Já cantava Cazuza
Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah, eu nem acredito[…]
Ideologia, eu quero uma pra viver…
Logo no início da canção, é perceptível o sentimento de frustração, demonstrado na frase “meu partido é um coração partido”. Mas o que isso quer dizer? A falta de orientação, de identificação política e ideológica é expressada muito bem. O cantor se encontra perdido por não partilhar nenhuma visão de mundo ou princípios com grupos ou partidos. Mais adiante da letra, canta: “ideologia, eu quero uma pra viver“.
No sentido da letra, o conceito de ideologia aparece como um conjunto de valores, princípios e doutrinas; seria o desejo de pertencer a um grupo que possui um modo de viver e conviver; o desejo de se “agarrar” em algo para acreditar, como uma ideologia política. Esse sentido pode ser percebido pelos símbolos do comunismo e anarquismo demonstrado no vídeo original da canção, por exemplo.
Além disso, Cazuza concedeu uma entrevista que reforça o sentido dessa palavra. Ele disse:
Quando fiz “Ideologia”, nem sabia o que isso queria dizer, fui ver no dicionário. Lá estava escrito que indica correntes de pensamentos iguais e tal…
Mas será que esse é o único significado de “Ideologia”? E por que hoje é tão comum o conceito de ideologia ser utilizado dessa forma? Neste texto, o Politize! te explica os significados de Ideologia.
Ah, vale lembrar que o politize! tem um vídeo que te explica os diversos conceitos de ideologia!
Origem do termo
Antoine Destutt de Tracy, filósofo iluminista, nascido em 20 de julho de 1754 e descendente de família aristocrática conhecida por ser uma das maiores proprietárias de terra da França, foi o criador do termo “ideologia”.
O objetivo, ao criar esse termo, era recheado de ambição: criar uma ciência que fosse capaz de mapear de forma racional a origem e o desenvolvimento de todas as ideias, combinações e suas consequências – ou seja, originar a “ciência das ideias”. Foi o próprio autor que denominou essa ciência como “ideologia”, originado pelos neologismos dos termos eidos e logos, do grego, significando algo aproximado de “estudo das ideias”.
Na história, logo após Tracy tornar-se membro do Instituto Nacional de Paris na época, ele compôs um grupo, formado por cientistas e filósofos, que tinha como principal missão “reconstruir a França do ponto de vista social”. Para isso, Tracy e seus seguidores viam com bons olhos o impacto da Ideologia dentro da educação, assim, ele foi nomeado como Conselheiro de Instrução Pública pelo Diretório da França e foi responsável por enviar diversas propagandas para escolas da França, destacando a importância que o papel da “Ideologia” poderia ter nos currículos escolares franceses.
Em resumo, Ideologia, para Tracy, significava a “ciência das ideias” e o objetivo principal dessa ciência era estudar e analisar o mapeamento das ideias e suas consequências. A partir dessa concepção e reflexão, segundo o autor, todas as outras ciências poderiam ser derivadas dela. Assim, essa ciência não seria somente o “topo da hierarquia das ideias, uma vez que todas as outras ciências sempre partiam de ideias preconcebidas”, mas ela também promoveria o uso da razão no desenvolvimento das organizações estatais – leis, governança e a sociedade de maneira universal. Vale lembrar que Tracy, como iluminista, era um defensor ínfimo do uso da razão e da ciência para o progresso.
Mas o significado da palavra não ficou por isso só! Na época, a identificação cada vez maior de Tracy e de sua legião com as ideias iluministas levou o termo “Ideologia” a ganhar uma conotação pejorativa. Isso porque Napoleão Bonaparte, também membro honorário do Instituto Nacional de Paris que possuía um enorme orgulho da função que a organização desempenhava na nova França e opositor ferrenho de Tracy, se apropriou do conceito, trazendo um novo sentido negativo para ele: Napoleão começou a utilizar o termo para acusar Tracy e seus seguidores de intensificar as agitações políticas da época, chamando-os de “ideólogos” para diminuir e ridicularizar o trabalho desenvolvido por eles. Por conta disso, ao longo da história, a palavra “ideologia” recebeu inúmeros conceitos, sendo eles positivos ou negativos, discutidos até hoje dentro da política, sociologia, entre outras áreas.
Então, o que significa ideologia?
Os conceitos de ideologia são diversos. Para entendê-los, começaremos pelo autor Norberto Bobbio, em seu livro “Dicionário da Política”, que divide ideologia em duas formas: o sentido “fraco” e “forte” da palavra. Para ele, o sentido fraco significa “um conjunto de ideias e de valores que tem como função orientar comportamentos políticos e coletivos” e o sentido forte tem a concepção baseada no Marxismo, sendo entendido como uma “falsa consciência das relações de domínio entre as classes”.
Vamos nos concentrar, primeiramente, no sentido fraco. Para melhor entendê-lo e dar exemplos, vamos nos basear em uma frase de Terry Eagleton:
Ideologia tem mais a ver com a questão de quem está falando o quê, com quem e com qual finalidade.
No sentido fraco, o conceito de ideologia “casa” perfeitamente com o sentido neutro – utilizado por Cazuza, demonstrado anteriormente. Pertencente ao senso comum, o significado de Ideologia nesse sentido é definido como:
Conjunto de ideias, convicções e princípios filosóficos, sociais, políticos que caracterizam o pensamento de um indivíduo, grupo, movimento, época, sociedade
Diante disso, podemos definir e identificar com mais facilidade quando algo é considerado ideologia ou não. As ideologias políticas se encaixam muito bem nesse contexto, uma vez que conseguimos explicar elas a partir de o quê são, com quem estão debatendo e com qual finalidade (ferramentas, estratégias, formas).
Um exemplo disso é quando falamos da ideologia socialista:
- O que é socialismo: na definição geral, é um conjunto de ideias e de crenças que se alinham à esquerda política e que defende a extinção da desigualdade, utilizando políticas sociais por parte do estado, por exemplo.
- Qual a finalidade do socialismo: utilizar de estratégias, formas ou ferramentas para extinguir a desigualdade social, de acordo com a sua doutrina política e econômica.
Outro exemplo é de quando falamos da ideologia liberal:
- O que é ideologia liberal: de forma geral, o liberalismo é um conjunto de ideias e de crenças que defende o livre mercado e o estado mínimo tanto na vida do indivíduo quanto na economia.
- Qual a finalidade do liberalismo: utilizar de estratégias, formas ou ferramentas para garantir as liberdades individuais, de acordo com sua doutrina política e econômica
Para saber mais sobre os dois conceitos, o Politize! tem textos sobre essas duas ideologias clicando aqui e aqui.
Já o sentido forte, por outro lado, é explicado sob a percepção do Marxismo. O termo ideologia, nesse caso, possui um sentido crítico. Assim como Napoleão Bonaparte utilizou o termo “Ideólogos” de forma pejorativa, Marx usa-o de forma semelhante. Para ele, ideologia é uma falsa concepção da realidade do indivíduo; éuma percepção da realidade que é baseado de acordo com um ponto de vista advinda da classe dominante, e esta (classe dominante) que possui o monopólio dos meios de produção, utiliza-o a seu favor para ocultar a realidade e alienar outras classes. Tendo esse monopólio, a classe dominante poderia facilmente “manipular, a seu favor, a valoração dos fatos de maneira sistemática”.
Nesse sentido, a ideologia poderia servir como instrumento de recorte da realidade, ocultando o entendimento da realidade política e econômica à sua forma total, beneficiando, assim, a classe dominante em detrimento dos outros, ao mesmo tempo que legitimaria os diversos tipos de desigualdades. Um exemplo utilizado para explicar esse “sentido forte” é a crença de que tal pessoa conseguiu conquistar algo exclusivamente por mérito próprio – a ideia de meritocracia -, por esse sentido, essa crença poderia favorecer as classes dominantes ao defender que a desigualdade é natural e mascarar outros fatores que vão contra essa lógica, como a desigualdade do acesso à educação, saúde e outras necessidades básicas.
REFERÊNCIAS
MARCELLO, Carolina. Música Ideologia de Cazuza. Cultura Genial.
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Antoine Destutt de Tracy: o “pai” do termo ideologia (artigo)
REZENDE, de Oliveira Milka. Ideologia. Mundo Educação.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; GIANFRANCO, Pasquino. Dicionário de Política – Vol. 1. 11. ed. Brasília: Universidade de Brasília – UNB.