Como parte de uma série de mudanças na mentalidade europeia durante a Idade Moderna (1453-1789), a Reforma Protestante mudou a forma de perceber a Igreja. A relação entre o Sagrado, a Santa Igreja e o Estado passou por uma série de questionamentos nesse momento. E é sobre isso que vamos falar neste conteúdo!
Aqui, o Politize! te explica o que foi a Reforma Protestante e quais as principais mudanças que provocou na sociedade, na Igreja e no Estado.
O contexto religioso europeu
Durante a Idade Média (476-1453), ter terras era sinônimo de influência política. A Igreja Católica de Roma detinha muitas propriedade e, com isso, era uma das principais instituições do período. Essa autoridade vinha também do reconhecimento dos próprios reis e soberanos que enxergavam no Papa e na Igreja uma autoridade não só religiosa, mas também política.
Além disso, as interpretações da Bíblia exerciam grande controle social no período. Práticas como indulgências, por exemplo, eram comuns. Além de gerarem riquezas para a Igreja, essas práticas colocavam nas mãos da Instituição a salvação dos pecados.
Internamente, a Igreja era marcada pela hierarquia. Isso significa que os membros do Clero mantinham uma relação centrada na figura do Papa como líder principal.
De forma geral, essa estrutura hierárquica, as práticas eclesiásticas e as relações políticas levaram ao descontentamento de nomes dentro do próprio Clero. Apesar de essa insatisfação estar presente desde o século XII, foi somente no século XVI que figuras do Clero trouxeram novas ideias sobre as doutrinas adotadas pela Igreja Católica, culminando no movimento que ficou conhecido como a Reforma Protestante.
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Os primeiros reformadores
Já ao final da Idade Média, nomes como John Wycliffe, um professor de Oxford, e Jan Huss, um clérigo da região da Boêmia, hoje parte da República Tcheca, já haviam levantado dúvidas sobre os comportamentos da Santa Sé.
Um dos questionamentos era sobre à leitura biblica, isso porque a Instituição religiosa apresentava uma interpretação oficial das escrituras, mas não permitia a leitura das mesmas. Por isso, John Wycliffe e Jan Huss podem ser considerados os “primeiros reformadores”. Huss, por exemplo, foi queimado e se tornou um dos símbolos da região da Boêmia sendo lembrado até hoje como símbolo nacionalista.
Martinho Lutero
Lutero (1483-1546) era monge agostiniano e doutor em teologia alemã. A partir de suas ideias, surgiu a Igreja Luterana, que até hoje mantêm sua força na Alemanha e em lugares de colônia alemã, até mesmo no Brasil.
Pode-se dizer que foi o incomodo com a prática de vendas de indulgências que o levou a uma intensa pregação, na segunda década de 1500, contra a venda do perdão dos pecados. Tendo uma grande leitura de Santo Agostinho, Lutero acreditava que os pecados não poderiam ser perdoados com base em uma ação mundana, mas somente com a fé à palavra de Deus. Para o monge, a justiça divina não estava na punição, mas na capacidade misericordiosa. Por isso, era crítico ao mercado de indulgências.
Vamos lembrar que o perdão é algo fundamental para a Igreja romana. A ideia da redenção, da mudança e da salvação terrena é algo central na visão católica. Assim, por conta disso, o mercado das indulgências era tão popular, afinal, havia a ideia de que o perdão de Deus era algo possível de conseguir em terra pela ajuda material à Igreja. No Brasil, por exemplo, no período colonial era comum que famílias ricas fizessem doações e financiassem suas paróquias para conseguir a salvação e perdão dos pecados.
Além disso, Lutero também defendia a leitura individual da palavra bíblica e criticava a leitura oficial pela instituição romana. Assim, Lutero pretendia mudar a concepção da Igreja, afastando-se da ideia de Igreja como uma instituição oficial e pregando a noção de Igreja ligada a uma congregação – ou seja, como uma reunião de cristãos para exercer a sua fé. Segundo ele, a Igreja não se tratava de uma instituição capaz de verbalizar a palavra de Deus, mas sim de um conjunto de pessoas reunidas para buscar da fé.
Para que a leitura da palavra fosse possível, Lutero traduziu a Bíblia do latim para o alemão em 1521. Anteriormente, o livro era escrito somente em latim, o que impossibilitava a leitura pela população em geral.
O debate de Lutero contra Müntzer.
Lutero viveu um intenso debate contra outro reformador alemão, mas que ganhou menos importância na história. Müntzer foi um seguidor de Lutero e se afastou completamente do monge ao apoiar os camponeses germânicos na revolta de 1524 a 1525 – a revolta de camponeses tomou conta da região que hoje é conhecida como Alemanha, influenciados por uma visão mais radical do que Lutero tinha sobre as hierarquias sociais. Os camponeses defendiam o fim da servidão e uma permissão para caça em território de controle dos nobres. Lutero era fortemente contra e defendeu a repressão violenta ao movimento.
Mas qual era a diferença entre as ideias dos dois reformadores? Müntzer também não entendia a Igreja como uma instituição que deveria ser responsável pela interpretação da Bíblia. Para ele, a Igreja está no espírito de fé do indivíduo, ou seja, na recomendação interior que pode se manifestar em cada ser humano. Contudo, diferente de Lutero, para Muntzer, essa capacidade de manifestar a fé está em cada ser humano, por isso cada um seria igual perante a Deus. Sendo assim, para ele, hierarquias sociais baseadas em nobreza e clero não eram vistas como justificáveis do ponto de vista religioso.
Aqui vale a pena um adendo importante: esse tipo de justificativa religiosa sobre a igualdade, ou seja, a ideia de que cada um é igual perante aos outros começou também a surgir nesse período. A individualidade e a concepção de igualdade não eram conceitos e valores fundamentais difundidos na mentalidade europeia até o momento – isso porque a comunidade era um valor muito importante para a Idade Média. Assim, a Modernidade começou a introduzir isso pela justificativa religiosa na Reforma.
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Se Müntzer falava da igualdade perante a Deus, Lutero defendia a autoridade do governante com a justificativa religiosa. Segundo Lutero, os cristãos vivem ao mesmo tempo sob o governo de dois reinos.
No primeiro plano, do ponto de vista da religião, a única autoridade é Deus – e aqui está seu choque com a figura do Papa, pois Lutero não vê nele a autoridade para perdoar. De acordo com o Monge:
5 O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por decisão própria ou dos cânones.
6 O papa não pode remitir culpa alguma senão declarando e confirmando que ela foi perdoada por Deus, ou, sem dúvida, remitindo-a nos casos reservados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por inteiro.
(…)
21 Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa.
22 Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida.
O segundo plano é o reino da Terra, esse também tem autoridade de Deus, mas a espada é concedida por Deus ao governante na Terra. Assim, é o rei que deve estabelecer a paz segundo as leis de Deus e ao direito natural, podendo reprimir e coagir as atitudes dos pecadores. É dessa forma, então, que Lutero justifica a autoridade do rei e dos nobres dentro de um bom governo baseado na religião.
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Calvino
Calvino (1509-1564) foi um teologo e lider religioso francês também influenciado por Lutero. A partir de suas ideias surgiu o movimento que ficou conhecido como calvinismo.
O calvinismo era um movimento que acreditava na predestinação das pessoas, ou seja, que as pessoas estariam destinadas a salvação por sua fé. O Calvinismo também pregava a predestinação não só do ponto de vista da salvação, mas também com a noção de que o lugar social de cada pessoa teria sido destinado por Deus e, por esse motivo, os cristãos deveriam aceitar o seu status e sua profissão. Inclusive, para o Calvinismo, aceitar esse local social determinado e empenhar-se no seu oficio era uma demonstração de devoção a Deus.
Assim, no Calvinismo é possível perceber a defesa da disciplina ao trabalho e a repulsa ao ócio – por isso, a valorização da riqueza também é aceita. Aqui, alguns ditados podem ilustrar essa valorização, como por exemplo: Deus ajuda quem cedo madruga; ou o trabalho enobrece o homem.
Dessa forma, ao contrário do catolicismo, o calvinismo – como outras religiões da Reforma – não encaravam a riqueza de forma negativa. Vale dizer que apesar da Igreja Católica ser uma das instituições mais ricas e poderosas da Europa no momento, a palavra pregada era de valorização a humildade. Não a toa, uma das passagens conhecidas da Bíblia afirma: “mais fácil um camelo passar por uma agulha do que um rico entrar nas portas do céu”.
A Contra Reforma e o Concílio de Trento
Entre 1545 e 1563, o Clero católico se reuniu em um concílio na cidade de Trento, na atual Itália. A reunião tinha como objetivo evitar a perda de fiéis para as novas igrejas, como a Igreja Calvinista e a Igreja Luterana, que surgiram com a Reforma. As decisões tomadas na conferência não necessariamente foram no sentido de uma mudança, mas reafirmando posicionamentos teológicos e tomando medidas para validá-los.
As mudanças foram em dois âmbitos: a disciplina e a doutrina.
Reiterando algumas dos questionamentos feitos pela Reforma, como a crença na tradução original da Bíblia, o Concílio confirmou que os ensinamentos não constavam somente na palavra da Bíblia, mas também na tradição da Igreja Católica. A reunião religiosa ratificou também a liberdade do homem pelo pecado capital, a importância dos sacramentos, como as celebrações de batismo, eucaristias e outras, e confirmou também que as orações podem ajudar na salvação das almas nos purgatórios.
De uma forma geral, o Concílio visou fixar posições pelas quais a Reforma contestava, mantendo, por exemplo, a posição de São Tomas de Aquino sobre a capacidade de perdão do Papa e da Igreja. Lembre-se: essa visão se contrapunha com a visão teológica de Santo Agostinho, por quem Lutero era influenciado.
O documento católico também reafirmou a importância do Papa e das interpretações católicas da Bíblia. Por outro lado, proibiu a venda de indulgências.
Ainda, o cotidiano da Igreja recebeu atenção ao ser determinado a importância da vida do Clero com a comunidade. Dessa forma, o Concílio decretou, por exemplo, que o bispo deveria morar na diocese que era responsável e que ele não poderia ser responsável por mais de uma diocese.
Apesar das decisões tomadas no Concílio, foi fundamental que os reis católicos aceitassem essas mudanças para que as práticas efetivamente mudassem.
E ai, conseguiu entender o que foi a Reforma Protestante?
REFERÊNCIAS
André Biéler. O Pensamento econômico e social de Calvino.
Jean Delumeau. De Religiões e de Homens.
João Genrique dos Santos. O reformador obliviado: silêncios da gistória sobre Thomas Müntzer.
Martin Noberto Dreher. Martinho Lutero e Thomas Müntzer: a justificação teológica da autoridade secular e da revolução.
Peter Johann Mainka. Um caminho do mundo moderno – Concepções clássicas da filosofia política no século XVI e o contexto histórico.
Quentin Skinner. As fundações do pensamento político moderno.
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1 comentário em “O que foi a Reforma Protestante?”
EXCELENTE EXPLICAÇÃO. PARABENS!!!!