A década de 1980 é famosa nos livros de história de vários países latino-americanos. Chamada de “década perdida“, esse período se tornou um grande marco também no Brasil, especialmente por ter sucedido o que ficou conhecido como “milagre econômico brasileiro”. Mas para entender como começou a crise que atingiu praticamente toda a América Latina, precisamos voltar um pouco no tempo.
A década de 1970 e as crises do petróleo
O período de 1968 a 1973 ficou conhecido no Brasil como “milagre econômico”. De fato, foi um período próspero em que houve simultaneamente forte crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) (média de 11% ao ano), redução gradual da inflação e melhora na relação entre exportação e importação (GIAMBIAGI et al, 2016). No entanto, esse movimento da economia se sustentou essencialmente com a ajuda de capital externo, ou seja, recursos vindos de fora do país. Na prática, o Brasil estava se endividando para acelerar projetos internos como a construção de estradas e grandes obras de infraestrutura.
Nessa época, muitos investidores externos estavam dispostos a colocar seus recursos em terras brasileiras, já que os governos militares estavam promovendo diversas reformas que tornavam a economia mais aberta e facilitava o trânsito de capitais. Em 1966, antes do início do período de grande crescimento, a dívida externa bruta era de cerca de US$3,6 bilhões e, em 1973, passou a aproximadamente US$12,5 bilhões.
Tudo mudou ao final desse ano, quando um conflito político no Oriente Médio abalou a economia mundial. Conhecido como “primeiro choque do petróleo“, os membros da Opep (Organização dos países exportadores de petróleo) e principais produtores desse bem tomaram a decisão de reduzir a produção e, consequentemente, a oferta, como uma retaliação aos principais países ocidentais europeus e aos Estados Unidos.
O resultado não poderia ser outro: em poucos meses, o preço do barril de petróleo quase quadruplicou. Era uma época de crescimento na demanda puxado pelo avanço do setor industrial dos países em desenvolvimento e pela já consolidada indústria dos países desenvolvidos. Como esperado, os mais afetados foram aqueles cuja necessidade de importação era maior e o Brasil era um deles. Ao mesmo tempo em que o consumo subiu de 21 milhões de m³ para 46 milhões de m³ entre 1967 e 1973, a necessidade de importação aumentou de 59% para 81% de tudo o que era consumido internamente no mesmo período (GIAMBIAGI et al, 2016).
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Apesar das dificuldades em se manter a importação com os preços altos, o governo brasileiro à época optou por custear parte do aumento para que a população não sofresse os impactos imediatos nem ficasse desabastecida. Novamente, grandes volumes de recursos estrangeiros adentraram o país para financiar o desenvolvimento dos setores de energia, transportes e a indústria de base visando uma maior independência em relação às importações no médio prazo.
Entre 1974 e 1982, o governo acumulou uma dívida externa de aproximadamente US$80 bilhões, sendo que US$50 bilhões foram destinados aos investimentos e US$30 bilhões apenas para arcar com os custos do petróleo. Os tempos ainda eram bons para o mercado de capitais, havia recursos de sobra circulando pelo mundo.
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Em 1979, no entanto, uma nova decisão da Opep traria o segundo choque do petróleo. Por decisão desse grupo de produtores, o preço do barril saiu de aproximadamente US$13,90 para US$35,69 em 1980 (GIAMBIAGI et al, 2016).
A década de 1980 e a crise da dívida externa
Diante da nova crise, os aumentos de preços se somaram ao aumento das taxas de juros nos países industrializados como tentativa de conter a inflação que estaria por vir. Especialmente esse fator foi crítico para os países latino-americanos, já que suas dívidas eram, em sua maioria, contratadas em dólar e a taxas de juros flutuantes (que poderiam variar ao longo do período do empréstimo).
Segundo Giambiagi et al (2016), antes do choque, os principais bancos americanos trabalhavam com uma taxa de cerca de 8% ao ano nos empréstimos internacionais. Já em 1981, essa média saltou para cerca de 19% ao ano.
A situação ainda foi agravada por outros motivos: a recessão internacional diminuiu a demanda por produtos exportados pelos países latino-americanos, o patamar elevado de juros dificultou a obtenção de novos empréstimos para “rolagem” da dívida (na prática, contrair um empréstimo com outro credor para pagar o antigo e assumir uma dívida nova) e ainda direcionou para os países industrializados o que restava dos fluxos de capital no mundo. Não levou muito tempo até que os países latino-americanos se vissem sem alternativas.
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Já em 1982, o México foi o primeiro a declarar moratória, ou seja, assumir diante de seus credores que não seria capaz de pagar sua dívida. Definitivamente, foi a partir daí que os fluxos de investimento cessaram. Seguiram-se as declarações do Brasil, em 1987, e da Argentina, em 1988. O que se viu a partir de então foram sucessivas tentativas de se renegociar as dívidas pendentes, que continuavam crescendo e alcançaram, em 1987, cerca de 57% do PIB de todos os países da América Latina em conjunto.
Por que a década foi perdida?
Diante da grave situação econômica interna e externa, o governo brasileiro decidiu adotar medidas mais duras que resultaram em um encolhimento do PIB em cerca de 2% ao ano entre 1981 e 1983. Entre elas, ao final de 1982, o Brasil assumiu uma dívida de US$4,2 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que fez novas exigências de controle das contas e políticas do governo (GIAMBIAGI et al, 2016).
Até 1984, muito foi feito na tentativa de ajustar as contas: houve aumento das taxas de juros internas, redução do crédito ao setor privado, desvalorização da moeda nacional, elevação da carga tributária, drástica redução dos investimentos públicos e consequente aceleração da inflação, que viria a ser um dos maiores desafios dos anos seguintes.
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O descontrole inflacionário, que alcançou patamares de quase 2000% ao ano ao final da década de 1980, perdurou por muitos anos e resistiu a várias tentativas de estabilização da economia. Entre 1986 e 1994, foram 7 tentativas. Diversas vezes, a população viu os preços e os salários sendo congelados, a moeda ser substituída por outra, as prateleiras ficarem vazias, as filas nos supermercados se formarem e o dinheiro perder seu valor do dia para a noite.
Apenas em 1994, com o Plano Real, foi possível controlar a hiperinflação. Nesse mesmo ano, o Brasil conseguiu uma negociação importante com os credores que permitiu reduzir o montante da dívida e contribuiu para a estabilização que se buscava (GIAMBIAGI et al, 2016).
As consequências da intensa crise vivida durante a década de 1980 demorariam para ser superadas. Alguns indicadores, como o PIB e os rendimentos reais, começaram a se recuperar após o Plano Real e o movimento de abertura financeira, mas não houve melhora no desemprego.
O ciclo de crescimento que havia se iniciado em 1994 começou a sofrer desacelerações já em 1997, quando o arranjo de manutenção do câmbio a um valor fixo cobrou seu preço. O resultado foi uma nova crise e a mudança no regime de câmbio, que passou a ser flutuante, como uma tentativa de garantir equilíbrio às contas e crescimento à economia.
O fato é que o Brasil continuaria a ter dificuldade para manter uma taxa de crescimento tão consistente quanto aquela observada nos quase 50 anos entre 1930 e meados da década de 1970. Os ciclos de crescimento se tornaram menores, as crises, mais frequentes. O desafio de voltar a crescer ainda está aí.
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REFERÊNCIAS
Apontamentos sobre a dívida externa na América Latina
GIAMBIAGI et al. Economia brasileira contemporânea (1945 – 2015). 3ª edição. Rio de Janeiro, Elsevier, 2016.
Guerra do Yom Kippur e a Crise do Petróleo
O lado obscuro do “milagre econômico” da ditadura: o boom da desigualdade
Os principais planos de combate à inflação no Brasil moderno