Fabiano sua esperança: sua parceira de bicicleta foi sabotada, o programa que gostava de assistir nas horas de lazer era uma farsa, ele estava sem economias … e não consegue desviar de infinitos anúncios de filmes adultos com a mulher que ama. Fabiano deprime.
Fabiano decide agir
O episódio segue e Fabiano se mostra de repente um sujeito motivado: economizando com gosto, com foco e propósito, pedalando mais e até mesmo filando um almoço de graça da máquina de vendas. Tem agora um plano!
Seu plano nasce de sua desesperança e é uma revolta! Ele mesmo se inscreverá no show de talentos e lá ameaçará se suicidar em público ao vivo caso não seja ouvido. Um grito de desespero num mundo de máquinas, inteligências, racionalização e narrativas pré-ordenadas de ascensão social. Mas nasce também da raiva e do desejo de vingança: O jurado Hope lhe tirou e humilhou a mulher que ele amava.
Ele consegue executar seu plano e consegue ser ouvido pelo jurado Hope no palco. Câmeras ligadas. Chegamos ao clímax do episódio. A sensação perene de estranhamento finalmente foi abordada. É justo uma vida assim, tão lesada de direitos, tão pobre e explorada, uma sociedade que se assemelha a uma máquina de moer?
Ao final de sua fala-grito, o jurado Hope pondera bem e lhe diz… que sua apresentação foi ótima! Muito original e interessante comercialmente. Oferece então a possibilidade de ser um influenciador no próprio canal de stream do juiz. Seriam parceiros.
Fabiano, perplexo, aceita.
… e passa a se revoltar mecanicamente contra o sistema social duas vezes por semana nas lives que faz em seu quarto. Seu programa vai bem comercialmente e é consumido por seus antigos colegas de bicicleta. Sucesso alcançado!
Ao enriquecer, nosso Fabiano passa a residir num cubículo maior, com mais móveis e até mesmo artigos de luxo: objetos de decoração e suco de laranja. Mas chama a atenção que possui vista completa para a natureza: toda sua parede reproduz uma paisagem natural muito bonita e tranquilizante. Neste mundo soterrado pela tecnologia até mesmo a decoração é um fundo de tela: natureza para os com mais méritos e anúncios para os com menos méritos.
Se este episódio tem ou não final feliz fica a cabo de cada um de nós se posicionar, mas a provocação é intrigante. Ela se centra na ideia famosa sobre Ideologia, isto é, um conjunto de ideias coerentes que formam uma narrativa do mundo, e que desempenha um papel social de contenção de conflitos sociais. Em nosso episódio, que existe ascensão social possível através da bicicleta. Que existe também espaço para individualidade na sociedade. Que a arte é entretenimento. Que a inteligência artificial auxilia a libertar o homem. Que temos a incrível praticidade de comprar mil coisas com um simples gesto e isso é, indubitavelmente, bom.
Notaram que não existe supervisor do trabalho desses homens e mulheres permanente de cinza? Sua automotivação em ascender, sua capacidade autônoma de empreender e se esforçar são seus próprios supervisores.
Fabiano precisou se decidir quanto a estas questões sob a luz dos holofotes do show de talentos, no qual ameaçou se matar ao vivo, gastou todas suas economias e claramente não iria ganhar o concurso. Estava sem plano B, perplexo com o desfecho de seu plano A, e diante de uma oportunidade financeira que diríamos “irrecusável”.
Entre combater o sistema e se inserir no sistema, em um ponto diferente, mais elevado, a escolha foi feita. Sua revolta se esvai, a felicidade não chega exatamente a vir, mas sua nova posição financeira e social é bastante reconfortante.
Ao final do episódio, confusos sobre o desfecho feliz ou não do episódio devemos nos atentar de novo ao título. No título está sugerida a solução desta questão. O episódio chama-se “Quinze Milhões de Méritos” porque quer sugerir que não existem direitos possíveis quando tudo se transformou em mercadoria.
“it´s just stuff… just stuff…”
Recordemos que além de não ser possível dispensar os anúncios comerciais sem ter méritos, também era impossível fechar os olhos para não os ver, e não era possível sair do quarto-cubículo, pois as portas trancavam eletronicamente durante os anúncios.
Futuro e presente
O episódio de Black Mirror provoca e propõe um futuro, de forma invertida, ou distópica. E, ao mostrar o futuro nos revela o próprio presente. Assim, a fim de comparação, vou tentar reproduzir aqui (com “licença poética”) uma outra proposta que presenciei numa reunião de uma ONG sobre “ocupar a cidade”:
“Não queremos apenas um emprego, que pague mal, mas pague em dia, que seja longe, que demore horrores dentro de dois ou três ônibus, depois das poças de alagamento, depois da fronteira onde as casas já têm acabamento externo, e onde existem árvores e praças, perto de hospitais e todo o tipo de serviços, inclusive públicos: Queremos que a cidade seja nossa! Isto é, de todos, porque nós somos os últimos que faltam entrar. Nós… a maioria.”
E vocês, queridos leitores? Até onde acham que deva ir a política pública? As formas de atuação pública e social de políticos eleitos? A própria Política em si mesma? Traga sua visão nos comentários.