Há muito tempo, a mistura de raças nos times de futebol brasileiros alimentou a ilusão de uma democracia racial. No entanto, por trás dessa suposta igualdade, persiste um racismo no futebol mascarado, fortalecido e perpetuado pelas sutis dinâmicas.
Para compreender a verdadeira realidade, basta observar os números e fatos relacionados à violência contra a população negra. Eles expõem de maneira contundente a utopia da democracia racial. Nos campos de futebol, os atletas são frequentemente alvos de ofensas raciais por parte dos torcedores ou até mesmo de seus próprios colegas.
Mas a mudança é possível! Convidamos você a compreender profundamente o histórico de racismo no futebol. Assim, juntos, podemos criar um ambiente esportivo inclusivo, respeitoso e justo para todos.
Veja também nosso vídeo sobre racismo estrutural!
Da elite ao esporte do povo
No início do século XX, o futebol chegou ao Brasil e rapidamente foi adotado pela elite como uma forma de entretenimento sofisticado e espaço para confraternização. Os primeiros clubes eram compostos por brasileiros brancos da alta sociedade, embora muitos jogadores mantivessem outras ocupações.
No entanto, em 1917, a “lei do amadorismo” foi publicada no Diário Oficial do Rio de Janeiro. Tratava-se do início do racismo no futebol, uma “proibição velada dos negros”.
Contudo, foi através da classe operária, composta pelos trabalhadores das indústrias, que o futebol começou a se democratizar. Alguns diretores dessas fábricas investiam recursos para que seus funcionários pudessem ingressar em clubes esportivos e recebessem benefícios por isso.
Além disso, o futebol servia como uma válvula de escape em meio à acelerada industrialização, acalmando tensões sociais e satisfazendo as elites.
Os primeiros jogadores negros a se destacarem foram Miguel do Carmo da Ponte Preta e Francisco Carregal do Bangu. Como surgiu em uma fábrica, esses clubes não impunha restrições raciais como os clubes elitistas.
Nessa época, apenas quatro décadas haviam se passado desde a abolição da escravidão. Portanto, a discriminação racial ainda estava profundamente enraizada na sociedade brasileira.
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Atletas negros rompem barreiras do racismo no futebol brasileiro
Em 1914, Carlos Alberto, um jogador negro, foi contratado pelo Fluminense. No entanto, há relatos de que a diretoria do Fluminense exigia que o jogador utilizasse pó de arroz. O objetivo era evitar que sua cor de pele chamasse muita atenção nos jogos. Ele enfrentou discriminação racial e teve menos oportunidades na equipe por causa de sua raça.
Curiosamente, o primeiro grande ídolo da modalidade no país foi um jogador negro. Arthur Friedenreich, filho de um alemão com uma brasileira negra, destacou-se como o maior jogador brasileiro na era do futebol.
Ele marcou o gol decisivo que deu à Seleção Brasileira o primeiro título no Sul-Americano de 1919. Com o racismo no futebol da época, Friedenreich, alisava seu cabelo para tentar parecer “mais branco”.
Apesar das barreiras existentes, o Vasco da Gama emergiu como um time composto por operários e negros. Em 1923, o clube conquistou o campeonato derrotando times de elite como Flamengo e Fluminense.
A equipe vascaína tinha uma rotina intensa de treinamentos, algo pouco comum nos demais times, que ainda abraçavam o amadorismo. O clube carioca pavimentou o caminho para a profissionalização e incomodou as classes altas da sociedade, afastando-as dos gramados.
Durante esse período, também surgiu o jogador Leônidas da Silva, conhecido como o “Diamante Negro”. Ele atuou na Copa do Mundo de 1938, na França.
Leônidas tornou-se um ícone do futebol e uma figura símbolo da integração dos atletas excluídos pelos clubes. Além disso, conquistou sucesso internacional e sua presença no cenário futebolístico contribuiu significativamente para a inclusão de outros atletas negros.
Caminhos para profissionalização do esporte
Entretanto, à medida que o esporte se democratizou e profissionalizou, surgiu o preconceito contra seus atletas. Na década de 1930, os jogadores de futebol eram frequentemente estigmatizados como marginais.
Mesmo com a evolução do esporte e a ascensão de talentosos jogadores, persistiam os estereótipos em relação aos profissionais. Além disso, houve uma crescente valorização do talento dos jogadores negros, resultando gradualmente em sua inclusão nos principais clubes esportivos.
A profissionalização e a crescente popularidade do futebol também impulsionaram mudanças na legislação brasileira. Na Constituição Federal de 1988, foi estabelecido o dever do Estado de promover práticas esportivas, tanto formais quanto informais, como um direito fundamental.
Contudo, o Estatuto de Defesa do Torcedor, abordando aspectos sociais do esporte, foi promulgado somente em 2003. Nele, está previsto que o torcedor não deve portar cartazes nem entoar cânticos discriminatórios. A pena é a impossibilidade de ingresso do torcedor no recinto esportivo, ou, se já estiver dentro, seu afastamento imediato. Adicionalmente, podem ser aplicadas outras sanções administrativas, civis ou penais, conforme apropriado.
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Sanções e penas para atos de racismo no futebol
Além disso, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva de 2009 determinou sanções para atos de racismo. A punição é suspensão pelo prazo de no mínimo 120 dias, além de multa no valor de no máximo R$ 100.000.
Em situações em que seja cometida por um número de pessoas ligadas à mesma entidade esportiva, a entidade será punida. Conforme Artigo 243-G, ocasionará na perda de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição.
Em casos de reincidência, a punição será agravada, correspondendo ao dobro da pontuação atribuída a uma vitória. Adicionalmente, se a competição não estiver sujeita a regras de pontuação, a organização poderá ser excluída do torneio ou de eventos similares.
As penalidades podem ainda ser aplicadas à entidade esportiva cuja torcida tenha cometido os atos discriminatórios mencionados. Além disso, os torcedores identificados estarão proibidos de ingressar na respectiva arena esportiva por um período mínimo de 720 dias.
A luta de Vinicius Júnior na Espanha
Desde sua contratação pelo Real Madrid em 2018, o atacante Vinicius Junior tem sido frequentemente alvo de ataques racistas. Durante uma partida contra o Valencia, no estádio Mestalla, ocorreu um momento crítico quando torcedores dirigiram ao jogador insultos racistas, chamando-o de “macaco”.
Vinicius Jr. foi alvo de insultos raciais durante um jogo do Real Madrid, que resultaram em sua expulsão. Ele usou as redes sociais para denunciar o racismo e a falta de ação da La Liga, da Federação e de alguns adversários. O jogador afirmou que continuará lutando contra o racismo, mesmo à distância.
Foi em 2004 que a Fifa introduziu seu Código de Ética, proibindo discriminação étnica, racial, cultural, política e religiosa. Em 2020, esse código foi atualizado para estabelecer multas e interrupção de práticas esportivas como consequências por violações. Apesar das denúncias de racismo no futebol enfrentadas por Vini Jr., a punição ao clube somente foi aplicada após 10 denúncias.
Desafios do racismo no país do futebol
No entanto, a questão do racismo no futebol não se limita apenas à Europa. No Brasil, onde a população negra representa 56% do país, o racismo ainda é uma triste realidade.
Em 2022, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol registrou cerca de 90 denúncias de racismo no cenário brasileiro. Isso representou um aumento de 40% em relação ao ano anterior, quando foram registradas 64 denúncias.
Um ponto significativo no debate sobre o racismo no país ocorreu em 2014, com o caso do goleiro Aranha. Ele sofreu insultos racistas de torcedores do Grêmio. A punição do clube gaúcho com a eliminação da Copa do Brasil foi uma medida rara. No entanto, desde então, punições severas como essa têm sido pouco frequentes.
Além disso, Aranha também relatou que suas oportunidades de emprego diminuíram após o incidente. Dessa forma, constatam-se as consequências que a denúncia do racismo pode impor sobre os atletas, aumentando o medo.
Avanços na legislação e medidas de combate à discriminação
O Brasil tem feito avanços significativos no combate ao racismo nos últimos anos. Em janeiro de 2023, o presidente Lula sancionou uma lei que equipara o crime de injúria racial ao racismo, tornando-o inafiançável e imprescritível. Além disso, a nova lei estabelece penas mais severas para delitos ocorridos em eventos esportivos e culturais no país.
No âmbito esportivo, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) demonstrou determinação em combater as ofensas racistas no futebol. Sendo pioneira mundialmente, a CBF implementou uma medida inédita na Copa do Brasil, iniciada em fevereiro de 2023. O novo Regulamento Geral de Competições considera qualquer infração discriminatória de extrema gravidade. A punição será aplicada administrativamente pela entidade.
Posteriormente, o caso será encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), que decidirá punição ao clube infrator com perda de pontos. Por sua vez, o governo do Estado do Rio de Janeiro também deu um passo importante ao sancionar a chamada “Lei Vini Jr.”. A medida homenageia o jogador e prevê interrupção ou suspensão da partida em caso de denúncia comprovada.
Durante a cerimônia realizada no Maracanã, ele foi homenageado com prêmios concedidos pela Assembleia Legislativa e pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Além disso, teve seus pés imortalizados na Calçada da Fama do estádio, ao lado de ícones do futebol como Pelé, Garrincha e Ronaldo.
Essa legislação antirracismo visa combater atitudes discriminatórias em eventos esportivos e prevê protocolos para o tratamento de denúncias de racismo. Além disso, campanhas educativas obrigatórias fazem parte do conjunto de ações para sensibilizar a população sobre a importância de combater o racismo.
Os avanços legislativos e medidas de combate à discriminação representam passos significativos em direção a uma sociedade mais justa e igualitária. Desse modo, reforça a necessidade de coibir o preconceito e garantir a proteção dos direitos humanos para todos.
Perspectivas futuras
Em resposta à crescente preocupação com o racismo no futebol, uma importante audiência foi realizada na Comissão de Direitos Humanos. O senador Paulo Paim (PT-RS) ressaltou o potencial do futebol como ferramenta no combate às discriminações raciais no Brasil.
O senador enfatizou a obrigação do Brasil em tratar seriamente questões relacionadas ao racismo. Além disso, destacou que o futebol, amado por milhões de brasileiros, deve ser um exemplo, promovendo igualdade, respeito e diversidade.
A audiência na Comissão de Direitos Humanos foi crucial para debater e implementar medidas efetivas contra o racismo no futebol, além de abordar questões relacionadas ao racismo na sociedade como um todo.
Em agosto de 2023, a LaLiga admitiu seus erros ao tratar casos de racismo e lançou a “LaLiga versus Racismo”. De acordo com um representante, a plataforma informativa terá a finalidade de relatar casos de discriminação. Além disso, a organização pretende focar em ações sob seu controle, especialmente a formação para combater o racismo.
Tendo isso em consideração, busca estimular os clubes a implementarem medidas mais rigorosas contra comportamentos discriminatórios nos estádios. Isso inclui o reconhecimento de que ações punitivas, como a exclusão de torcedores, estão dentro da esfera de decisão dos clubes.
Além disso, nesta temporada da Premier League, foi anunciado que os jogadores voltarão a se ajoelhar antes de jogos, porém somente em momentos específicos da temporada, como forma de continuar a campanha “No Room for Racism” (tradução: sem espaço para o racismo). O gesto já era praticado e foi muito utilizado como protesto após o homicídio de George Floyd nos EUA. Portanto, ele representa uma demonstração de solidariedade e repúdio à discriminação racial.
Conforme o comunicado, foi ressaltado que eles utilizarão sua plataforma para apoiar a diversidade e combater o racismo. Por fim, os capitães das equipes afirmaram que a discriminação não tem espaço no futebol ou na sociedade.
Não podemos mais aceitar o racismo no futebol. É fundamental que as penalidades sejam aplicadas com rigor. Vamos marcar um gol contra a discriminação e construir um futuro mais inclusivo para todos. Gostou do texto? Deixe o seu comentário abaixo.
Referências:
- Carta Capital – Lei Vini Jr: Rio de Janeiro aprova medidas contra o racismo no futebol
- CBF – Racismo será punido com pena esportiva no futebol brasileiro
- FIFA – Código de ética
- FILHO, Mario. O Negro no Futebol Brasileiro. Mauad X, 2003.
- GOV – Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD)
- GOV – Estatuto de Defesa do Torcedor
- MAGALHÃES, Lívia. Histórias do Futebol. Arquivo Público de São Paulo, 2010.
- Observatório da Discriminação Racial no Futebol – Relatório anual
- Rádio Senado – CDH debate racismo no futebol e sugere punições mais severas
- Senado – Sancionada lei que tipifica como crime de racismo a injúria racial
2 comentários em “O desafio contínuo do racismo no futebol”
Olá, tudo bom?
Peço que reveja este trecho, “Em 1914, Carlos Alberto, um jogador negro, foi contratado pelo Fluminense. No entanto, há relatos de que a diretoria do Fluminense exigia que o jogador utilizasse pó de arroz. O objetivo era evitar que sua cor de pele chamasse muita atenção nos jogos. Ele enfrentou discriminação racial e teve menos oportunidades na equipe por causa de sua raça.” Esta com um pequeno equivoco, a história não foi essa!
Acompanhe: https://emtodolugar.facha.edu.br/2021/05/13/carlos-alberto-a-historia-do-po-de-arroz-e-o-racismo-no-futebol-brasileiro/
Prezada, Adriele, achei o texto excelente, bem didático e necessário, ótimo exercício de cidadania e combate ao racismo através do bom jornalismo, e da comunicação com consciência social!