As cidades começaram a se tornar a forma mais comum para se viver no século XX. Até a metade do século XXI, assistiremos a um fenômeno espantoso: estima-se que 2/3 das pessoas estará nas cidades, com 3 bilhões de pessoas podendo viver em comunidades precárias.
Esse cenário exige que seja discutido o planejamento urbano. Ou, mais especificamente, um novo conceito de cidade: as cidades inteligentes.
Neste texto você vai descobrir o que elas são, como funcionam e como podem nos ajudar a gerar qualidade de vida.
O que é uma cidade inteligente?
A resposta ainda não é muito clara e pode nos confundir, portanto aqui daremos um conceito mais amplo. Vamos seguir um raciocínio. Tente responder a uma pergunta: qual o seu conceito de inteligência? Pode pensar naquele que usamos para pessoas mesmo. Pode ser que você tenha pensado em características do físico alemão Albert Einstein, ou algum sábio do passado, como o filósofo Platão. E isso é normal.
Muitas pessoas associam ser inteligente com uma ideia fixa, como a habilidade de fazer contas ou ler livros complexos. Nas últimas décadas, alguns autores apresentaram novas formas de inteligência: Daniel Goleman popularizou o termo inteligência emocional; o psicólogo Howard Gardner criou a teoria das inteligências múltiplas.
Seja qual for a forma de inteligência, um elemento sempre aparece: a capacidade de resolver problemas. Ou seja, o que fazemos com nossas habilidades.
Ao falarmos de cidades inteligentes, a mesma coisa acontece: pensamos em cidades com muitas tecnologias, como inteligência artificial. Mas podemos aplicar a mesma definição que usamos para pessoas. Isso, inclusive, é parte da definição utilizada pela consultoria McKinsey&Company:
‘‘Inteligência’ não significa simplesmente instalar interfaces digitais em infraestruturas tradicionais ou agilizar as operações da cidade. Ela também significa utilizar tecnologia e dados com propósitos claros para tomar decisões mais acertadas e melhorar a qualidade de vida de todos.’’
Da definição acima, também não podemos deixar de lado uma mudança enorme dos últimos anos: a enorme quantidade de dados que estamos gerando e nossa capacidade para analisá-los.
Há pesquisas que mostram que quase todos os dados existentes hoje foram criados nos últimos dois anos!. Se tiver tempo, busque no Google Trends (ferramenta do Google que mostra popularidade de palavras-chave ao longo do tempo) funções relacionadas com análise de dados, como “Data Science”
E não é à toa. Dados já podem ser analisados em tempo real, tornando decisões mais eficientes e rápidas. Essa dinâmica tem mudado não só a forma com que governos e empresas tomam decisões, mas também como nos relacionamos. E é uma variável importante.
Como veremos a seguir, podemos planejar cidades para gerar benefícios em quase todas as áreas essenciais de nossa vida.
Quer entender mais sobre cidades sustentáveis? Confira o conteúdo do Projeto Direito ao Desenvolvimento: Você sabe o que são cidades sustentáveis? Entenda o ODS 11!
Importância das cidades inteligentes
É muito comum que venha na nossa cabeça a imagem de shoppings, empresas ou eventos públicos, ao pensarmos em inovação e inteligência. Mas será que as cidades podem ser construídas para todos? E até mesmo resolver problemas de pessoas comuns?
A consultoria McKinsey fez uma pesquisa muito interessante sobre como uma cidade inteligente pode ser essencial. Analisando relatórios e estudos de caso, eles estimaram o quanto a adoção de medidas tecnológicas inteligentes poderia melhorar indicadores em diversas áreas. Seja, por exemplo, diminuindo o consumo de água ou aumentando a criação de empregos formais. O resultado, explicado a seguir, é bem expressivo:
Fonte: McKinsey Global Institute analysis
O infográfico, em sentido horário, indica melhorias nas áreas de:
economia de tempo das pessoas (time and convenience)
segurança (safety)
custo de vida (cost of living)
empregos (jobs)
conexão social e participação cívica (social connectedness and civic participation)
qualidade do meio-ambiente (environmental quality)
saúde (health)
“O estudo chegou a apontar que o uso de tecnologias para uma cidade inteligente poderia melhorar indicadores de 10% até 30%.”
Quase todas as áreas da nossa vida podem ser impactadas por novas tecnologias. Pense em como as cidades mudaram a mobilidade com aplicativos como o Uber e Waze. Ou com serviços de entregas, como Amazon, Ifood, e por aí vai..
Além de melhorar na eficiência dos serviços, as cidades também podem ser responsáveis por promover um ambiente de comunidade, com pessoas compartilhando experiências e serviços. Aliás, o projeto de planejar as cidades para serem mais sociais entra em um novo conceito de organização econômica: a economia colaborativa.
Na visão de de vários especialistas, como Paul Collier, o professor de economia de Oxford, esse novo modelo é essencial ética e financeiramente.
Mas, antes de começar a apontar caminhos, vamos entender rapidamente onde estamos, aqui no Brasil.
Qual o nível de inteligência das cidades brasileiras
É muito difícil responder essa questão pela enorme quantidade de municípios no nosso país. Segundo o IBGE, são aproximadamente 5570. E a variação entre essas cidades são enormes.
Mas é possível perceber um padrão. Geralmente, regiões metropolitanas estão começando a se abrir para novas tecnologias e formas de planejamento. Cidades do interior, menos populosas e com menos recursos, estão em situação mais crítica. Um programa de auxílio da União é um dos caminhos gerais apontados por especialistas.
O desafio é traçar um caminho para espalhar as inovações. Empresas podem ajudar. Integração entre setores públicos também. Como? Podemos entender isso através de alguns exemplos ao redor do mundo.
5 formas práticas de se tornar uma cidade inteligente
Primeiro, é preciso dar uma informação importante: as soluções apresentadas são em sua maioria esforços governamentais. Mas a cultura empreendedora, a inovação e a parceria com empresas são essenciais para que as cidades inteligentes se tornem realidade.
1) Desenvolvimento sustentável
Já mostramos os principais desafios ambientais que muitas cidades enfrentam. Com a vida cada vez mais nas cidades, os problemas que surgem ficam piores, pois mais lixo e poluição são gerados, mais rios são contaminados e por aí vai.
Alguns estudos mostram a relação entre um meio ambiente sustentável e nossa saúde, usando como métricas doenças respiratórias ou a expectativa de vida. A poluição, por exemplo, pode ser mais danosa que o cigarro!
Portanto, é literalmente uma questão de vida ou morte que pensemos em uma cidade que seja planejada para atuar nessas questões.
A cidade de Vancouver, no Canadá, é um dos grandes destaques no campo. Com metas bem feitas e mudanças culturais na população, a cidade almeja ser a mais verde do mundo até 2050.
Dentre as medidas, está zerar a emissão de gás carbônico e não produzir mais lixo. Outra coisa interessante é a opção por uma cidade com mais transportes coletivos e bicicletas, em vez de carros.
Apesar de podermos pensar que isso acontece pelo contexto do Canadá, de país desenvolvido, as medidas citadas acima são práticas, podendo ser feitas na maioria dos municípios brasileiros.
2) Bueiros inteligentes
Se você acompanha o noticiário, todo ano acompanha o drama de famílias que perderam seus bens e ficaram desalojadas em enchentes. O filme sul-coreano Parasita, ganhador do Oscar de melhor filme em 2020, aumentou essa discussão, nos fazendo perceber que esse é um drama global.
Uma solução é o bueiro inteligente, com sensores, conectados a um sistema, para informar quando ele está se enchendo. O sistema pode levar uma equipe de limpeza para o local para resolver o problema com muito mais eficiência. É o que explica Carlos Chiaradia da Net Sensors, empresa especializada na tecnologia. Isso já está acontecendo em cidades como o Rio de Janeiro. Soluções semelhantes estão sendo usadas em várias regiões do país.
3) Sistema integrado de saúde
Nairóbi, capital do Quênia, é uma das cidades mais populosas da África Oriental. Em constante crescimento, também é um dos lugares que mais precisam de soluções inteligentes.
Na área da saúde, a cidade tem um desafio muito interessante. Segundo Caitlin Dolkart, fundadora da Flare, empresa de tecnologia em emergências, não há falta de recursos, como ambulâncias e hospitais. O problema é a falta de um sistema para coordenar as operações.
Eles montaram um aplicativo, semelhante ao Uber, para resolver o problema: conecta pacientes com médicos ou auxiliares, aumentando a rapidez e a eficiência de um serviço.
Se você não lembra, essa lógica de um sistema para coordenar os dados em tempo real também foi usada para a solução de bueiros inteligentes. A mesma lógica pode ser usada em outros campos, como a segurança pública, conectando viaturas e emergências, como no caso de violência doméstica.
4) Prédios planejados
Falando em segurança pública, uma cidade com resultados fantásticos na área foi Medellín, na Colômbia. Antes denominada cidade do crime, fama gerada pelo famoso traficante Pablo Escobar, nos últimos anos Medellín foi eleita a cidade do ano em 2013.
Poderíamos escolher vários setores em que a cidade se destacou. Um deles foi o setor imobiliário. Aliás, já recebeu o que arquitetos chamam de ‘’prêmio nobel do urbanismo’’, o Lee Kuan Yew World City Prize.
Isso acontece pela cultura empreendedora dos últimos anos. O setor recebeu inovações significativas, como prédios projetados para tratamento de esgoto e para gerar sua própria energia, usando a luz do sol.
5) Transparência do Governo
Sistemas de participação e inclusão das pessoas em decisões públicas, diminuição da burocracia e de fiscalização em geral transcendem as cidades, se espalhando rapidamente para todo o país. É o caso da Estônia.
O país digitalizou alguns dos principais serviços em que o cidadão interage com o governo: sistema de votação, pagamento de impostos e abertura de negócios são só alguns exemplos.
O Politize! fez um conteúdo interessante sobre.
Se temos as informações de o que está sendo gasto com o que, fica muito mais fácil exercer a cidadania. No Brasil, apesar de termos muitas informações, o acesso é difícil, e poucos brasileiros têm o costume de acessar portais de governo para extrair esses dados. Mas existem algumas iniciativas interessantes aqui.
Podemos pensar em inúmeras outras áreas essenciais que poderiam se beneficiar com cidades mais planejadas, como educação e cultura. Mas, ainda que seja desejável uma cidade com mais tecnologias, temos que pensar nos problemas que o processo pode gerar.
Quais os riscos no processo
Uma cidade inteligente, na grande parte das vezes, irá usar dados para tomar decisões. A lógica é simples: se temos dados das pessoas, espaços e organizações, podemos diagnosticar o problema com mais precisão e tomar decisões melhores.
No entanto, temos que adicionar uma variável: a privacidade. Os dados se tornaram uma mercadoria e podem ser usados para diferentes fins. Além disso, os ataques de Hackers também são uma preocupação.
O Brasil tem regulamentos importantes sobre o tema (o Politize! fez um conteúdo bem bacana sobre a Lei de proteção de dados).
Mas ainda temos problemas em definir o que são dados pessoais, como eles podem ser utilizados e como proteger adequadamente a privacidade.
Essa incerteza quanto a dados é sentida pelas pessoas. Um estudo feito pela multinacional IBM mostra que o brasileiro não confia que seus dados estão de fato protegidos.
E precisamos encarar outro ponto importante: pra quem serão construídas as cidades? Como sabemos, há interesses privados em grande parte das intervenções públicas. Quem produz a tecnologia, quem aprova o plano, quem executa, quem tem poder de influenciar…
Saber colocar o interesse das pessoas para que a cidade inteligente seja para cidadãos inteligentes é o mais importante.
Essas são, portanto, questões que não podemos fugir, daqui pra frente.
Conclusão
Já deu para perceber que temos muito a ganhar com cidades inteligentes, né? Elas serão, possivelmente, as grandes inovações políticas do século XXI. O interessante é que, quando pensamos em política, é muito comum que pensemos em ações do Governo Federal. Mas, ironicamente, talvez a política nacional dê mais espaço a outras igualmente importantes.
É possível que os principais desafios do futuro sejam desafios globais (epidemias, redes sociais, imigração) ou locais (meio ambiente, mobilidade, sistemas de educação e saúde).
Pensar em desafios globais poderá ser pensar em políticas locais, e vice-versa.
Portanto, se conseguirmos compartilhar informações e projetos, iremos dar um passo inicial importante. E fica a reflexão: como sua cidade poderia entregar soluções mais inteligentes para as pessoas? A resposta para essa pergunta pode guiar a nossa qualidade de vida nos próximos anos.
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REFERÊNCIAS
Artigo da ONU sobre relatório de desenvolvimento sustentável
Vídeo do psicólogo Daniel Goleman sobre inteligência emocional
Vídeo do psicólogo Howard Gardner sobre a teoria de inteligências múltiplas
Artigo do McKinsey&Company sobre o relatório do McKinsey Global Institute
Artigo do Media Post sobre relatório da IBM Marketing Cloud (em inglês)
Relatório do McKinsey Global Institute
Artigo do Politize! sobre economia colaborativa
Entrevista do Gaúchaz com o economista Paul Collier
Artigo da Folha sobre a distribuição da população brasileira
Vídeo do professor da FGV Ivar Hartmann sobre cidades inteligentes
Artigo do Politize! sobre meio-ambiente
Artigo da Revista Galileu sobre estudo de poluição
Podcast “Em movimento” da GloboNews sobre cidades inteligentes
Artigo do UOL comparando o filme “Parasita às chuvas em São Paulo
Vídeo do CanalTech sobre bueiros inteligentes
Reportagem do The Economist sobre cidades inteligentes (em inglês)
Artigo do Politize! sobre violência doméstica
Artigo do Exame sobre Medellín
Artigo do SãoPauloSão sobre Médellín
Artigo do Politize! sobre a digitalização do governo na Estônia
Artigo do Politize! sobre governo online
Artigo do Politize! sobre a Lei de proteção de dados
Estudo da IBM sobre confiança dos brasileiros no uso responsável de dados pelas empresas