O desenvolvimento da internet e das redes sociais afetaram a forma como os indivíduos percebem a si mesmos e o mundo ao seu redor. Com as novas tecnologias de comunicação em massa, os relacionamentos, o consumo, o trabalho e muitas outras dimensões da vida humana foram repensadas e modificadas. E os movimentos sociais não ficaram de fora. Pode-se dizer que as novas ferramentas de propagação de ideias e conexões entre pessoas remodelaram o que se entende por movimento social hoje em dia e, principalmente, as formas pelas quais eles atuam e se organizam.
Esse é o caso do movimento feminista. Assim como outros movimentos sociais, a luta das mulheres passou por mudanças relevantes com a popularização da internet e das redes sociais. Por isso, alguns estudiosos defendem que o feminismo no século XXI já não é mais como o das décadas de 60, 80 ou 90, mas representa uma nova fase do movimento, a chamada quarta onda feminista.
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As três primeiras ondas do feminismo brasileiro
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A periodização mais conhecida do feminismo, ou seja, uma das formas de classificação do movimento mais utilizadas por estudiosos, divide-o, historicamente, em três ondas, definidas não apenas por seu contexto histórico, como também por suas pautas principais. Embora haja críticas por parte dos estudiosos acerca dessa forma de segmentação, diversas autoras e autores concordam com o fato de que, no século XXI, está em curso uma quarta onda do feminismo.
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Do ponto de vista brasileiro, as três primeiras ondas do feminismo podem ser brevemente descritas, respectivamente, através das lutas: pelo direito da mulher ao voto; contra a ditadura; por políticas públicas. Na primeira onda, o movimento foi encabeçado por mulheres de elite, tendo um caráter mais liberal. Na segunda, o feminismo estava mais vinculado às universidades públicas e associações de mulheres de todos os tipos, ganhando um corpo social mais diversificado. Já na última fase, diversas autoras, como Olívia Cristina Perez e Arlene Ricoldi, apontam para uma institucionalização do movimento, com o aumento da organização em ONGs e do diálogo entre militância e Estado na construção de políticas públicas para mulheres.
Ciberativismo feminista
Desde meados da década de 1980 e, especialmente da década de 1990 em diante, já se falava no impacto da internet no movimento feminista, responsável pela emergência de um ciberativismo feminista, ou seja, um ativismo feminista por meio da web. A obra “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”, da filósofa Donna Haraway, publicada em 1985, já apontava para a crise dos movimentos sociais enquanto potência de agregação e difusão de identidades e destacava a internet como uma nova forma de expressão e reconhecimento destas. Para a autora, então, em face a um enfraquecimento dos movimentos sociais tradicionais, a internet estava se tornando uma nova forma de difusão de valores caros à luta social, como as identidades de gênero e raciais, por exemplo.
O potencial da web, apontado pela autora, pôde ser verificado com o ciberfeminismo se espalhando pelo mundo nos anos seguintes, inclusive na forma da I Internacional Ciberfeminista, realizada na Alemanha em 1997.
No Brasil, esse movimento começou a ser visualizado também a partir dos anos 1990 com a chegada da internet no país, de forma que organizações, especialmente ONGs e órgãos públicos, passaram a também fazer uso da ferramenta como forma de articulação. Contudo, vale destacar que foi apenas a partir dos anos 2000, com a popularização da internet e a chegada da conexão banda larga aos lares brasileiros, que o que entendemos hoje como ciberfeminismo começou a criar suas bases no país.
A quarta onda feminista no Brasil: características principais
Com a popularização da internet e sua ocupação por feministas, ocorreu a massificação do debate acerca das ideias do movimento, o que contribuiu para um fortalecimento da identidade feminista. Isso porque tornou possível que mulheres de diferentes origens, classes sociais, raças/etnias e religiões pudessem conhecer e se reconhecer nas pautas defendidas pelo movimento. Assim, como explica a autora Zeila Aparecida Dutra, a partir desse processo foi possível uma difusão do movimento e a desconstrução de estereótipos negativos acerca das feministas.
Ainda, como aponta a professora e pesquisadora Fabiana Martinez (2019, p. 10), houve um aumento de 10% no contingente de brasileiras que se reconheciam como feministas entre os anos de 2001 e 2010, sendo a maioria jovem. Desse modo, pode-se dizer que a internet, por proporcionar novas formas de pensar e atuar no social, tornou o feminismo mais atrativo para as novas gerações, dando à causa um maior poder de penetração na sociedade como um todo e quebrando a lógica da institucionalização da terceira onda. Isso quer dizer que já não era mais necessário estar vinculado a uma entidade, ONG ou movimento para entrar em contato com as pautas feministas, se identificar com elas e se manifestar.
Sendo assim, o ciberativismo feminista é fruto da tomada das redes por jovens militantes que já cresceram em meio às inovações digitais e as dominam (PEREZ; RICOLDI, 2019, p. 9) . Nesse sentido, as redes sociais na internet, que se popularizaram no Brasil a partir dos anos 2010, potencializaram a importância da internet para o ciberfeminismo, tornando-se mais do que meio de articulação de feministas que já se identificavam com a causa antes das redes, mas criando uma forma completamente nova de atuação e consolidação do movimento.
Desse modo, como apontam as pesquisadoras Olívia Cristina Perez e Arlene Ricoldi (PEREZ; RICOLDI, 2019, p. 8), pode-se destacar como principais características da quarta onda do feminismo brasileiro:
- uma desinstitucionalização em relação à terceira onda: ou seja, uma menor presença do feminismo em instituições estatais, ONGs ou entidades de movimento social e maior difusão na sociedade civil, fortemente influenciada pela internet;
- a horizontalidade: uma vez fora das instituições e organizações, existem menos hierarquias dentro do movimento e, assim, uma maior autonomia e pulverização das ativistas;
- a organização em grupos e coletivos: de caráter mais informal que as entidades tradicionais de movimento social, os grupos em redes sociais e coletivos de faculdade, por exemplo, são formas encontradas pelas feministas do século XXI de se organizar sem perder a horizontalidade e ganhando a interação e o apoio da coletividade;
- o retorno às ruas: na segunda e terceira ondas respectivamente, os debates feministas passaram a ocupar a Academia e as instituições governamentais. Assim, o movimento se afastou das manifestações de rua e passou a se concentrar nesses espaços, se distanciando das massas. Na quarta onda, por meio da internet e dos grupos e coletivos, há um retorno às manifestações de rua no movimento;
- o caráter interseccional: como demonstra a pesquisa das autoras, ainda que muitos coletivos feministas na internet não se reconheçam como interseccionais nem façam menção ao termo em seu título, a discussão sobre a interseção entre a opressão de gênero e outras como a LGBTfobia, o racismo, o capacitismo e a gordofobia está muito presente em diversos grupos e páginas que se identificam com o feminismo hoje, sendo uma característica fundamental do movimento;
- a divisão e disputa entre vertentes: apesar de discutirem constantemente sobre o tema da interseccionalidade, as feministas não concordam sempre em seus valores e estratégias de luta política. Dessa forma, muitas são as vertentes, ou seja, caminhos políticos que escolhem para entender o fenômeno da opressão de gênero na sociedade. As principais são: liberal, socialista e radical. Sendo assim, mais do que travar lutas específicas como ocorria nas outras ondas, no século XXI, as feministas estão retomando temas já discutidos no passado e disputando seu projeto de sociedade;
- o caráter transnacional: influenciado diretamente pelo uso dos sites de rede social, a quarta onda feminista pode ser entendida como um fenômeno global, já que, com essas ferramentas digitais, as discussões se tornam virais em tempo recorde.
Para além dessas características, o feminismo contemporâneo no Brasil tem também marcas próprias relacionadas ao contexto sociopolítico das últimas décadas. Dentre os mais importantes acontecimentos recentes que impactaram a reformulação do movimento no país está a sanção da Lei nº 12.711/2012, que implementou as cotas étinico-raciais nas instituições federais de ensino superior.
A partir desse momento, mulheres negras, indígenas e periféricas aumentaram seu acesso à universidade, o que proporcionou, no meio intelectual, uma discussão mais profunda de suas vivências, distintas da maioria branca e de classes média e alta que tradicionalmente ocupam esse ambiente:
A ampliação do ensino superior público nos últimos 10 anos e a adoção de cotas permitiram que alunos pobres e negros ingressassem na universidade, pautando assim o debate sobre suas dificuldades. Por outro lado, com o início da gestão Lula em 2003, foi intensificada a participação política de mulheres e LGBT’s no interior do Estado. O ativismo estatal e a maior participação de mulheres, negros e LGBT’s permitiu mais conhecimento e reconhecimento de suas lutas. Acrescenta-se a isso a intensa mobilização de movimentos negros, feministas e LGBT’s para que seus direitos sejam concretizados e as desigualdades superadas. (PEREZ; RICOLDI, 2019, p. 17
Dessa forma, o aumento da diversidade nas universidades afetou o feminismo acadêmico profundamente, inclusive porque muitos desses novos estudantes, reconhecendo o elitismo e o racismo do meio, fizeram uso da internet para criar uma rede de apoio e de compartilhamento de vivências. Assim, o conceito de interseccionalidade, proposto nos anos 1980 pela norte-americana Kimberlé Crenshaw (CRENSHAW, 2002), se popularizou na academia brasileira nos anos 2000, influenciando e sendo influenciado pelas discussões na web em coletivos, blogs e redes sociais.
A adoção de lutas interseccionais também tem relação com a internet, na medida em que no mundo digital são divulgados estudos sobre interseccionalidade, assim como reflexões acerca da importância do combate ao racismo e à homofobia (agora estendido também para a lesbofobia e LGBTfobia). Diante de tantas informações e denúncias de casos que envolvem preconceitos, as feministas vêm aderindo a novas causas. A maior democratização das informações possibilitada pela internet também permitiu a divulgação de ideias de mulheres negras e/ou mulheres lésbicas, contribuindo para a adoção das lutas interseccionais. (PEREZ; RICOLDI, 2019, p. 13)
Marcos temporais
Pesquisadoras defendem três marcos temporais principais que anunciam o início da quarta onda feminista no país: a Marcha das Vadias em 2011 (FELGUEIRAS, 2017), as Jornadas de Junho de 2013 (PEREZ; RICOLDI, 2019) e o ano de 2015, conhecido como Primavera Feminista (MARTINEZ, 2019) e (DUTRA, 2018).
Marcha das Vadias
Convocada no Canadá no ano de 2011 como uma resposta à culpabilização da vítima pelo estupro, a Slut Walk, como ficou conhecida, se espalhou por diversos lugares no mundo, chegando ao Brasil como Marcha das Vadias. A Marcha é considerada uma das primeiras manifestações brasileiras mobilizada via blogs e redes sociais online.
Embora a pauta da luta contra a cultura do estupro não seja, como a Ana Cláudia Felgueiras (FELGUEIRAS, 2017, p. 119) ressalta, inédita no ativismo feminista, a pesquisadora elege o evento como marco zero da quarta onda devido ao papel das redes sociais na convocação do ato e na globalização da discussão.
Jornadas de Junho de 2013
De acordo com Perez e Ricoldi (PEREZ; RICOLDI, 2019, p. 17), as Jornadas de Junho de 2013 podem ser usadas como marco inicial da quarta onda, já que representam uma resposta concreta, em formato de manifestação nas ruas, de todo um processo que marca essa nova fase do movimento. Com a democratização das universidades e a aversão crescente às instituições, somados à popularização da internet, novas vozes e novos discursos passam a se amplificar pela web, convocando a nova massa de mulheres identificadas com as pautas feministas a irem às ruas contra os retrocessos recentes nas questões de gênero e sócioeconômicas como um todo.
Primavera Feminista
Já o ano de 2015, quando aconteceu o que ficou conhecido como Primavera Feminista, é escolhido como marco por Fabiana Martinez (MARTINEZ, 2019) e Zelia Aparecida Dutra (DUTRA, 2018). Em referência à onda de protestos, organizados por meio da internet, ocorridos nos países árabes contra regimes autoritários no ano de 2011 – que ficou conhecida como Primavera Árabe -, o ano de 2015 ficou marcado, para o movimento feminista, pela onda de acontecimentos nas ruas e sua mobilização e amplificação por meio das redes. Entre 2014 e 2015, por exemplo, como mostram os dados da organização Think Olga apresentados por Martinez (2019, p. 15), as buscas por “feminismo” e “empoderamento feminino” na internet cresceram exponencialmente.
Além desses acontecimentos, é importante destacar também que o ano de 2015 foi marcado pela sanção da Lei do Feminicídio, pela presidenta Dilma Rousseff, e pela primeira Marcha das Mulheres Negras, que, além de representarem a mobilização feminista atual, estiveram entre os assuntos mais comentados no Twitter. Além disso, algumas das campanhas cibernéticas mais famosas do país como #PrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto e #VamosJuntas, que atuaram como canal de identificação, apoio e denúncia, estiveram entre as hashtags mais replicadas daquele ano.
Referências:
DUTRA, Z. A. P. A PRIMAVERA DAS MULHERES: Ciberfeminismo e os Movimentos Feministas
MARTINEZ, F. Feminismos em movimento no ciberespaço. PEREZ, O. C.; RICOLDI, A. M. A Quarta Onda Feminista: Interseccional, Digital e Coletiva