Animais são “coisas”? Entenda a personalidade jurídica dos animais

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Atualmente, estima-se que o Brasil é um dos países que possui o maior número de animais de estimação. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, em 2018, já eram por volta de 139,3 milhões de animais incluindo cães, gatos, aves, peixes e outras espécies. Esse número supera até o número de crianças nos lares brasileiros atualmente!

A escalada crescente do número de animais de companhia em nossas vidas nos possibilita a criação de laços cada vez mais fortes com essas outras espécies, que muitas vezes acabam por se transformar em parte da própria família. A partir dessa nova forma de relação familiar, cria-se o conceito de família multiespécie, por exemplo, que vem cada vez mais sendo desenvolvido.

Diante dessas mudanças e dos novos debates relacionados ao bem-estar animal e preservação ambiental, surge uma polêmica: por que, ainda assim, a legislação brasileira considera os animais como seres que não possuem personalidade jurídica? Ou seja, por que os animais ainda são considerados coisas de acordo com o nosso ordenamento jurídico? Além disso, qual seria o critério que diferencia a legislação aplicável a um cão de companhia, a um bezerro em uma fazenda leiteira e a uma onça em seu habitat natural?

Por conta destas e muitas outras questões complexas referentes ao tema da personalidade jurídica dos animais, a Politize! elaborou este texto para responder a algumas das perguntas acima e esclarecê-las aos leitores!

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Personalidade jurídica: o que me diferencia legalmente de um animal não-humano

A personalidade jurídica pode ser definida como a capacidade que é atribuída a alguém de ser possuidor de direitos e sujeito a obrigações legais. Ou seja, é a qualidade que, uma vez adquirida, possibilita que o ser goze de seus direitos individuais e tenha deveres a serem cumpridos. É por meio da aquisição da personalidade jurídica, por exemplo, que alguém possui o direito de buscar a solução de algum conflito legalmente por meio de um processo, de realizar contratos e até de redigir um testamento.

Para nós, seres humanos, o artigo 2° do Código Civil determina que a personalidade é adquirida logo após o nascimento com vida, muito diferentemente do que ocorre com os animais. Estes ainda se enquadram na condição de “bens móveis semoventes privados ou públicos” de acordo com o artigo 82° do mesmo Código.

Nesse sentido, os animais são desprovidos de personalidade e não são titulares de nenhum direito individual, tendo a garantia de seus direitos apenas quando buscado por terceiros (seus donos ou tutores que possuem capacidade civil). Desta forma, em uma situação hipotética, um animal nunca poderia processar alguém com a finalidade de obter pensão alimentícia, apenas ser o objeto deste processo.

Ainda assim, existem vertentes legislativas que são mais abrangentes com relação aos direitos dos animais e os asseguram com maior precisão, como é o exemplo da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 225°:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

Tal artigo abrange a preservação da fauna e da flora brasileira, bem como proíbe a prática de atividades que submetam os animais à crueldade. Assim, eles são considerados seres sencientes e dignos de proteção jurídica e de valor intrínseco, isto é, são seres dotados de natureza biológica e emocional, passíveis de sofrimento.

Na esfera do direito penal, que tem por objetivo determinar as ações que serão consideradas criminosas em determinado lugar e conceder ao Estado o direito de estabelecer respectivas penas e executá-las, os animais também têm seus direitos assegurados. Em decorrência dos debates acerca da dignidade da vida animal e de sua proteção, foi elaborada a Lei 9805, referente a crimes ambientais bem como a Lei 14.064 que diz respeito ao reforço da pena quando crimes de maus tratos e crueldade ocorrem exclusivamente a cães e gatos.

A percepção de que a legislação brasileira ainda é extremamente divergente e, sob determinado ponto de vista, contraditória com relação aos direitos subjetivos dos animais e sua personalidade, não é incomum. Assim, alguns dos recentes avanços e inovações da legislação são notoriamente destinados a uma restrita gama de espécies, normalmente às domésticas. Enquanto isso, os outros seres ainda são condicionados pela visão de “coisas” ou até “produtos”.

Animais domésticos, silvestres e destinados ao consumo: por que são diferentes?

Como foi visto por meio da legislação apresentada anteriormente, a diferenciação dos animais não-humanos dos animais humanos é bem clara dentro dos Códigos. Entretanto, as leis a respeito dos direitos dos próprios animais varia muito a depender de sua espécie. Assim, dentro do mesmo ordenamento jurídico, os animais podem ser considerados como seres detentores de direitos, como seres comercializáveis (objetos consumíveis) e também como seres pertencentes à fauna do país, implicando desigualdade de direitos e de tratamentos entre os seres.

A partir dessa premissa, podemos afirmar que a sociedade vive sob uma raiz especista, ou seja, a discriminação contra determinadas espécies, sendo esta a principal razão pela qual os direitos animais são tão distintos. A lógica de consumo é a propulsora de pensamentos que objetificam e tornam uma vaca como alimento, um javali como alvo de caça e um gato como passível de afeto.

O pensamento discriminatório especista enraizado na sociedade é espalhado na legislação e na política. Assim, a pesquisadora na área dos Direitos Animais Waleska Mendes Cardoso afirma: “Os poderes econômicos e políticos se misturam com a criação de gado, com a expansão da fronteira agrícola, com derrubar a Amazônia para fazer pasto e plantar soja para ter ração de gado. Temos uma cultura muito forte e que está tentando se manter assim”

É perceptível que o fator responsável por essa brusca divergência de direitos e a abrangência de tantos relativismos é exclusivamente vinda das decisões humanas de como se escolhe tratar cada tipo de animal dentro de certa cultura. Assim, o ser humano decide como será o tratamento atribuído a cada tipo de animal e cria determinada relação com ele.

No Brasil, por exemplo, o cão é tratado como um animal de companhia e em outros lugares do mundo, este mesmo ser vivo poderia ser utilizado para a alimentação. Neste caso, o animal é o mesmo, o que muda é o contexto cultural no qual ele está inserido e como o humano decide tratá-lo.

Desta forma, torna-se compreensível como a relação com os animais se transforma de acordo com o ambiente ao qual este é integrado e como a valoração e a dignidade da vida desses seres é relativa.

Perspectivas para o futuro dos direitos animais

Embora o debate acerca dos direitos animais ainda esteja em seus passos iniciais, nota-se como ele é amplo, diverso e extremamente polêmico. A tendência percebida tanto no âmbito social quanto no acadêmico e político é de que tal discussão tenha cada vez mais relevância em um futuro próximo.

Um debate, nesse contexto, que recentemente alcançou a esfera do Supremo Tribunal Federal (STF) foi relacionado à desvinculação de esportes que fazem o uso de animais, como tipo penal referente ao tratamento cruel de animais . Em sua resolução, da qual se originou a Emenda Constitucional 96°/2017, o tribunal decidiu que estas práticas não sejam consideradas crime, desde que sejam formas de manifestação cultural registradas como bem de natureza imaterial e que façam parte do patrimônio cultural brasileiro, como é o caso da vaquejada.

Veja também: Vaquejada: manifestação cultural ou violação dos direitos dos animais?

Em contrapartida, de acordo com a norma constitucional de proibição da crueldade, os direitos fundamentais dos animais à existência digna são reafirmados, incluindo também a possibilidade de irem a juízo, ou seja, de serem capazes de defenderem seus direitos no poder Judiciário por meio de representação legal. Isso pôde ser observado no recente caso dos cães Spike e Rambo, reconhecidos pelo Tribunal de Justiça do Paraná como parte autora em um processo relacionado a maus-tratos por parte de seus tutores.

A discussão é ampla. Debates como o do sacrifício de animais em cultos religiosos, a utilização de animais para testes laboratoriais e pesquisas, a autorização da caça, o veganismo, a proteção ambiental, a extinção de espécies, o destinação de animais para consumo e até a família multiespécie também são alguns exemplos.

Apesar de decisões no âmbito jurídico, por muitas vezes representarem avanços ou retrocessos, a depender do ponto de vista, a questão animal é assunto fundamental para entender mais sobre a própria sociedade e como esta define seus comportamentos, necessitando de muita reflexão e esclarecimentos diante de seu caráter extremamente relativo e distinto. Afinal, será que um gato e uma vaca, por exemplo, são tão diferentes assim?

Aprendeu algo novo sobre a personalidade jurídica ds animais? Qual a sua opinião sobre os direitos desses seres vivos? Conte-a nos comentários!

Referências:
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1 comentário em “Animais são “coisas”? Entenda a personalidade jurídica dos animais”

  1. Que artigo fantástico. Fiquei de boa aberta, ao saber como os animais de estimação são considerados pelo nosso universo jurídico. Eu lei tudo sobre animais acompanhando o site Pet Lovers. Lá, tem muita coisa legal. Vale a pena!

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Conteúdo escrito por:
Sou moradora da região do grande ABC, São Paulo e atualmente graduanda em direito pela PUC- SP. Desde sempre apaixonada por história, sociologia e política, afinal, entender o mundo a nossa volta e como moldou-se desta forma é a única maneira de provocar uma mudança significativa.
Machado, Giulia. Animais são “coisas”? Entenda a personalidade jurídica dos animais. Politize!, 1 de janeiro, 2023
Disponível em: https://www.politize.com.br/personalidade-juridica-dos-animais/.
Acesso em: 22 de nov, 2024.

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