A demarcação de Terras Indígenas (TIs) no Brasil é um processo bastante complexo, afinal vários interesses distintos estão em jogo. Temos, na esfera política, por exemplo, grupos favoráveis aos direitos de posse dos povos nativos brasileiros e grupos contrários ao fato de 13% do território nacional estarem reservados a povos indígenas, como os da bancada ruralista.
E a divergência de opiniões não fica somente na esfera legislativa. Entre diferentes tribos prevalecem diferentes opiniões, sendo que enquanto algumas querem o isolamento ou não interferência, outras buscam se inserir dentro da economia capitalista.
No Brasil, atualmente, existem 724 unidades de Terras Indígenas. Dentro desse conjunto, 487 são homologadas e reservadas, ou seja, já foram adquiridas pela União ou doadas por terceiros. O restante se encontra em processo de identificação ou declaração.
Mas quais são os direitos desses povos, como a demarcação funciona e por que debater as violações que marcam esse processo? Nesse texto, o Politize! te explica tudo sobre o assunto!
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Breve histórico dos direitos dos povos indígenas
Desde a colonização do Brasil, os povos nativos sofreram um extenso processo de extermínio, sendo que a população indígena, de mais de 3 milhões, em 1500, foi reduzida para 70 mil, na década de 1950.
Foi somente no século XX que o Estado passou a dar atenção para essa população. Primeiramente, visando a integração dessa população à sociedade brasileira, com a criação do Serviço de Proteção Indígena (SPI) – preservar a identidade social e cultural desses povos, contudo, não era uma prioridade do momento.
Esse cenário começou a mudar durante o governo militar por dois motivos. Em primeiro lugar, o governo estava sofrendo críticas internacionais sobre questões relativas à direitos humanos; em segundo lugar, o governo buscava realizar grandes obras na região amazônica, como estradas e hidrelétricas. Por isso, o SPI foi substituído pela FUNAI.
No processo inicial, a FUNAI serviu muitas vezes para assegurar os interesses econômicos e para a priorização da execução de grandes obras, deixando os direitos e consulta aos povos indígenas em segundo plano.
Ainda assim, com o decorrer do século, a população indígena brasileira passou a ter acesso a mais garantias jurídicas, como com a criação do Estatuto do Índio – que regulamentou os direitos e deveres dessa população – com a Constituição Federal de 1988 e com a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
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E como as demarcações de terras indígenas funcionam?
A FUNAI é responsável pelo o estudo que antecede a demarcação e regularização de terras indígenas brasileiras, bem como tem a competência de fiscalização das TIs.
O processo de demarcação de Terras Indígenas está instituído na Lei nº 6.001 e regulamentado pelo Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996. O processo acontece em cinco fases:
1. Identificação e delimitação;
2. Declaração;
3. Demarcação física;
4. Homologação;
5. Registro em cartório.
Durante esse processo, é feito um estudo de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e de levantamento fundiário coordenado por antropólogo de qualificação reconhecida.
Quando finalizado e aprovado pela FUNAI, o relatório – em que consta a terra a ser demarcada – é publicado nos meios oficiais, como no Diário Oficial da União.
A partir desse momento, os interessados têm 90 dias para manifestar-se apresentando provas de modo que possam obter alguma indenização, como títulos dominiais, fotografias, mapas, declarações, entre outros.
Então, cabe ao Ministério da Justiça e Trabalho dar um parecer determinando a marcação estabelecida, sugerindo alterações ou desaprovando mediante a decisão fundamentada juridicamente.
Uma vez a terra sendo demarcada, os ocupantes não indígenas que estão na terra são reassentados e acontece a homologação e registro em cartório.
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Diferentes povos, diferentes perspectivas
Existem 305 etnias de povos indígenas falando mais de 274 línguas diferentes no Brasil. O Censo de 2010 mostrou que 896 mil pessoas se consideram indígenas. Desse total, 57,7% habitam Terras Indígenas oficialmente reconhecidas.
Com toda essa pluralidade, não há surpresa alguma em ver que as demandas dentro da população variam. Tem-se indígenas que atuam com um trabalho de conscientização contra a degradação da floresta amazônica e outros que são pró garimpo, por exemplo. De modo a exemplificar essas diferentes visões, podemos olhar para líderes reconhecidos como o cacique Raoni Metuktire e a Ysani Kalapalo.
Enquanto um defende a necessidade de preservação do meio ambiente conforme a cultura tradicional da tribo dos caiapós, a outra se denomina como uma “indígena do século XXI” e é conhecida por seu canal no YouTube, onde contrasta a vida que levava na aldeia com a que leva na cidade, posicionando-se a favor do empreendimento por parte dos indígenas.
Raoni é bastante conhecido mundialmente pelo trabalho em torno da conservação ambiental e dos direitos dos povos indígenas. Ele já se encontrou com personalidades como o Papa e o presidente da França, Emmanuel Macron, para conseguir aliados na luta ambiental.
De forma semelhante, Ysani já acompanhou o presidente Jair Bolsonaro a Nova York para uma reunião da ONU. Essa aproximação se deu pelas falas da YouTuber que, como apresentado em entrevista, já se posicionou a favor de atividades econômicas dentro das TI, como mineração.
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Mudanças no governo Bolsonaro
Apesar de não ser o primeiro governo a ter conflitos com direitos indígenas, o governo federal tomou medidas controversas e que são consideradas por alguns como retrocessos na luta pelos direitos dos povos nativos brasileiros.
Interrupção nas demarcações das terras indígenas
Uma das promessas eleitorais de Bolsonaro em 2018 foi que não somente não demarcaria mais Terras Indígenas, como também tentaria diminuir as TI já demarcadas.
A defesa do ponto de vista do presidente está baseada no fato da população indígena ter muita terra para o percentual populacional que eles representam, de 0,4%.
Assim, nenhum processo de demarcação – dos 248 que estão em andamento na FUNAI – foram concluídos, levando muitas comunidades a entrarem com ações judiciais.
Afinal, a Constituição determina os direitos originários sobre as terras que os indígenas habitavam, tradicionalmente, colocando sobre a União a responsabilidade da demarcação e proteção das mesmas.
Atividades econômicas dentro das terras indígenas
O governo também defende a liberação de atividades como o garimpo dentro das Terras Indígenas, o que hoje é ilegal, pois não há regulamentação por lei. Apesar disso, existem indígenas que defendem o ato e, na prática, garimpeiros atuam há décadas dentro de TIs.
Por outro lado, tem-se muitas lideranças indígenas contrárias ao garimpo. Isso se deve aos danos ambientais acarretados pela mineração, como o despejo de mercúrio nos rios – substância tóxica para peixes e que pode provocar danos em humanos. Outra ressalva é com a incidência de doenças de fora e o estímulo à prostituição de mulheres indígenas.
A mineração não é a única atividade econômica que o Presidente sinalizou trazer para dentro das áreas demarcadas. A agropecuária está nessa lista, pois, segundo ele, pode reduzir o preço da carne em todo o país. Isso vai contra a visão de comunidades indígenas que vivem com a prática da agricultura tradicional.
Vale destacar que, embora a maioria das comunidades indígenas plantem para subsistência e fornecimento a mercados locais, existem aquelas que já arrendaram terras para pessoas de fora – o que não é permitido pela Constituição – ou praticam por si mesmo o cultivo de soja, milho e feijão com maquinário moderno, como os indígenas da etnia paresi, no Mato Grosso.
A visão governista é de regulamentar a atividade para que financiamentos e assistência técnica estejam disponíveis às comunidades indígenas. Em contrapartida, existem críticos que apontam os riscos ambientais, em razão dos agrotóxicos e perda da biodiversidade local com a derrubada da mata.
Integração e cultura
Quanto a assuntos culturais, Bolsonaro defende a integração desses povos à sociedade nacional. De acordo com o discurso dele nas Organizações das Nações Unidas, “algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas”.
Vale lembrar que isso vai na contramão do que é afirmado na Constituição de 88, a qual rompeu com a visão integralista ao reconhecer as tradições e costumes locais. As críticas também existem por parte de outros países que consideram que o trabalho das ONGs é de atuar onde o Estado não age e de lideranças indígenas locais.
Essas lideranças, reunidas em um encontro de 45 etnias no Mato Gross do Sul, em 2020, posicionaram-se contra as invasões e acusaram o governo por um “projeto político do governo brasileiro de genocídio, etnocídio e ecocídio”.
Conflitos burocráticos
Outras críticas foram relacionadas com órgãos indigenistas, sobretudo pela transferência da Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura e pela mudança no processo de demarcação que não passou mais a ser realizado pela fundação. Em meio a protestos dos indígenas, o Congresso reverteu a tomada de decisão do presidente.
Contrariado, Bolsonaro tentou, novamente, retirar da Funai a função de demarcar terras indígenas, por meio de Medida Provisória, mas o Supremo Tribunal Federal impediu.
Perda de apoio indígena
As controvérsias em torno de como o governo tem lidado com os direitos indígenas fez com que indígenas que o apoiavam ficassem mais receosos. Ysani Kalapalo, em entrevista, disse estar decepcionada com Bolsonaro.
Ela ainda continua apoiando suas próprias pautas e ativismo, mas colocou uma série de razões que fizeram com que ela e a maioria dos indígenas, em seu entendimento, decepcionaram-se com as políticas de Bolsonaro. Para Ysani, falta diálogo com minorias e escolhas técnicas para cargos, como na Funai.
O Projeto de Lei 490/2007
Em tramitação no Congresso desde 2007, o projeto de lei (PL) 490/2007 visa alterar o modo pelo qual as demarcações de TI acontecem atualmente, que são de responsabilidade da FUNAI.
O PL cria um marco temporal, no qual considera como terras indígenas aquelas que foram ocupadas pelos povos nativos até o dia 5 de outubro de 1988, data em que a Constituição brasileira foi promulgada. Atualmente, isso não é uma necessidade haja vista que os indígenas são considerados povos originários.
De acordo com o PL, o processo de aprovação também ficaria a cargo do Congresso Nacional, não mais do Executivo. Além disso, o projeto proíbe a ampliação de TIs já demarcadas, mesmo que surjam novas reinvindicações.
A necessidade de comprovação da posse é criticada por especialistas da área, como a Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental. Para ela, a exigência dificulta a posse dos grupos originários, já que os registros formais eram escassos, ligado ao fato de que até 1988 os indígenas não possuíam capacidades jurídicas plenas, pois eram tutelados pela União.
Outra polêmica em torno do texto está no fato de ele prever a possibilidade de contato com os povos isolados para “intermediar ação estatal de utilidade pública”.
Conforme aponta Juliana Batista, isso vai contra a política de respeito a opção dos povos que não querem contato com o exterior, adotada desde a redemocratização. Afinal, eles sabem que perto de onde vivem existem cidades, fazendas e outros povos, mas optam por se manter isolados.
Para os defensores do projeto, como o Deputado Federal Kim Kataguiri (DEM-SP), a ideia é dar maior liberdade para que os povos indígenas possam decidir como utilizar as terras sem tutela do Estado. Além disso, outro argumento apresentado é de que as mudanças garantem maior segurança jurídica aos donos de terra.
Para saber mais sobre o PL 410/2007, clique aqui!
Panorama atual das Terras Indígenas
O relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, de 2019, promovido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), mostra um aumento de invasões em Terras Indígenas de 135% durante o primeiro ano do governo Bolsonaro. Isso representa mais que o dobro das invasões que aconteceram em 2018.
O número passou de 109 casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”, em 2018, para 256 casos – em pelo menos 151 terras indígenas, em 2019.
Do número total de invasões, as principais motivações foram a exploração ilegal de madeira/desmatamento, atividades de garimpo e exploração mineral, atividades agropecuárias (soja, milho e gado), incêndios, pesca predatória e grilagem/loteamento ilegal.
Ainda, o ano de 2019 foi marcado pela grande quantidade de queimadas no Brasil, gerando comoção internacional acerca do tema. Muitas delas foram criminosas, sendo parte do processo de grilagem – primeiramente, os invasores desmatam e vendem a madeira ilegalmente, então é ateado fogo na área para “limpá-la”; isso possibilita a abertura da terra para pastagens de gado e, posteriormente, plantio de soja ou milho.
A difícil fiscalização na Amazônia, aliada com a impunidade dos invasores, faz com que cada vez mais territórios dentro de reservas sejam invadidos, desmatados e queimados, preparando a terra para alguma atividade econômica, como pecuária e posterior plantação.
É o que mostra o documentário investigativo da BBC. Nele, uma equipe investigativa vai até Rondônia após encontrar a venda de propriedades ilegais no Facebook. Uma delas ficava dentro da reserva indígena de Uru-Eu-Wau-Wau, que é cercada por fazendas.
Para a Associação de Defesa Etnoambiental, a posse de Bolsonaro fez com que os grileiros se sentissem ainda mais confortáveis – pois eles os veem como um aliado, ao ponto de publicar abertamente anúncios no Facebook vendendo terras ilegais dentro da floresta amazônica.
Conforme coloca Ivaneide Bandeira Cardozo, da Associação, eles passaram a se sentir mais “empoderados”, criando um novo modelo para se apossar da terra ao criar associações de produtores rurais, tendo envolvimento de políticos no esquema, inclusive.
Conforme o relato de um grileiro no documentário, existe a expectativa por parte deles que o governo afrouxe as leis relativas à ocupação de terras. Atualmente, a regulamentação de terras só é possível para as áreas ocupadas até 2014.
Para saber mais sobre isso, confira nosso conteúdo sobre o projeto de lei apelidado de “PL da grilagem”!
A problemática em torno da demarcação dos territórios, como aponta o relatório, também é ambiental.
“A presença dos povos dentro de seus territórios faz com que eles funcionem como verdadeiras barreiras ao avanço do desmatamento e de outros processos de espoliação”.
Por fim, além dos danos ambientais, o relatório do CIMI também associa o aumento da violência contra os indígenas às invasões associadas à disputa pela terra. Sendo que, em 2019, foram registrados 277 casos de violência: abuso de poder (13), ameaça de morte (33), ameaças várias (34), assassinatos (113), homicídio culposo (20), lesões corporais dolosas (13), racismo e discriminação étnico cultural (16), tentativa de assassinato (25), e violência sexual (10). Isso representa mais que o dobro dos casos registrados em 2018, de 110.
VEJA TAMBÉM: Os direitos indígenas no Brasil
REFERÊNCIAS:
FUNAI: Programa de Capacitação em Proteção Territorial Vigilância e proteção de terras indígenas.
BBC: 5 principais pontos de conflito do governo Bolsonaro e povos indígenas
Folha de S. Pauli: invasões em terras indigenas aumentam 135%
CIMI: Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil 2019
Socio Ambiental: desmatamento no Xingu avança