Nesse texto vamos explicar o que é o especismo. Além disso, vamos apresentar o antiespecismo, movimento que se dedica a combater o especismo em todo o mundo desde a década de 1950.
Entendendo o especismo
O especismo é uma forma de discriminação contra quem não pertence a uma determinada espécie. Similar ao racismo, o sexismo e outros tipos de preconceito, o especismo se utiliza de argumentos sem base científica ou moral para validar a exploração e subjugamento de uma espécie sobre outra.
Luciano Carlos Cunha é doutor em ética e filosofia política e atua como coordenador das atividades da Ética Animal no Brasil. Em entrevista ao Politize! ele explica que “o especismo é análogo ao racismo e o sexismo porque os interesses de certos indivíduos recebem um peso menor (ou mesmo são completamente desconsiderados) com base em critérios irrelevantes”. Todas essas discriminações têm em comum o fato de que causam um impacto negativo no grupo discriminado, independente dos argumentos que tentam justificá-las.
A forma mais habitual de especismo é a que faz diferença entre seres humanos e outros animais. Esse tipo de especismo é conhecido como especismo antropocêntrico, porque desfavorece aqueles que não são parte da espécie humana.
Historicamente, os seres humanos têm um comportamento especista em relação aos demais animais, cujos interesses como não sofrer e não morrer recebem um peso menor ou não recebem peso algum por grande parte da nossa sociedade. Graças a essa visão de inferioridade, os seres humanos utilizam os animais como fonte de alimento, matéria-prima, transporte e entretenimento, sem considerar os efeitos negativos que suas ações poderiam provocar neles.
Mesmo dentro do especismo existem distintos valores dados aos animais de acordo com sua espécie. Por exemplo, muitas vezes animais que são vistos como mascotes como cães e gatos são mais valorizadas que outros, como vacas, galinhas e porcos, espécies exploradas em grande escala pela indústria agropecuária.
“Os animais não humanos são utilizados cotidianamente, de forma sistemática e institucionalizada como recursos à nossa disposição para fins múltiplos. Estes vão desde o entretenimento e o uso em laboratórios até a produção de roupa e, especialmente, de produtos alimentícios. A maior parte dos seres humanos participa disso e é algo muito raramente questionado.”, explica o ativista e filósofo Oscar Horta em um artigo sobre o tema.
Desde os anos 90, Oscar se dedica à defesa do direito dos animais e a propagar as ideias do movimento anti especista, utilizando a filosofia para apontar as falhas nas justificativas defendidas pelo especismo. É colega de Luciano na organização internacional Ética Animal e também foi entrevistado pelo Politize! para a redação desta matéria.
Um pouco de história
O especismo é um tipo de discriminação interiorizado entre nós, seres humanos, acostumados desde que nascemos a fazer uso de produtos e benefícios gerados a partir da exploração animal. Mas, assim como o especismo tem sido parte da nossa realidade desde os primórdios da humanidade, Oscar defende que sempre existiram aqueles que se preocupavam pelos animais e buscavam defendê-los. “Há alguns autores da antiguidade que escreviam contra o especismo, ainda que não tivessem a palavra ‘especismo’, mas já usavam argumentos bem complexos cujas variações são utilizados hoje em dia”, explica.
O filósofo defende que existe uma diferença entre o que é “não especismo” e “antiespecismo”. Segundo ele, o não especismo seria simplesmente a ausência do especismo, quando por exemplo uma pessoa não discrimina os animais e procura que suas ações não causem danos a eles. O antiespecismo seria um passo mais, a oposição ao especismo através do ativismo.
O final do século XVIII e o princípio do século XIX marcam o crescimento das pesquisas e teorias questionando a exploração animal. Nessa época também surgem as primeiras organizações de defesa dos animais na Europa e América. Já nos anos 50, o movimento antiespecista surge efetivamente com o emprego da palavra “especismo” e tudo que ela implica, termo inventado pelo autor britânico Richard Ryder. Esse foi um ponto importante de inflexão porque a partir daí começam as discussões sobre justiça social em relação aos animais e não somente o ato de não maltratá-los.
“O antiespecismo, por ter como centro de sua preocupação o bem dos seres sencientes, defenderá não apenas deixar de prejudicá-los. Defenderá também ajudá-los, independentemente de se a origem do que os prejudica são práticas humanas ou processos naturais”, defende Luciano.
O que é o antiespecismo
O movimento antiespecista se dedica a lutar pela igualdade de todos os indivíduos sencientes, ou seja, seres capazes de ter experiências positivas e negativas, sem discriminação arbitrária ou consideração de raça, idade, sexo, espécie, entre outros.
Para os antiespecistas, todos os indivíduos possuem interesses próprios que devemos levar em consideração. Portanto, todos os seres sencientes deveriam ter seus interesses respeitados. Isso significa abolir práticas originadas pelos seres humanos que são nocivas aos animais, como aquelas relacionadas ao lazer (caça esportiva, tourada, circos, etc), à indústria alimentícia (pecuária, pesca, avicultura), de produtos (roupas, objetos) e outras que não aceitaríamos se fossem realizadas com seres humanos.
Foto: Unsplash.
Além de defender os direitos dos animais para que não experimentem sofrimento e crueldade por causa dos interesses humanos, os antiespecistas também enumeram outros direitos que os animais deveriam possuir, mais relacionados à sua condição de vida na natureza ou mesmo em situações extremas como no caso de desastres naturais.
Luciano explica que a vida dos animais que vivem na natureza geralmente também é muito ruim. “A imensa maioria dos animais sencientes na natureza são pequenos invertebrados e filhotes que geralmente nascem apenas para experimentar sofrimento extremo e morrer muito prematuramente”, lamenta o pesquisador. Ele explica que no mundo selvagem predominam as doenças, epidemias, parasitismo, acidentes, conflitos entre animais por disputa de recursos, entre outras problemáticas que os animais precisam enfrentar e que poderiam ser minimizadas com a ajuda da ciência humana.
Um exemplo que traz Oscar são programas de vacinação de animais selvagens que desde os anos 70 são feitos com o objetivo de prevenir doenças transmissíveis aos seres humanos, como a raiva. “Em muitos países eles distribuem bolachas que têm o cheiro e o sabor que os animais selvagens gostam com a vacina da raiva. Isso ajuda muito a esses animais e demonstra que é possível ajudá-los ao mesmo tempo que ajudamos aos seres humanos”, explica o filósofo.
Argumentos especistas e antiespecistas
Existem vários argumentos que buscam defender o especismo, justificando que os seres humanos ocupam um lugar superior porque cumprem com determinados critérios e, portanto, seus interesses deveriam importar mais que os das demais espécies.
Ao mesmo tempo, o movimento antiespecista se dedica a refutar esses argumentos e apontar falhas que os invalidam. Aqui compartilhamos alguns deles:
Capacidade cognitiva
O argumento especista afirma que o ser humano possui uma inteligência ou capacidades cognitivas superiores aos demais animais. O movimento antiespecista, por sua vez, defende que essa hipótese justificaria a exploração por parte dos mais inteligentes, ou seja, a grande maioria da humanidade teria que subordinar seus interesses a uma minoria de pessoas com capacidades geniais. Além disso, esse argumento valida a exploração de seres humanos com menor capacidade cognitiva, como crianças ou pessoas com necessidades especiais.
Capacidade emocional
Outro argumento apresentado pelos especistas é o de que os animais não possuem capacidade de sentir como os seres humanos. O movimento antiespecista, por sua vez, argumenta que pesquisas comprovam já que cientificamente que os animais são seres complexos, conscientes e sencientes, ou seja, podem experimentar sofrimento ou prazer, diferentemente das plantas e outros seres vivos como fungos, cujos organismos não possuem a capacidade de sentir.
Relações de solidariedade
Os especistas também defendem que os seres humanos possuem relações emocionais de simpatia e solidariedade entre pares, razão que explicaria porque é natural priorizar membros da nossa própria espécie em detrimento das demais. Em oposição, os antiespecistas afirmam que esse argumento poderia justificar atitudes racistas ou outros tipos de discriminação porque uma pessoa poderia sentir solidariedade somente em relação ao grupo ao que pertence e não à toda humanidade.
Consumo de carne vs consumo de proteína
Um dos principais argumentos especistas é o de que os seres humanos precisam consumir carne para sobreviver. Já os antiespecistas, entretanto, garantem que esse é um mito que já foi comprovado pela ciência.
Como afirmam os antiespecistas, como somos capazes de processar alimentos tanto de origem animal como vegetal, nós seres humanos podemos sobreviver comendo os alimentos que temos à disposição. Em outras palavras, somos “alimentadores oportunistas”. Como é explicado no artigo, todas as evidências indicam que a dieta humana é onívora e portanto inclui a carne. Porém, nada indica que precisamos da proteína animal. Temos escolha.
Ainda as principais organizações de dietistas do mundo indicam que a alimentação vegana é perfeitamente saudável, e muitas pessoas em todo o mundo têm vivido de maneira saudável sem consumir produtos derivados de animais durante toda a sua vida.
Poder pela força
Um argumento especista diz que os seres humanos são mais fortes e, portanto, têm a capacidade e o direito de explorar os animais. Para os antiespecistas, esse é um argumento que poderia justificar a exploração entre seres humanos com base na força física de cada um.
O antiespecismo no mundo
Segundo dados da FAO e estimativas de pesquisadores, no mundo anualmente são mortos entre 1 e 3 trilhões de peixes e outros animais aquáticos capturados diretamente no mar, o que representa entre 94 e 98% de toda a exploração animal. Outras centenas de bilhões de peixes criados em cativeiro, mamíferos e aves também são mortos para satisfazer demandas humanas.
Foto: Wexor Tmg/Unsplash.
Embora nunca antes os animais tenham sido explorados de maneira tão massiva, há cada vez mais pessoas levando em consideração seus direitos, informando-se e procurando maneiras de agir frente às consequências do especismo. “Mesmo que o trabalho seja mais difícil por causa do aumento da exploração animal, cada vez há mais pessoas que trabalham nisso não só a título individual, mas cada vez há mais projetos, organizações, etc. O tema também está sendo levado ao âmbito político e legislativo. Há muitos avanços.”, celebra Oscar.
Embora não exista nenhum país ou região do mundo totalmente antiespecista, algumas medidas e legislações já foram adotadas para combater o especismo, fomentadas por ativistas e organizações que levantam questionamentos e exigem respostas em todo o mundo.
Alguns exemplos são a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, assinada em 1978 pela Unesco, e legislações que proíbem o teste em animais para cosméticos aprovados em 2003 pelo Parlamento da União Europeia e em 2013 por países como a Índia, Austrália, Noruega, Israel e Nova Zelândia. Outras medidas antiespecistas que alguns países ou regiões tomaram são a proibição de circos com animais ou outras formas específicas de combate à exploração, embora nem sempre essas políticas públicas ou leis sejam levadas à prática.
Para Luciano não é possível falar de um movimento antiespecista no Brasil, mas sim da atuação de algumas organizações e ativistas que defendem o antiespecismo. Em termos de legislação, nosso país se assemelha ao restante do mundo, já que os animais não humanos não possuem direitos legais porque são colocados na categoria jurídica de itens de propriedade dos humanos. Como as pessoas têm o direito de explorarem os seus itens de propriedade, a exploração animal na realidade é legal.
“Para que isso mude, em termos jurídicos, seria necessário retirar os animais não humanos da categoria de itens de propriedade. Mas, uma mudança na lei só ocorrerá depois que houver uma pressão social para isso. E, essa pressão social só existirá quando existir uma ampla rejeição do especismo por parte da sociedade. Por isso, é tão importante a divulgação das razões para se rejeitar o especismo”, defende Luciano.
Para a advogada Mayara Pellenz, a lei e a sociedade brasileira têm avançado nessa temática. Ela lista várias leis já aprovadas, como o Código Estadual do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul, o Código Estadual de Proteção aos Animais de Santa Catarina e o Código do Bem-Estar Animal da Paraíba, que defendem especialmente os direitos dos animais domésticos ou de estimação. Outro aspecto positivo, segundo a advogada, foram as decisões do Supremo Tribunal Federal de considerar como inconstitucionais práticas como a rinha de galo e a farra do boi. “Trata-se do Poder Judiciário salvaguardar princípios éticos e igualitários que garantam uma sociedade justa, com respeito e dignidade para todos os seres vivos”, celebra ela.
Porém, Mayara também afirma que vários argumentos contrários ainda são muito utilizados para impedir uma plena concessão de direitos aos animais. Exemplos como a impossibilidade dos animais de estabelecer negócios jurídicos ou interferir na sociedade, como votar, casar ou adquirir bens, não lhes confere suficiente relevância para contar com direitos próprios.
“Ainda alega-se que o fato dos animais não compreenderem o que são direitos é fator determinante para impossibilitar a sua concessão. Outro argumento baseado na incapacidade de entendimento dos animais acerca de direitos defende que eles não respeitam o ordenamento jurídico dos humanos, e, por esta razão, não podem ter direitos.”, contou Mayara em entrevista ao Politize!.
Desafios do antiespecismo hoje
Para Oscar, um dos principais desafios do movimento antiespecista hoje está em combater a invisibilização do movimento e formar e capacitar mais pessoas para que se sintam parte de uma ação global e relevante. Ademais, ele explica que além de ações que geram efeitos no curto prazo, é preciso também pensar no futuro, quando novas tecnologias poderiam surgir causando ainda mais sofrimento e morte entre os animais. “Se não há uma consideração moral em relação a seres que podem sentir assim como nós, os danos que fazemos nos animais hoje sejam pequenos em comparação com os danos que podem surgir no futuro”.
Luciano agrega outros desafios, como a necessidade de aclarar o antiespecismo para muitas pessoas que se consideram defensores dos direitos dos animais, mas que negligenciam problemas enfrentados pelos animais na natureza ou até mesmo defendem práticas ambientalistas que são extremamente prejudiciais aos animais por não entender que a consideração pelos animais e o ambientalismo partem de fundamentos opostos.
“A consideração pelos seres sencientes é fundada na preocupação com o bem de cada indivíduo que pode ser afetado negativa ou positivamente. Já a maioria das vertentes do ambientalismo é fundada na ideia de que o que importa são totalidades como espécies ou ecossistemas, e não os indivíduos. Assim sendo, defendem que não há nada de errado em causar sofrimento e morte aos animais não humanos, desde que isso não extinga a espécie ou o ecossistema.” explica.
Alguns exemplos dessas que dá o pesquisador são a experimentação animal para testar o efeito de produtos químicos no ambiente e a matança de animais que não pertencem às espécies nativas de certo local, com o objetivo de manter a “pureza” das espécies.
Quero conhecer mais do movimento antiespecista, o que posso fazer?
Alguns portais interessantes de acompanhar são:
Luciano também recomenda esses textos para entrar em contato com a temática: o que é o especismo, como ele é defendido, e que argumentos existem para rejeitá-lo.
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REFERÊNCIAS
Portal “Ética Más Allá de la Especie”: Una Introducción
Jornal The Guardian: All beings that feel pain deserve human rights
Portal The Vegetarian Resource Group: Humans are Omnivores
Portal Ética Animal: Especismo
Portal Sociedade Vegan: O que é o especismo?
Revista Libertalia: Contra el especismo: Charla con Óscar Horta
Portal FAO: Global Capture Production 1950-2018
2 comentários em “O que é especismo? E o movimento antiespecista?”
Muito bom o texto, algo mais aprofundado do que encontramos na internet. Bom para os jovens ecosocialistas!
Que texto excelente! Aborda o tema com profundidade e seriedade!