Em 13 de abril de 2023, o presidente Lula embarcou rumo a Pequim para negociar acordos bilaterais e fortalecer as relações Brasil-China.
Esse texto faz uma breve revisão histórica das relações sino-brasileiras. Com isso, será possível entender melhor como a visita de Lula ao Presidente Xi Jinping pode impactar o relacionamento bilateral no presente e no futuro. Após essa revisão, você verá os detalhes da viagem, com destaque para o conteúdo dos acordos assinados entre Brasil e China baseados em fontes oficiais e reportagens.
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Por fim, contaremos com a ajuda de especialistas para compreender as possíveis implicações do encontro para o Brasil. Consideraremos riscos e oportunidades, vantagens e desvantagens e diferentes perspectivas sobre o tema. E aí, ficou animado para aprender tudo isso? É só seguir até o fim deste texto!
Breve histórico das relações Brasil-China
1974 a 1999: da oposição ideológica ao lançamento da satélites
As relações Brasil-China começaram oficialmente em 1974, durante a ditadura militar, quando o Brasil passou a reconhecer a República Popular da China (RPC, comunista) em vez da República da China (Taiwan, capitalista). O leitor atento certamente pensou: “se o golpe de 1964 foi ‘anticomunista’, por que o regime reconheceu a RPC?”.
Acontece que o governo Ernesto Geisel (1974 – 1979) praticou uma política externa conhecida como “pragmatismo responsável”. Seu objetivo era conquistar mais autonomia externa através da diversificação das relações internacionais do Brasil, tidas como cruciais para o desenvolvimento nacional. Assim, diferenças ideológicas foram contornadas através do princípio da não interferência em assuntos domésticos.
A posição dos Estados Unidos contra o programa nuclear brasileiro havia incomodado os militares, ilustrando as vulnerabilidades de continuar excessivamente dependente dos EUA. Nesse sentido, Geisel buscou se aproximar da China e, ao mesmo tempo, manter boas relações com os EUA.
Ele entendia que China e Brasil tinham em comum o interesse por mais autonomia externa. Por isso, cooperar para construir uma ordem internacional multipolar seria vantajoso para os dois países.
Já na década de 1980, o Brasil passava por uma crise da dívida externa, herdada da ditadura, e a China ainda era muito pobre. Assim, o comércio bilateral continuou fraco. Apesar disso, as relações bilaterais progrediram conforme o Brasil retornou à democracia sob José Sarney e a China se abriu economicamente sob Deng Xiaoping.
Visitas oficiais de alto escalão estreitaram os laços. Destaca-se o acordo de cooperação em ciência e tecnologia que culminou no Programa de Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (CBERS, na sigla em inglês).
O progresso continuou nos anos 1990s. Em 1993, as relações Brasil-China elevaram-se ao patamar de Parceria Estratégica, marco da política externa chinesa. Isso significa o reconhecimento de que as relações bilaterais são importantes em múltiplos níveis: comercial, político, científico, tecnológico, cultural, etc. Também expressa a esperança de que eventuais obstáculos no presente poderão ser superados no futuro.
Portanto, uma Parceria Estratégica implica a cooperação ampla e a longo prazo, a despeito de reveses momentâneos. Em 1999, o primeiro satélite do programa CBERS foi lançado com sucesso. O ex-Embaixador brasileiro na China assistiu ao lançamento presencialmente. Ele o descreveu como o momento mais recompensador dos seus quase 50 anos de carreira.
Até 2021, seis satélites seriam construídos, simbolizando os avanços na cooperação entre Brasília e Pequim.
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2000 a 2022: do boom das ‘commodities’ à pandemia de Covid-19
Os anos 2000s foram um ponto de inflexão nas relações Brasil-China, principalmente no âmbito econômico. Em 2001, a China ingressou na OMC com apoio do Brasil. O boom das ‘commodities’ elevou a demanda e os preços das exportações de minérios e produtos agropecuários brasileiros.
Como visto na tabela abaixo, o comércio bilateral saltou de US$1,5 bi em 1999 para US$150 bi em 2022. Já em 2009, a China superou os EUA como principal parceira comercial do Brasil. Contudo, apesar do superavit, essa relação é bastante assimétrica. Isto é, o Brasil exporta majoritariamente produtos de baixo valor agregado, como minério de ferro e soja in natura, e importa produtos de alto valor agregado, como semicondutores e eletrônicos.
Ano | Exportações | Importações | Fluxo Total |
2022 | $89,428 B | $60,744 B | $150,172 B |
2017 | $47,488 B | $27,554 B | $75,042 B |
2012 | $41,226 B | $34,245 B | $75,471 B |
2009 | $20,995 B | $15,905 B | $36,899 B |
2004 | $5,439 B | $3,703 B | $9,142 B |
1999 | $0,674 B | $0,86 B | $1,534 B |
Politicamente, os governos Lula (2003 – 2010) e Dilma (2011 – 2016) implementaram uma política externa focada da cooperação Sul-Sul de modo a tornar o Brasil mais influente na política mundial. Foram criadas diversas instâncias de cooperação bi e multilateral envolvendo Brasil e China. Destacam-se o G20 (2003), a COSBAN (2004), a CEBC (2004), e o BRICS (2006).
Durante o governo Bolsonaro (2018 – 2021), as relações Brasil-China foram desgastadas devido ao criticismo aberto de membros da ala ideológica do governo a Pequim. Isso levou à queda do Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
Carlos França assumiu o posto e afastou-se do discurso anticomunista do antecessor. Apesar dos abalos, o comércio bilateral continuou a crescer. A cooperação bilateral também incluiu a parceria entre o laboratório chinês Sinovac e o Instituto Butantan para produzir vacinas brasileiras contra a Covid-19.
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Encontro entre Lula e Xi Jinping: o que dizem as fontes oficiais do Governo Brasileiro?
Em 13 de abril de 2023, o Presidente Lula embarcou em uma viagem de três dias à China, onde foi recebido pelo Presidente Xi Jinping. Lula levou uma comitiva robusta, composta por ministros, governadores, senadores, deputados, empresários e assessores.
A relevância deste encontro para as relações Brasil-China também é ilustrada pelos números. Os dois Chefes de Estado assinaram 15 acordos bilaterais e duas declarações conjuntas, aos quais se somam outras 20 parcerias firmadas por governos estaduais e entidades empresariais. Além disso, 21 acordos já haviam sido assinados durante o Seminário Econômico Brasil-China, em março.
Esses acordos de cooperação englobam temas muito diversos, indo da Amazônia à exploração espacial à Crise na Ucrânia. Outros temas incluem: comércio e investimentos, desdolarização, ciência, tecnologia e inovação, turismo, energias renováveis, combate às mudanças climáticas, economia digital, combate à fome, infraestrutura e vacinas. Lula e Xi também conversaram sobre reformas no Conselho de Segurança da ONU e a expansão dos BRICS.
São dezenas de documentos e muita, muita informação! Mas não se preocupe: abaixo está um resumo introdutório, conforme os temas mais relevantes tratados no encontro. Caso tenha interesse por algum ponto específico, você poderá ler tudo na íntegra nos links ao final da página.
Destaques: quais foram os principais pontos acordados?
- Desdolarização:
- A filial brasileira do Industrial and Commercial Bank of China (ICBC Brazil) passa a atuar como banco de compensação do Yuan chinês (ou Renminbi) no Brasil. Isso quer dizer que transações monetárias entre Brasil e China poderão ocorrer diretamente em Real e Yuan, sem passar pelo Dólar americano. Com isso, espera-se reduzir custos cambiais e facilitar o comércio e investimento bilaterais.
- Comércio e investimentos:
- Criação do Grupo de Trabalho de Facilitação de Comércio. Seu objetivo é explorar o potencial de crescimento e diversificação do comércio visando o desenvolvimento econômico mútuo. Na prática, o grupo realizará estudos para reduzir barreiras comerciais e obstáculos de acesso a mercados. Espera-se facilitar a internacionalização de empresas brasileiras para a China e vice-versa.
- Além disso, entidades públicas e privadas dos dois países assinaram acordos de cooperação comercial, científica e tecnológica. Dentre as partes brasileiras, incluem-se: Vale, JBS, Seara, Correios, Suzano, Banco do Brasil e Friboi. Detalhes podem ser lidos aqui.
- Meio ambiente:
- Assinatura da Declaração Conjunta Brasil-China sobre o combate à mudança do clima. Reconhecem a urgência atingir a neutralidade de carbono antes de 2050. Comprometem-se a fortalecer a cooperação bilateral em clima e governança global com base em equidade e responsabilidades diferenciadas.
- Salientam a importância de assegurar o direito ao desenvolvimento e demais Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU.
- Instam países desenvolvidos a cumprir obrigações de financiamento climático e dobrar o financiamento para adaptação.
- A China anuncia apoio à candidatura do Brasil como sede da COP30 em 2025, na Amazônia brasileira em Belém.
- Políticas sociais:
- Brasil e China concordaram em trabalhar ao nível ministerial para combater a fome, a pobreza e promover a seguridade social através do compartilhamento de conhecimento e de experiências. Isso é notável por dois motivos.
- Primeiro, a China erradicou a extrema pobreza em 2020, possuindo informações valiosas para compartilhar.
- Segundo, falou-se sobre promover cadeias de valor e comércio socialmente justos. Isso é importante para aumentar a competitividade brasileira sem negligenciar direitos trabalhistas. Contudo, não é claro como isso ocorrerá na prática.
- Exploração espacial, ciência e tecnologia:
- Os governos se comprometeram a encorajar a interação entre as start-ups dos dois países e a estabelecer centros de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (RD&I) conjuntos.
- Brasil e China assinaram acordo para produção conjunta do satélite Cbers-6, custando mais de US$100 milhões, com lançamento previsto em 2028. O Cbers-6 conseguirá monitorar biomas brasileiros, como a Amazônia, mesmo em dias nublados, favorecendo a preservação ambiental.
- Geopolítica:
- Brasil reiterou o princípio de uma só China, o reconhecimento à República Popular da China e o entendimento de que Taiwan é parte do território da China.
- As partes reconhecem a negociação como única saída para a crise na Ucrânia. Brasil e China apoiam os esforços de mediação um do outro em busca de uma solução pacífica para a situação.
- Enfatizaram a importância de uma reforma no Conselho de Segurança da ONU para aumentar a representatividade dos países em desenvolvimento.
- Comprometeram-se a fortalecer o engajamento com organizações multilaterais, incluindo a ONU, BRICS, G20, Banco Mundial e FMI. Buscarão fortalecer, também, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) do BRICS.
Tudo isso reforça temáticas históricas das relações Brasil-China: a valorização do multilateralismo em busca de uma ordem internacional multipolar; a não intervenção; e busca de soluções pacíficas para disputas.
Veja também nosso vídeo sobre China, capitalismo e comunismo!
Conclusão: como a literatura especializada nos ajuda a entender os possíveis impactos da viagem de Lula nas relações Brasil-China?
No livro “Brasil e China: 40 anos de relações diplomáticas: análises e documentos”, Tatiana Rosito escreve que o aprofundamento das relações econômicas entre Brasil e China pode beneficiar os dois países. Em outro capítulo, José Lima defende que a cooperação na área de parques tecnológicos, na qual a China detém vasta experiência, tem grande potencial.
Entretanto, Yi Shin Tang, professor de Relações Internacionais na USP, destaca que as relações Brasil-China são assimétricas e a China possui mais influência. Contudo, a disputa por influência geopolítica entre China e Estados Unidos dá ao Brasil poder de barganha. Isto é, o Brasil tem a oportunidade de obter concessões de ambas as potências, o que pode se materializar em acordos para transferências de tecnologia e investimentos.
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Ho-fung Hung, professor de Economia Política da John Hopkins University, lembra que a China pode contribuir para a desindustrialização do Brasil. Seu argumento é que a demanda por ‘commodities’ e a competitiva indústria chinesa poderiam incentivar investidores brasileiros a focar em atividades extrativistas e desincentivar investimentos na indústria. Isso levaria a uma reprimarização da economia.
Mas José Luis Fiori lembra que esse desfecho não é inevitável. Segundo ele, a renda da exportação de produtos primários pode ajudar a financiar a reindustrialização brasileira. Para isso, contudo, são necessárias políticas de Estado de longo prazo. Na mesma linha, Maurício Santoro reconhece as dificuldades da indústria brasileira. Mas ele lembra tal problema deriva de características estruturais, sendo o comércio com a China um de muitos fatores.
Em suma, as relações Brasil-China são um assunto extremamente complexo. Sua história perpassa décadas de dificuldades mas também de cooperação. Nesse sentido, o encontro de Lula com Xi Jinping é apenas mais um capítulo dessa narrativa.
O número de acordos e declarações assinadas sinalizam que Brasília e Pequim possuem amplos interesses em comum. Por outro lado, a falta de diversificação das exportações e a dependência econômica do Brasil em relação à China são problemas em aberto.
Ufa, finalmente acabou! Tomara que a leitura tenha sido proveitosa e que você entenda um pouco melhor o presente das relações Brasil-China! Caso tenha dúvidas ou comentários, não hesite em deixá-los abaixo!
Referências:
- Ministério das Relações Exteriores — Declaração Conjunta entre a República Federativa do Brasil e a República Popular da China sobre o Aprofundamento da Parceria Estratégica Global — Pequim, 14 de abril de 2023
- Ministério das Relações Exteriores — Declaração Conjunta Brasil-China sobre o combate à mudança do clima
- Ministério das Relações Exteriores — Lista e íntegra dos atos assinados no Grande Palácio do Povo, por ocasião da visita do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva à República Popular da China
- Ministério das Relações Exteriores — Lista de atos assinados por governos estaduais, Fiocruz e Vale por ocasião da visita do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva à República Popular da China
- Ministério das Relações Exteriores — Acordos assinados pelo setor privado e por entes públicos brasileiros por ocasião da visita do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva à República Popular da China
- Ministério das Relações Exteriores — República Popular da China
- Planalto — Agenda do Presidente da República
- MDIC — Exportação e Importação Brasil-China
- ApexBrasil — Brasil assina 20 acordos de cooperação em missão empresarial em Pequim
- CNN Brasil – Carlos Alberto França: Saiba quem é o novo ministro das Relações Exteriores
- G1 — Lula na China: entenda o estado atual da relação entre a potência asiática e o Brasil e o que pode mudar com visita
- G1 – Cbers-6: Novo satélite de parceria entre Brasil e China deve custar mais de 100 milhões de dólares e entrar em órbita em 2028
- Instituto Butantan — A parceria tecnológica que fez da CoronaVac a vacina do Brasil
- The Diplomat – The Friction Points in Brazil-China Relations
- HUNG, H. A ASCENSÃO DA CHINA, A ÁSIA E O SUL GLOBAL. Revista de Economia Contemporânea, v. 22, n. 1, p. 1-26, 11 jun. 2018.
- FIORI, José Luis. Estado e desenvolvimento na América Latina. In: MARINGONI, G. (Org.). A Volta do Estado planejador. Neoliberalismo em xeque. São Paulo: Contracorrente, 2021, pp. 57-91
- LIMA, Sérgio Eduardo Moreira (Org.). Brasil e China: 40 anos de relações diplomáticas: análises e documentos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2016. (Coleção Política externa brasileira).
- RODRIK, Dani. Estratégias de desenvolvimento para o novo século. In: ARBIX, G. et al (Orgs.) Brasil, México, África do Sul, Índia e China. Diálogo entre os que chegaram depois. São Paulo: Edusp/Unesp, 2002, pp. 43-78.
- SANTORO, Maurício. Brazil–China Relations in the 21st Century: The Making of a Strategic Partnership. Singapore: Springer Singapore, 2022.