Já ouviu falar em Lawfare? O conceito americano que envolve lei e guerra vem sendo discutido em círculos acadêmicos, governamentais e também na mídia. A prática tem ligação com assuntos do direito internacional, mas atualmente está sendo relacionada às questões políticas e até mesmo sociais.
No Brasil, a prátida do lawfare tornou-se relevante após a Operação Lava Jato e apurações sobre as Fake News, levantando a partir daí diversos debates jurídicos. Quer saber mais sobre o assunto? Aprenda com a gente.
O que lawfare significa?
O termo se refere à junção da palavra law (lei) e o vocábulo warfare (guerra), e, em tradução literal, significa guerra jurídica. Podemos entender lawfare da seguinte maneira: uso ou manipulação das leis como um instrumento de combate a um oponente desrespeitando os procedimentos legais e os direitos do indivíduo que se pretende eliminar.
Em termos ainda mais gerais pode ser entendido como o uso das leis como uma arma para alcançar uma finalidade político social, essa que normalmente não seria alcançada se não pelo uso do lawfare.
Vale dizer que a prática é planejada de forma a ter uma aparência de legalidade e, muitas vezes, essa aparência é criada com a ajuda da mídia. Por isso, o termo é utilizado na maioria das ocasiões em uma conotação negativa, já que dá a ideia de um uso abusivo e ilegítimo (ilegal) da lei para prejudicar um determinado adversário.
Como se verá a seguir, a expressão foi criada para definir estratégias militares no âmbito de guerras internacionais, entretanto o termo acabou se atualizando para descrever não apenas as guerras militares, mas também as “guerras” políticas.
Origem do termo e mudanças de definição
Na década de 1970, a questão do uso das leis como instrumento de guerra, já era observado por acadêmicos da universidade de Sydney. O primeiro uso do termo “lawfare” está em um pequeno artigo escrito por John Carlson e Neville Yeomans, datado de 1975, em que a prática aparece como uma tática de paz – ou seja, como o bom uso da lei em demandas judiciais, onde as espadas abrem espaço para as palavras.
A partir da década 90 começou um debate sobre como a aplicação das leis alteraram as guerras, suas estratégias, métodos e técnicas. A partir disso, a relação entre a lei e a guerra foi disseminada, dando popularidade ao lawfare no contexto da segurança nacional.
Bom, mas foi apenas em 2001 que o termo foi cunhado de fato pelo Coronel das Forças Armadas dos Estados Unidos, Charles J. Dunlap Jr., em um artigo acadêmico a fim de analisar as formas de conflitos modernos. Devido à sua formação e carreira, Dunlap discorria sobre assuntos variados de segurança nacional e uso da força no direito internacional. Por isso, para o autor, o termo lawfare poderia ser definido como “o uso da lei como uma ferramenta de guerra”.
À época, essa termo descrevia especificamente um método de guerra em que a lei era utilizada como meio para obter vantagens morais sobre o inimigo visando fins estratégicos militares.
Dunlap foi, portanto, o responsável pela propagação mundial do termo lawfare. Segundo o próprio autor, em artigo para a JFQ – revista americana de estudos militares e de segurança -, o termo também foi remodelado ao longo dos anos, alterando sua definição e impactos.
Neste ponto de vista, a lei pode ser semelhante a uma arma de utilidade positiva ou negativa. E é por isso que surgiram ao longo dos anos inúmeros debates acerca do lawfare.
A prática contemporânea do lawfare
Antes o termo se referia à utilização do direito como arma complementar às armas bélicas das guerras e embates físicos tradicionais. Agora, aos poucos, diante das batalhas que se tornaram cada vez menos físicas, o lawfare ganhou novos contornos e significados.
Atualmente, ele está atrelado a lei como um substituto das armas bélicas e da própria guerra militar. Nesta nova estratégia, por meio dos instrumentos legais e judiciais, as espadas cedem lugar às palavras.
Assim, o lawfare se caracteriza atualmente pelo emprego de manobras jurídico-legais para substituir a força armada, configurando uma guerra jurídica com objetivo de política externa, de segurança nacional ou com a finalidade de causar dano a adversário político.
Para o próprio Dunlap, as normas jurídicas são muito parecidas com uma arma. Sendo que estas podem ser usadas de acordo com as diretrizes de um determinado Estado e seus interesses. Assim, dependendo de quem organiza e utiliza o direito e suas leis, direitos podem ser assegurados ou reprimidos, estratégias políticas e sociais podem ser legitimadas ou condenadas, determinados indivíduos ou grupos podem ser perseguidos ou absolvidos.
De maneira geral, as sociedades contemporâneas passaram a utilizar, portanto, da aplicação das leis para substituir os campos físicos de batalhas. De forma geral, com o lawfare, a política se tornou uma continuidade da guerra.
Vale dizer que o lawfare atua nas mesmas dimensões que as guerras tradicionais. As questões geográficas, armamentistas e de influência no meio externo permanecem sendo importantes para a prática.
Orde Kittrie, professor estadunidense especialista em direito internacional e em direito penal, em sua obra “Lawfare: Law as a Weapon of War “ de 2016, estabeleceu três dimensões do lawfare:
- a escolha da jurisdição (escolha estratégica do local onde será travada a guerra jurídica);
- a escolha da lei (armamento ou lei mais adequada para alvejar e aniquilar o inimigo);
- as externalidades (o uso da mídia e as redes sociais criando uma guerra de informação e operações planejadas de guerra psicológica);
Para entender melhor vejamos o exemplo abaixo:
Nos conflitos físicos tradicionais, os acampamentos e campos de batalha são escolhidos com base em vantagens ou desvantagens geográficas (cartografia, paisagem, clima e outros). No lawfare, essa lógica se aplica na escolha do juiz ou tribunais mais predispostos a aceitar uma determinada tese jurídica.
Nas guerras tradicionais, o armamento mais eficaz para enfrentar o inimigo também é essencial para vitória. No lawfare, esse armamento é representado pela escolha da lei ou das leis para melhor atingir o alvo escolhido e assim obter sucesso.
Por fim, o ambiente de aceitação ou compreensão de necessidade da guerra em si cria parâmetros justificáveis para se guerrear. O uso de estratégias midiáticas e psicológicas contra um inimigo é de igual importância tanto para os conflitos tradicionais quanto para o lawfare. Por isso, influenciar o meio externo (essencialmente a opinião pública) é tão importante para a prática do lawfare atualmente. Afinal, a mídia representa um meio potente para a criação do ambiente de aceitação e legitimação da perseguição jurídica.
Lawfare e o poder da mídia
No século XVI, a imprensa escrita cedia todas as informações verossímeis ou não para a população por meio de mensagens em papéis e, assim, as ideias ali contidas eram difundidas. O mesmo aconteceu com o rádio e a televisão anos a frente. Atualmente, as divulgações são feitas pela internet e pelas redes sociais de maneira muito similar.
Na era globalizada, em que a divulgação das informações são cada vez vez mais rápidas, a mídia e a internet se tornaram mais um “campo de guerra”. Afinal, o poder midiático tem poder de influenciar o posicionamento e a opinião da população em inúmeras questões. Mas o fenômeno não é uma novidade e pode ser percebido antes mesmo da primeira aparição do termo lawfare.
Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, a mídia foi utilizada como instrumento de manipulação da opinião pública, propiciando uma aceitação da guerra tradicional. As rádios, recém-criadas, foram utilizadas por estadistas para manipular a opinião pública a seu favor e contra os seus adversários.
Isso aconteceu na Alemanha durante o nazismo, onde o governo utilizou fortemente desses instrumentos para assegurar a manutenção e aceitação do governo em propagandas e até mesmo filmes que mostravam uma Alemanha melhor, próspera e feliz com a supremacia da raça ariana.
Atualmente, sobre esse assunto, a professora Susan Tiefenbrun explica que:
“lawfare é uma arma projetada para destruir o inimigo usando, maltratando e abusando do sistema legal e da mídia, a fim de levantar um clamor público contra aquele inimigo” (2010).
Para a autora, o uso do direito se tornou insuficiente para a derrota do inimigo, sendo preciso utilizar a opinião pública para materializar e formalizar seus objetivos perante a sociedade e em âmbito judicial. A partir daí, a mídia trabalha paralelamente aos processos judiciais, para que o resultado desejado pelos autores do lawfare sejam incorporados e aceitos pela população como o ideal, afirmando assim a validade das ações contra um inimigo.
Os recursos frequentemente utilizados por essa estratégia são:
- as notícias falsas (fake news);
- informações incorretas (misinformation); e,
- informações falsas para confundir e influenciar a opinião pública (desinformation);
Outras táticas do lawfare e suas finalidades
As táticas utilizadas envolvem uso de instrumentos jurídicos como:
- promoção de acusações sem materialidade (sem provas);
- abuso de direito para prejudicar a reputação de um adversário;
- promoção de ações judiciais para desacreditar o oponente;
- tentativa de influenciar opinião pública para obter publicidade negativa;
- judicialização da política: a lei como instrumento para conectar meios e fins políticos;
- promoção de desilusão popular;
- utilização do direito como forma de constranger o adversário;
- bloqueio e retaliação as tentativas dos adversários utilizarem procedimentos e normas legais disponíveis para defender seus direitos;
Quando o oponente é escolhido, as leis e os procedimentos legais passam a ser utilizados pelos agentes como forma de perseguição àqueles que foram eleitos como inimigos.
Lawfare no Brasil
No Brasil, a difusão de notícias falsas (ou fake news) tem tomado grandes proporções e consequências. No campo político, momentos decisivos como eleições e processos legislativos podem ser contaminados por fake news que pretendem alterar o fluxo natural de informação através da manipulação.
João Batista Damasceno, Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense, sobre as Fake News e a mídia tradicional, explica que:
“… fake News são notícias falsas difundidas com o objetivo de legitimar um ponto de vista ou prejudicar uma pessoa ou grupo. A novidade não são as notícias falsas. Mas, o poder viral das fake News em face do surgimento das novas mídias. Com o avanço tecnológico e maior intercomunicação entre pessoas e grupos as notícias falsas se espalham rapidamente”.
Ainda segundo dados divulgados pela Fundação Getúlio Vargas, as falsas informações divulgadas na internet, impulsionadas por robôs, criam falsas sensações de apoio político a certas propostas, ideias ou figuras públicas. Essa prática pode modificar o rumo de políticas públicas, interferir no mercado de ações, disseminar rumores, notícias falsas e teorias conspiratórias, gerar desinformação e poluição de conteúdo, além de atrair usuários para links maliciosos que roubam dados pessoais, e outros.
Especialistas alertam que a mídia utiliza-se do lawfare como uma forma de condicionar pessoas, pensamentos e julgamentos fazendo com que o “tribunal” formado pela mídia seja muitas vezes mais dilacerante do que o jurídico.
Afinal, ao interferir e manipular informações é possível criar nas pessoas ideais de veredictos sem qualquer base fático-processual. Essas informações falsas apelam para o emocional dos leitores, ouvintes ou espectadores, fazendo com que o material “noticioso” seja consumido sem confirmar sua veracidade.
Entretanto, o Lawfare brasileiro não se trata somente de fake news. A prática também consiste em uma guerra midiática e judicial contra adversários políticos.
Damasceno expõe ainda que no Brasil,
“o Lawfare é a utilização da lei e dos procedimentos legais pelos agentes do sistema de justiça para perseguir quem seja declarado inimigo. A imprensa, e a opinião pública formada a partir do seu noticiário, tem grande influência sobre os julgadores. Pesquisas comprovam que os processos que são noticiados pela mídia são julgados em menor tempo que aqueles com os quais a mídia não se ocupa. Da mesma forma, pesquisas indicam que os resultados dos julgamentos noticiados têm alto percentual de concordância entre a opinião publicada e a opinião pública, formada a partir da concepção midiática. Isto demonstra que os juízes, ainda que inconscientemente, são levados a formar seus juízos pelo que a mídia lhes informa. Não raro, durante julgamentos em órgãos colegiados é possível ouvir ‘discursos’ sobre concepções e fatos não constantes dos autos dos processos e que são fundamentais nas razões de decidir”.
Estes fatos puderam ser observados e amplamente debatidos diante das investigações da chamada Operação Lava Jato.
Diversos especialistas denunciaram o desrespeito a leis penais e a garantias constitucionais dos indivíduos investigados durante a Operação por causa do uso incorreto ou, de certa forma, corrompido das regras e procedimentos legais. Acusações infundadas, inconsistência e confecção de provas, testemunhos de delatores em busca de privilégios e a transformação dos condutores da Operação em celebridades na luta contra o crime organizado foram questões fortemente debatidas no país durante a operação.
Por isso, no Brasil, a tática para manipular o sistema jurídico e condicionar certos prejuízos ao adversário por meio da criação de “tribunais midiáticos” – que influenciam a opinião pública – pode ser um grande exemplo de lawfare brasileiro.
Como se pode observar, falar sobre lawfare no Brasil, acaba nos ligando a diversos debates jurídicos atuais e ainda sem consenso ou resolução. Embora se trate de uma denominação relativamente recente, o lawfare se refere a um fenômeno com inúmeros reflexos políticos e sociais e que está muito relacionado a perseguições políticas, geopolíticas, comerciais e outras.
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REFERÊNCIAS
Cristiano Martins Zanin; Valeska Teixeira Martins Zanin; Rafael Valim: Lawfare: uma introdução.
Erica do Amaral Matos: Lawfare: uma introdução ao tema e uma aproximação à realidade brasileira.
LAWFARE: o uso instrumental do direito como uma ferramenta de guerra política
Lawfare, o uso do sistema como arma de guerra política e econômica
8 comentários em “Lawfare: o que esse termo significa?”
Gostei do comentário, bem isso o que está acontecendo aqui em nosso país, a Lava Jato é um exemplo perfeito de Lawfare….tendo como cúmplice a mídia, os famosos jornalões que ainda circulam compartilhando com esse tipo de ato fraudulento. Acorda Brasil!!!
Excelente.
Com definição léxica, e histórica do termo, e como se tornou um conceito que pode ajudar a caracterização de cenários políticos e sociais, nacionais e internacionais.
Tudo perfeito
esta bem elaborada
Muito bom o artigo. Recentemente minha pessoa foi alvo de “atenção destrutiva” q utilizou para tal, a OSC na qual trabalho. Mesmo sendo neste micro universo, essa prática destrutiva foi aplicada com eficiência. O artigo me esclareceu e me lembrou o q se lê em livros de filosofia oriental: ” o q está embaixo, é igual ao q está acima” , portanto qualquer um pode ser atingido por palavras, ideias, ações ou gestos. O mundo está em situação de salve se quem puder. Infelizmente.
Parabéns EXCELENTE TEXTO.
Não é atoa que Jesus precisava ser crucificado. A justíça divina mostra claramente o grau de maldade da natureza humana.
Todos os nossos atos de justiça são como trapo imundo.
Ótimo texto. Não há dúvidas de que a operação Lava Jato se utilizou da prática do lawfare na condução dos processos.
É interessante. Seria mais interessante se o direito predominasse sobre os homens bem.