O que é déficit democrático?

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A expressão “déficit democrático” vem ganhando destaque nas discussões políticas e acadêmicas quando o assunto é democracia. Mas você sabe o que ela significa? Neste artigo, vamos abordar a origem dessa expressão e o seu significado, as causas do déficit democrático e te contar como esse conceito pode ser aplicado ao cenário brasileiro.

Primeiro, o que é déficit democrático?

A expressão “déficit democrático” foi cunhada pelo sociólogo britânico David Marquand em 1970 ao analisar o processo de deliberação do Parlamento Europeu. A expressão ganhou maior destaque por conta do Brexit (“British exit” – “saída britânica”), como ficou conhecida a saída do Reino Unido da União Europeia (EU).

A expressão basicamente se relaciona ao descompasso entre os anseios da população e as decisões tomadas pelos seus representantes eleitos. Assim, há déficit democrático quando não há participação popular nas deliberações políticas e a vontade do povo éignorada no processo decisório.

Em um sistema democrático representativo, como no Brasil, em que o povo elege representantes para os poderes Legislativo e Executivo, esse descompasso gera um grave problema de legitimidade. Isso porque quando não há convergência entre os anseios da população e as decisões tomadas pelos seus representantes, surge no cidadão o sentimento de “não-representatividade” e, logo, de ilegitimidade. Ou seja, o cidadão não se sente representado e considera as decisões ilegítimas, resultando em uma forte descrença no processo político.

E quais as causas do déficit democrático?

Para te ajudar a compreender o assunto, vamos apresentar as principais causas do déficit democrático de acordo com Murilo Gaspardo (2015), autor do artigo “Globalização e o déficit democrático das instituições representativas brasileiras”.

Globalização

Murilo Gaspardo aponta diversas causas do déficit democrático, entre elas a globalização. A globalização é um processo de expansão econômica, política e cultural a nível mundial – e você pode saber mais sobre ela aqui no conteúdo do Politize!.

O que Gaspardo considera é que em razão desta, “o Estado perdeu o monopólio da mediação política”, compartilhando as decisões com diversos atores, internos e externos, e não controlando mais as interferências na vida nacional. Isso impacta, por fim, de acordo com o autor, na legitimidade das instituições representativas. 

Características histórico-culturais

Um outro fator causador de déficit democrático apontado por Gaspardo são as características histórico-culturais como o clientelismo, o patrimonialismo e o populismo. Nesse caso, “poderosos atores econômicos nacionais” limitam o poder do povo, submetendo o Estado aos seus interesses, fazendo com que recursos públicos sejam empregados para beneficiá-los.

No patrimonialismo, por exemplo, os negócios do Estado são conduzidos “como se fossem negócios privados da “comunidade política””. No que se refere ao clientelismo, este consiste numa relação de troca de favores entre o cidadão e o político por voto e apoio nas eleições. Atualmente, a sua principal expressão está na corrupção. Já o populismo se dá quando há uma “relação direta e emocional do líder político com as massas” (Gaspardo, 2015, p. 92). O político populista manipula a população por meio de discursos demagógicos, aproveitando-se muitas vezes da falta de conhecimento político da população, e conduz os negócios do Estado de acordo com a sua vontade, pois entende que o seu poder decorre de seu carisma e não das leis. Aliás, a figura do político carismático e messiânico é uma característica bastante comum no cenário político latino-americano.

Para saber mais sobre populismo, que tal conferir nosso vídeo sobre o tema?

Tais características histórico-culturais se revelam incompatíveis com o Estado democrático, pois favorecem somente “os setores da sociedade mais articulados, economicamente poderosos e com maior capacidade de pressão” (Gaspardo, 2015, p. 92). Consequentemente, representantes políticos que deveriam buscar o interesse nacional, representam em verdade interesses parciais como as bancadas ruralista, religiosa, dos bancos, da indústria de armamento, ambientalista, etc. no Congresso Nacional brasileiro.

Nível de informação e capacidade de se expressar:

Uma outra causa apontada por Gaspardo é o nível de informação e a capacidade de se expressar dos sujeitos envolvidos no processo político, posto que, para que tomem decisões “de forma livre e racional”, os sujeitos devem estar bem informados quanto aos assuntos sobre os quais se posicionarão. Para o autor, “a democracia depende, fundamentalmente, da formação e da expressão da opinião” (Gaspardo, 2015, p. 87). Nesse ponto, Gaspardo chama a atenção para o papel preponderante da mídia na formação da opinião em uma sociedade de massa.

Para o autor, os grandes veículos de comunicação de massa deturpam a realidade, financiados pelo poder econômico de acordo com seus próprios interesses. Citando Sartori (2001), Gaspardo fala ainda em “videopolítica” e “videocracia” para explicar o poder da televisão como grande formadora de opinião em uma democracia, que por sua vez depende da formação da opinião. Assim, o povo tende a “opinar” influenciado pela televisão e não por suas próprias convicções. Como explica o autor, então, o que ocorre é a manipulação da opinião pública pelos meios de comunicação de massa, sem qualquer controle democrático.

Poder econômico

Citando Viroli (2002), Murilo Gaspardo também aponta como uma causa do déficit democrático o “dinheiro”, que vem desempenhando um papel cada vez mais decisivo na política. O autor explica que este constitui uma “ameaça à democracia”, influenciando a formação da opinião, a tomada de decisões e a execução destas, sendo essencial atualmente para vencer eleições e obter consensos. O poder econômico desiguala na prática “a força política de cada sujeito”.

Exclusão social e miséria

A exclusão social e a miséria também são causadoras de déficit democrático. Segundo Gaspardo, “a miséria provoca o enfraquecimento do “sentimento de valor próprio” e a exclusão sociocultural dos cidadãos que vivem nessas condições, favorecendo a apatia política” (Gaspardo, 2015, p. 103). Essa apatia é interessante para os sujeitos dominantes, pois contribui com a manutenção do status quo, esvaziando a democracia. Pessoas em situação de miséria e exclusão social não acreditam que de fato possuem força política e não se sentem iguais aos sujeitos economicamente favorecidos.

Esvaziamento do debate político

Ainda de acordo com Gaspardo, outro causador de déficit democrático é o esvaziamento do debate político, da competição ideológica e da disputa entre diferentes projetos políticos, que são fundamentais à democracia.

Segundo o autor, por força de sua dimensão ideológica, a globalização implica igualmente a redução das “alternativas político-programáticas”. Isso se dá porque a competição ideológica “ou é considerada como indesejável ou é controlada pelo poder econômico e pela mídia globalizada” (Gaspardo, 2015, p. 105). Assim, os partidos políticos com maior potencial para vencer eleições tendem a um alinhamento com o “poder cultural hegemônico” vinculado ao poder econômico, perdendo sua ideologia para se enquadrar como uma alternativa viável.

Com isso, a democracia tem seu conteúdo esvaziado, “por um lado, a ação política se revela impotente; por outro, não há programas políticos significativamente diferenciados em disputa” (Gaspardo, 2015, p. 104). A consequência é uma “crise de motivação” para o engajamento político nos sujeitos, sendo a política percebida como “algo inútil”.

Enfim, vê-se que a democracia representativa enfrenta diversos limites e desafios.

E como esse conceito pode ser aplicado no Brasil?

Segundo Murilo Gaspardo (2015), da perspectiva legal-institucional, o Brasil preenchetodos os requisitosque caracterizam uma democracia, com o modelo representativo e mecanismos de participação popular semidireta, como iniciativa popular, referendo, plebiscito, conselhos consultivos, conferências e orçamentos participativos. Porém, é possível perceber características que acarretam déficit democrático nas instituições representativas brasileiras, destacando-se “os bloqueios ao exercício da soberania, […] a apropriação do Estado por interesses privados, o populismo, a histórica ausência do Estado perante graves problemas sociais, a desigualdade e a exclusão social, e a baixa integração social” (Gaspardo, 2015, p. 91).

Citando Stuchi (2007), Gaspardo afirma que o Brasil “sempre apresentou a condição de uma “soberania bloqueada””, em razão tanto de fatores externos quanto internos. Com relação aos fatores externos, alguns exemplos são, a dependência tecnológica e o limitado poder militar em relação aos Estados que concentram o poder, isso mantém o país na condição de Estado em desenvolvimento ou semiperiférico. Dessa forma, o Brasil está à margem do centro da política mundial, tendo a sua soberania bloqueada. Já os fatores internos, relacionam-se especialmente com as características histórico-culturais discutidas no tópico anterior, quais sejam, o patrimonialismo, o clientelismo e o populismo.

Assim, Gaspardo observa que “o Estado brasileiro nunca chegou a constituir (nem no passado, nem no presente) uma verdadeira esfera pública” e que a mediação política se dá por interesses privados daqueles que controlam a máquina estatal e não pelos interesses da coletividade. Para Gaspardo, a cultura republicana e democrática ainda não se estabeleceu no país.

Mas o que os dados sobre a democracia brasileira mostram?

A organização não-governamental OXFAM Brasil lançou o relatório “Democracia Inacabada: um retrato das desigualdades brasileiras – 2021” com dados recentes da democracia no país. O documento também analisa a relação entre desigualdades e democracia no Brasil, afirmando que “a desigualdade política tem impacto na desigualdade econômica, que se acentua à medida em que as elites decisórias seguem não refletindo as demandas da diversidade de seus representados” (OXFAM, 2021, p. 6).

De acordo com o relatório, a classe política brasileira ainda é majoritariamente masculina, branca e rica, tendo uma influência desproporcional na agenda política. Esse perfil claramente não reflete a “face da população brasileira”, colocando no centro deste debate as desigualdades de gênero e raça como estruturantes da desigualdade de representação política. Afinal, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), observou-se que pessoas pretas e pardas são 56,1% da população brasileira, mas representaram somente 46,5% (35,7% pardos e 10,8% pretos) dos cerca de 29 mil candidatos que disputaram as eleições de 2018. Essa desigualdade de representação política é ainda maior quanto às mulheres negras, embora representem 27% da população brasileira, ocupam apenas 2,36% das cadeiras do Congresso Nacional. 

Ainda, de acordo com a OXFAM, o Brasil é frequentemente tomado como exemplo negativo no quesito presença de mulheres no Parlamento. Em seu relatório, a organização traz que o Brasil ocupava a 133ª posição dentre os 192 países monitorados em 2019 no ranking anual de mulheres nos parlamentos nacionais da Inter-Parliamentary Union. Dentre os países das Américas, o país também fica atrás de seus vizinhos. Enquanto a média regional das Américas é de 31,8% de cadeiras legislativas (considerando todas as Câmaras) ocupadas por mulheres, a do Brasil é de apenas 14,1%.

Assim, a ONG atenta para a necessidade de ampliação da presença e da participação de pessoas negras, povos indígenas, mulheres e LGBTQIA+ nos espaços de decisão e de poder para reduzir a sub-representação e reequilibrar a distribuição do poder político, fomentando um ambiente de tomada de decisões mais equânime. Segundo Oscar Vilhena Vieira, professor da Fundação Getúlio Vargas – Direito SP, citado no relatório, sem um “padrão mínimo de igualdade, a democracia sempre estará incompleta”, posto que não refletirá o interesse de todos os atores de maneira equilibrada.

O relatório segue afirmando que, embora o sufrágio universal seja o princípio fundamental da democracia política brasileira, apoiado na identidade entre representantes e representados, a participação vai além deste, e espaços como os conselhos participativos a proporcionam mais amplamente. Esses espaços são capazes de reduzir desigualdades políticas, pela ampliação do acesso de sujeitos excluídos do processo político tradicional, pluralizando a democracia.

Contudo, recentemente, o governo de Jair Bolsonaro extinguiu 93% dos conselhos ligados à administração federal e promoveu o esvaziamento da estrutura e das atividades daqueles que não podiam ser extintos por ato exclusivo do Poder Executivo. Além da extinção dos conselhos, o governo também revogou a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS). Segundo o documento, a captura do Estado pela elite política e econômica será tanto mais intensa quanto mais limitada for a participação popular no processo decisório.

Vale destacar que desde a Constituição de 1988 muitas mudanças ocorreram no sistema eleitoral brasileiro, como a inclusão de estratos sociais antes excluídos da política, o que ocasionou um significativo aumento das taxas de participação eleitoral, inclusive dos mais pobres, que trouxeram avanços importantes para a transparência e pluralização do sistema eleitoral.

O relatório destaca algumas dessas mudanças: a política afirmativa para mulheres que obriga os partidos a lançarem o mínimo de 30% de candidaturas das vagas de cada partido ou coligação para candidaturas femininas; a proibição do financiamento de campanhas eleitorais por empresas; o encurtamento do tempo de campanha para reduzir custos de campanha; a reserva mínima de 30% sobre o “Fundo Eleitoral” e o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e TV de cada partido para candidatura de mulheres (para sanar o problema das “candidaturas-laranja” de mulheres); e a distribuição dos recursos do “Fundo Eleitoral” e do tempo de propaganda eleitoral gratuita na TV e no rádio proporcional ao total de candidatos negros que o partido apresentar para a disputa eleitoral.

Assim, como afirma o relatório, esses e outros avanços trazem a esperança de um futuro menos desigual na política. 

Conclusão

De acordo com Murilo Gaspardo (2015), é evidente que o enfrentamento do déficit democrático das instituições representativas exige tanto novos modelos institucionais que permitam a formação e a expressão pacífica de dissensos, bem como a formulação de alternativas políticas que mobilizem os cidadãos em torno de projetos coletivos. Citando Nogueira (2008), Gaspardo afirma ainda que é preciso submeter os mercados, a economia, os interesses e os poderes à regulação democrática, ao mesmo tempo em que se deve promover a participação da sociedade. 

Gaspardo observa que alcançar o consenso e/ou atender satisfatoriamente todas as demandas em uma sociedade democrática altamente complexa na contemporaneidade é um trabalho árduo. No entanto, o autor afirma que, mesmo não sendo perfeitas, somente as democracias são capazes de resolver conflitos e promover mudanças pacíficas na sociedade.

O exercício da democracia encontra muitos entraves e limites, o que provoca déficit democrático e, consequentemente, descrença nos cidadãos, afastando-os das instituições representativas e da política. Contudo, é preciso perseverar e estimular a participação popular na organização e nas atividades do poder estatal, não só por meio do sufrágio universal, mas também por meio de instrumentos eficazes como iniciativa popular, referendo, plebiscito, conselhos consultivos, conferências e orçamentos participativos, já existentes na democracia brasileira.

A população precisa ser conhecedora dos seus direitos para exercer plenamente a cidadania. Ademais, para Priscila Zhouri (2016) os representados precisam sentir que pertencem ao espaço público e se utilizar dos canais instituídos pela democracia também para controle dos representantes. Posto que há déficit democrático quando não há participação popular nas deliberações políticas e a vontade do povo é ignorada no processo decisório, somente através dela será possível superá-lo. 

REFERÊNCIAS

Agência Câmara de Notícias. Projeto prevê cota mínima de candidatos negros nas eleições para o Poder Legislativo.

BBC News Brasil. Entenda o Brexit e seus impactos em 8 perguntas

BITTENCOURT, RENATO NUNES. Déficit democrático e política eleitoral da desinformação

CARVALHO, DANIEL CAMPOS DE. Déficit Democrático na União Europeia

COSTA, PEDRO HENRIQUE FACHINI LUSTOSA DA. O déficit democrático da UE analisado a partir de visões Habermasianas e Kantianas

GASPARDO, MURILO. Globalização e o déficit democrático das instituições representativas brasileiras

Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Número de mulheres eleitas em 2018 cresce 52,6% em relação a 2014. 

TSE altera resolução que trata da arrecadação e gastos de recursos por partidos políticos e candidatos. 

Zhouri, Priscila Rainato. Déficit democrático e crise da representatividade: a educação cívica enquanto catalisador da participação popular.

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Conteúdo escrito por:
Baiana de Salvador, mas uma cidadã do mundo! Graduada em Direito e Serviço Social, mestre em Política Social e doutoranda em Ciências da Sustentabilidade. Ama arte, política e estudos sobre desigualdade social e desenvolvimento sustentável. <3
Almeida, Juliana. O que é déficit democrático?. Politize!, 17 de setembro, 2021
Disponível em: https://www.politize.com.br/o-que-e-deficit-democratico/.
Acesso em: 22 de nov, 2024.

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