Polarização e cultura do cancelamento: qual a relação?

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Este conteúdo foi desenvolvido como parte das ações para o #festivalnãomecancela

Pontos de interrogação sobre uma superfície sólida. Imagem ilustrativa, Foto: Pixabay.
Imagem ilustrativa. Foto: Pixabay.

Você já cancelou alguém? Ou talvez já tenha sido cancelado? Se você não está familiarizado com a cultura do cancelamento, nesse texto vamos te explicar do que se trata, suas repercussões em nossa sociedade, e sua relação com a polarização política. 

O que é a cultura do cancelamento?

Cancelar alguém significa boicotar essa pessoa, normalmente um artista ou celebridade, por algo que tenha dito ou feito e que seja considerado moralmente errado ou politicamente incorreto de acordo com os padrões do grupo no qual você está inserido

Por um lado, o cancelamento surge como forma de repudiar atitudes racistas, machistas, homofóbicas e outros costumes tóxicos que nossa sociedade carrega há anos. A desconstrução dessas tradições preconceituosas tem levado as pessoas a se questionar e condenar falas ou ações intolerantes.

Porém, por outro lado, muitos também se perguntam se a cultura do cancelamento não estaria gerando uma ideia de que as pessoas devem ser perfeitas e que errar não é aceitável, levando a uma polarização das ideias e se afastando do debate construtivo. Vamos nos aprofundar nesses tópicos agora!

Como cancelo alguém?

Quase sempre o cancelamento se canaliza através das redes sociais, nas quais as pessoas condenam a ação ou fala da pessoa cancelada. Cancelar também está muito associado ao financiamento do trabalho do outro, já que ao cancelar alguém me comprometo a deixar de consumir os produtos ou serviços que essa pessoa oferece. Se estamos falando de um escritor, significa deixar de comprar seus livros, ou se é um cantor, não vamos mais a seus shows, e por aí vai. 

Nessa matéria do Estado de Minas encontramos uma definição bem precisa do que é o cancelamento: “Deixar de consumir seus produtos, corromper sua imagem, perturbar sua atividade até que se redima, até que peça perdão ou tente compensar sua ação.” 

Para causar um efeito realmente massivo, é preciso que muitas pessoas se unam ao cancelamento e, quando este se torna viral, a pessoa cancelada pode vir a sofrer vários prejuízos financeiros e sociais, como perder seguidores, clientes, contratos, patrocinadores, entre outros.

Um exemplo muito recente da cultura do cancelamento aconteceu durante a edição 21 do Big Brother Brasil, quando vimos a cantora Karol Conká sofrer cancelamento devido a suas atitudes e posicionamentos no programa. Como consequência, a artista perdeu mais de 500 mil seguidores em suas redes, o que provavelmente também impactou outros aspectos de sua carreira. 

Mas por que cancelar alguém?

A mesma matéria do Estado de Minas citada anteriormente aponta que muitas pessoas encontram na cultura do cancelamento uma fonte de poder. Antes, somente alguns poucos indivíduos muito populares podiam chegar a uma grande quantidade de pessoas; agora, graças à internet, muitos de nós podemos nos posicionar e até mesmo chegar a ter um alcance global. “O tempo em que as pessoas eram tratadas de maneira injusta e incapazes de responder a opiniões atrasadas e tóxicas acabou”, ressalta Lisa Nakamura, professora da Universidade de Michigan, em entrevista ao jornal.

Nesse sentido, cancelar uma figura pública surge como uma forma de manifestar que estamos contra a forma como essa pessoa atua e queremos que ela saiba. Como autoridades e figuras públicas muitas vezes estão distantes da maioria das pessoas e não é fácil entabular uma conversa com elas, a mobilização gerada a partir do cancelamento se tornou uma ferramenta para alcançar aqueles que muitas vezes estão protegidos por seu status social. 

Quando surgiu a cultura do cancelamento?

Em um vídeo publicado em fevereiro, a criadora de conteúdo Maíra Medeiros comenta que a cultura do cancelamento existe há anos, ainda que somente agora esse término tenha se tornado conhecido. Ela dá como exemplo a polêmica que ocorreu em 2009, quando o cantor Chris Brown agrediu fisicamente a sua namorada na época, a também cantora Rihanna. Naquela época, muitos fãs deixaram de apoiar o artista por causa desse crime.

Mais recentemente, um dos movimentos que marca o início da cultura do cancelamento segundo especialistas foi o #MeToo, mobilização global que surgiu em 2017 como uma forma para expor relatos de assédio e agressões sexuais por diversas mulheres, famosas ou não, através das redes sociais. 

Em nosso contexto cada vez mais hiperconectado, muitos movimentos como o feminista, o LGBTQIA+ e outros encontram no ciberativismo uma forma de fortalecer suas ações e propagar suas ideias, já que o universo online oferece um espaço mais democrático para expor suas opiniões. “O cancelamento envolve uma certa mobilização”, explica Thiago Soares, pesquisador e professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Pernambuco, em entrevista ao portal Brasil de Fato: “Como a gente está vivendo em rede, a gente se articula com outras pessoas para cancelar o outro que a gente julga ter uma atitude errada”.  

Em 2019, o dicionário Macquarie definiu a “cultura do cancelamento” como o termo do ano. Essa publicação escolhe anualmente a palavra ou expressão que mais moldou o comportamento humano, e a crescente repercussão do cancelamento garantiu seu lugar na primeira posição há dois anos.

E cancelar realmente surte efeito?

Há vários exemplos de celebridades canceladas nos últimos anos. Nesse artigo do portal VICE, a autora faz uma análise do processo de cancelamento que sofreu a comediante Jess Hilarious por causa de uma reação preconceituosa que a artista teve contra pessoas da religião Sikh que embarcaram no mesmo voo que ela. No início, a comediante disse que não se importava com a opinião dos outros e ignorou o cancelamento, mas com o crescimento das notas de repúdio e a perda de seguidores, ela publicou um vídeo se desculpando e se comprometendo a fazer uma doação a famílias vítimas de tiroteios em mesquitas. 

Na mesma matéria, a jornalista entrevista o linguista e autor Edwin Battistella, que explica como o cancelamento exige que as pessoas realmente mudem seu discurso. “Em parte, as pessoas querem se livrar com uma ofensa menor. Se dizem coisas como ‘me confundi’ ou ‘só estava brincando’ ou ‘isso é algo pessoal’, e se as pessoas aceitam essas desculpas, isso na realidade somente encoraja ações assim. Então é positivo quando grupos e indivíduos insistem e dizem ‘essa não é a desculpa que queremos escutar, essa desculpa não diz nada”, defende Battistella.

Outro exemplo que demonstra esse poder do cancelamento citado pelo linguista é o caso do comediante Kevin Hart, que após ter sido anunciado como apresentador do Oscar de 2019, sofreu uma onda de cancelamento por causa de uma série de tweets homofóbicos publicados por ele no passado. Com o impacto da mobilização contrária ao artista, ele terminou sendo substituído na apresentação do evento. 

Esses casos demonstram que em algumas ocasiões o cancelamento leva às pessoas a sofrer consequências por seus erros, admiti-los e até mesmo melhorar suas condutas. Porém, em outros casos, a cultura do cancelamento também pode gerar situações de segregação ou censura, nas quais não há espaço para que a pessoa cancelada possa se defender ou se redimir. Especialistas afirmam que cancelar pode se tornar uma prática de linchamento virtual, no qual usuários fazem justiça com as próprias mãos e agem de forma autoritária e punitiva.

As interações mediadas por tecnologia oferecem um espaço muito bem-vindo de liberdade e facilidade para manifestar nossas ideias. Porém, também pode gerar um efeito de afastamento muito grande entre as pessoas, como explica a doutora em psicologia Fabiane Schütz em entrevista ao portal Uol: “Esquecemos que aquela figura pública é, no fim das contas, gente como a gente, e temos mais dificuldade de empatizar”. 

Relação entre polarização e cultura do cancelamento

É comum ver a cultura do cancelamento atingir uma polarização do debate, no qual vemos pessoas contrárias à atitude de alguém, enquanto outros a defendem. Nesse sentido, surgem duas opções possíveis, como uma ideia de certo e errado, bem e mal, no qual o discurso está tão radicalizado que não há espaço para debate. 

Em seu vídeo, Maíra fala sobre essa polarização que divide as pessoas entre os que cancelaram a pessoa e os que passaram pano pros seus erros. Com essa lógica, somos levados a escolher se excluem totalmente o cancelado de suas vidas ou se escolhem “fazer vista grossa” e deixar o erro passar. “Mas só existem essas duas opções quando a gente fala de close errado? Ou a gente nunca mais fala com a pessoa ou a gente passa pano?”, questiona a criadora de conteúdo, que defende o cancelamento como uma escolha individual que as pessoas deveriam fazer de acordo com seus princípios e suas próprias reflexões sobre o tema em questão. 

Como já falamos nessa matéria do Politize!, essa polarização em excesso compromete o diálogo e a tolerância, já que os dois lados radicalizados se enxergam como inimigos e condenam automaticamente o que o outro lado tem a dizer. “Cada pessoa consolida e reforça as ideias que já tem e passa a ter mais certeza de que está certa em seus julgamentos. As visões discordantes se tornam cada vez mais estranhas, absurdas e, no ponto máximo, inaceitáveis”, explica o jornalista e colaborador do Politize!, Luiz Andreassa.

Fui cancelado. E agora?

Além dos efeitos negativos a nível de carreira, estudiosos também alertam para outros impactos que a pessoa cancelada pode sofrer. “O linchamento moral, com perseguições e ameaças até mesmo às pessoas próximas, pode ocasionar uma série de distúrbios, tais como sintomas de pânico, sintomas ansiosos e depressivos e, em casos mais graves, ideações suicidas. Além disso, para ser aceito novamente, precisa provar que mudou, trazendo uma despersonalização por fazer de tudo para ser aceito na sociedade”, explica a psicóloga Geovana Ortiz em entrevista ao site Santo Portal.

O cancelamento de alguém pode durar dias ou anos, dependendo do interesse público na questão. Hashtags que se tornaram conhecidas e prosperaram ao longo de meses e anos são as globais #BlackLivesMatter e #MeToo, por exemplo. Os holofotes do cancelamento são volúveis e podem iluminar alguém de um dia para outro, deixando no esquecimento aqueles que foram cancelados antes.

Maíra também explica que o cancelamento pode surgir dentro de bolhas: um determinado artista ou celebridade pode ser cancelado por um grupo, mas não necessariamente por todos. Em seu vídeo, ela exemplifica o caso hipotético de um famoso que faz um comentário homofóbico que levaria a comunidade LGBTQIA+ a cancelá-lo, mas poderia acontecer das pessoas fora desse grupo não se somarem à mobilização. Em outras situações, o cancelamento supera essas bolhas e se torna mais generalizado.

O mais importante para superar o cancelamento é que a pessoa vítima dessa mobilização mude seu comportamento e/ou fala e convença o grupo de que está disposta a mudar. “A pessoa precisa realmente admitir o problema do que fez”, pontua Battistella. “Ela precisa dizer que o que fizeram está mal e porque está mal. A outra coisa é dizer que vão mudar de agora em diante.”

Podemos debater ao invés de cancelar?

Do outro lado da questão, é importante também que os canceladores exercitem a paciência, afinal ninguém é perfeito. “As pessoas precisam entender que, às vezes, quem reproduziu uma fala errada está tropeçando na própria violência interna, com questões mal resolvidas internamente, e se transborda em ignorância e mais violência. E responder na mesma moeda significa perder completamente a função social e educativa do cancelamento. Não se trata de inocentar ninguém, se trata de permitir que erros aconteçam e repará-los”, disse o advogado Mateus Catalani Pirani também ao Santa Portal.

Denunciar condutas equivocadas das pessoas ao nosso redor, famosas ou não, é uma prática importante, mas também é o convite à discussão e à reflexão. Estar dispostos a dialogar com o outro para ajudá-lo a entender seu erro e como repará-lo é uma atitude muito significativa para promover a mudança e a tolerância e segundo especialistas, pode ser ainda mais poderosa do que o cancelamento. 

Referências:

Tab Uol – O que a cultura do cancelamento diz sobre nós

Quero Bolsa – Cultura do cancelamento

Canal Tech – Cultura do cancelamento

Estado de Minas – Cultura do cancelamento e polarização

Canal Tech – Cultura do cancelamento eleita o termo do ano em 2019

Brasil de Fato – Cultura do cancelamento: para pesquisador, precisamos lidar com as falhas das pessoas

Vice – O que é a cultura do cancelamento

Santa Portal – Cultura do cancelamento é o ato de calar o outro

Youtube – Passar pano vs Cancelar

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Conteúdo escrito por:
Contadora de histórias formada em Jornalismo pela Unesp. Trabalhou com diferentes equipes em projetos de comunicação para meios, agências, ONGs, organizações públicas e privadas. É natural de São Paulo e atualmente vive em Montevidéu, Uruguai.
Folter, Regiane. Polarização e cultura do cancelamento: qual a relação?. Politize!, 21 de maio, 2021
Disponível em: https://www.politize.com.br/polarizacao-e-cultura-do-cancelamento/.
Acesso em: 23 de nov, 2024.

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