O que são Estados plurinacionais?

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A plurinacionalidade é um complexo instrumento político, jurídico e normativo. Os Estados plurinacionais se consolidam a partir de alterações em sua estrutura legislativa, especialmente na Constituição. Através das Assembleias Constituintes, países podem adotar um modelo de Estado menos ou mais representativo, baseado nas particularidades de sua população.

Diante do Estado Democrático de Direito, todos os direitos devem ser assegurados à população sem distinções entre os indivíduos. Os Estados plurinacionais são mais representativos e reconhecem, portanto, que dentro de seu território existem distintas nações e identidades. Nesse modelo, é assegurada a participação direta dos povos na elaboração da norma máxima de cada país: a Constituição Federal.

Nesse texto a Politize! informa quais países já são considerados plurinacionais e como isso aconteceu. Continue a leitura para compreender se o Brasil é ou pode vir a ser um Estado plurinacional!

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O que é plurinacionalidade

O Estado moderno rompe com o modelo feudal ao centralizar o poder na figura de um único monarca. As leis passaram a ser emanadas a partir de um centro político que progressivamente desconsidera e elimina as diversidades existentes entre indivíduos que partilham o mesmo território. A Inglaterra do século XV já começava a usar o termo Estado para definir a ordem pública.

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Nesse contexto, a soberania é definida como incontestável, indivisível e imprescritível. Isso significa, dentre outras coisas, a aceitação generalizada da aplicação de normas coercitivas dentro de determinado espaço geográfico. A metodologia e a organização dos poderes políticos monárquicos foram replicados nos territórios americanos quando colonizados por países europeus. Os poucos homens brancos e católicos detinham o controle do Estado.

Além disso, esses homens se encontravam livres das restrições legais impostas pelas coroas espanhola e portuguesa. O processo colonizatório se encarregou de dividir as populações já existentes na América Latina. Por isso é relevante separar as concepções de Estado e de nação. Essa distinção possibilita a consideração de um instrumento político que ultrapasse a ideia de Estado moderno.

Entenda as diferenças: Estado, país ou nação?

A nação moderna está fundamentada na hierarquia dos valores de mercado do capitalismo moderno. Apesar de surgirem com caráter liberal e civilizatório, as nações soberanas não dialogam com algumas complexidades da realidade prática. Dentre elas, a diversidade de grupos étnicos que compartilham o mesmo território nacional. Assim, a uniformização dos modelos políticos oriundos da modernidade exclui grupos étnicos e culturalmente distintos.

Pensar nessa grande diversidade de povos, idiomas, costumes e tradições é estar diante de uma complexa rede de símbolos e significados. As consequências mais frequentes da uniformização política, jurídica e normativa são a marginalização e o aculturamento dos povos sub-representados. Os estados plurinacionais se opõem às bases inflexíveis e uniformizadoras do Estado Nacional tradicional. O instrumento político de participação direta dos diversos grupos sociais rompe com a categoria de formação dos Estados Modernos.

A dificuldade dos Estado em aceitar e aprender com a diversidade de povos, exige disposição para que sejam reinventadas estruturas institucionais. A ideologia de dominação que fundamenta o ímpeto da tutela dificulta a compreensão acerca de direitos dos povos originários. Por isso se torna relevante superar mecanismos normativos que naturalizam os resultados da política colonizadora. Além disso, é fundamental contextualizar a autodeterminação em processos contraditórios e complexos de formação de identidades subalternas.

Em 1984, Nina Pacari, liderança quéchua da região andina, foi uma das primeiras a conectar o conceito de nacionalidade à proposta de um novo Estado. Assim o movimento indígena conceituou “nacionalidade” e “plurinacionalidade”, enfatizando a conexão entre esses conceitos e a noção de território.

A plurinacionalidade encontrada em poucos países latino-americanos é fruto do desdobramento de um processo democrático. Esse processo teve início a partir de revoluções por meio das quais os povos indígenas retomaram gradualmente direitos, liberdade, autonomia e dignidade. Os Estados plurinacionais enxergam a democracia participativa como a verdadeira base da democracia representativa. Dessa maneira, é possível garantir e respeitar a existência de valores tradicionais dos múltiplos grupos étnicos e culturais existentes.

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Quais são os Estados plurinacionais?

O conceito “plurinacional” tem até então o seu sentido relacionado a países andinos. Equador e Bolívia são estados plurinacionais. Assumem a transitoriedade das soluções e são expostos, constantemente, a questionamentos e avaliações. Isso, por si só, já constitui uma ferramenta decolonial, pois esse experimentalismo faz frente ao Estado moderno. Diante dos desdobramentos históricos, organizações de povos indígenas propuseram esse modelo político que busca eliminar a tutela e o integracionismo.

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Com o objetivo de integrar os povos indígenas à sociedade não-indígena, a política de integração se sustentou na violação ao direito à diferença. Através da desestruturação de dinâmicas sociais dos povos originários, o processo colonial impôs a submissão de muitos indígenas à cultura ocidental. Estima-se que ainda existam pelo menos cinco mil povos indígenas no mundo todo. Segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a América Latina abriga cerca de 8,3% deste contingente indígena mundial.

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A luta anticolonial se deu no Equador e na Bolívia a partir da associação entre os povos quéchuas e aymaras a outras minorias étnicas. O nacionalismo foi questionado pelos indígenas, visto que a bandeira política nega a existência e as necessidades das comunidades que habitavam o território antes da colonização. A elaboração dos Estados Plurinacionais constitui a expressão de um processo de resistência em face do desenvolvimentismo. É a busca por modos de viver baseados nos hábitos e ensinamentos transmitidos pelos ancestrais.

Equador

Equador. Fonte: Pixabay

Formou-se um sólido movimento indígena no Equador em razão da acumulação histórica de experiências contra a invasão de suas terras. Desde os tempos coloniais, os povo indígenas construíram um largo repertório de demandas. Durante a década de 1980, ocorreu, portanto, um fortalecimento do movimento indígena no país.

A questão indígena assumiu proporção nacional e passou a comprometer conjuntamente o Estado e toda a sociedade. A proposta do Estado plurinacional surgiu em 1990. A princípio ela não foi aceita por unanimidade e gerou fragmentações no movimento indígena. Em outubro de 2008, entretanto, apesar de todas as contradições, uma nova Constituição foi aprovada por meio de referendo. Nela foram reconhecidas as seguintes concepções:

  • Estado plurinacional;
  • Interculturalidade;
  • Direitos da “Pachamama” (uma divindade importante para os povos originários andinos que representa a Mãe-Terra ou a natureza em sua integralidade); e
  • Sumak Kawsay.

Essa carta constitucional determinou que, através da elaboração e execução de políticas efetivas que objetivam a restituição de direitos, o Equador retornasse a exercer seu papel fundamental de garantidor e reitor de direitos. Novos desafios surgiram, sobretudo no que se refere à conceitualização dessas concepções. Mas o principal desafio na construção de um Estado plurinacional é o exercício da democracia includente e em maior harmonia e proximidade com a natureza.

O Estado plurinacional apresenta a possibilidade aos diversos povos a participação direta no controle político e econômico sobre os recursos naturais. Pois, sem acesso e controle a esses recursos, a autonomia indígena não estaria completa. Além disso, nas comissões especializadas, cidadãos, povos, nacionalidades, por meio de seus representantes, podem participar das discussões sobre determinados projetos. Esses projetos possuem grande significância para a vida das pessoas envolvidas na tomada de decisão.

Sumak kawsay

Sumak Kawsay é uma perspectiva indígena amazônica que confronta o conceito ocidental de desenvolvimento. Essa perspectiva contesta a relação homem-natureza pautada no domínio e na exploração. Em sua origem, o núcleo do conceito implica uma mudança, tanto na relação entre seres humanos como na relação dos indivíduos com a natureza.

Trata-se de um conceito polissêmico e em construção, que está emergindo de diversas correntes intelectuais. A depender do autor, sumak kawsay poderia ser compreendido como “vida limpa e harmônica” ou “boa vida”. Por isso é importante destacar que o conceito associado à ideia de “bem-estar” simplesmente pode significar o esvaziamento do sentido comunal que o conceito possui. Essa simplificação nega seu caráter originário.

Teko Porã expressa a mesma ideia para os nativos guarani do Brasil: viver em harmonia com a natureza, para viver em harmonia entre os seres humanos. Assim, as bases do sumak kawsay são o comunalismo calcado na reciprocidade e na igualdade nas relações entre os indivíduos; e a concepção holística de integração entre indivíduos e natureza.

Bolívia

Em 2006, foram eleitos membros para a assembleia constituinte a fim de elaborar a nova Constituição boliviana. Somente em 2009 o texto foi finalizado e aberto para votação através de referendo. A participação popular na consulta foi expressiva: mais de 90% dos bolivianos compareceram às urnas. Foram 61,43% votos a favor e 38,53% contrários.

O texto prevê, dentre muitos direitos a equivalência entre a justiça ordinária e a justiça tradicional indígena. Além disso, proíbe a privatização de recursos hídricos e inclui efetivamente indígenas e camponeses dentro do processo de construção política. O ensino das línguas nativas também é garantido nas escolas de territórios onde as nações são predominantes.

Com o intuito de dialogar com a diversidade étnica e cultural boliviana, a Constituição é considerada um marco histórico que reconhece não só a autonomia indígena, mas também seu direito à terra. Além disso, um novo sujeito social que reflete as realidades híbridas de “nações e povos indígenas originários e campesinos é definido no texto constitucional:

“É nação e povo indígena originário camponês toda a coletividade humana que comparta identidade cultural, idioma, tradição histórica, instituições, territorialidade e cosmovisão, cuja existência é anterior à invasão colonial espanhola.”

Suma qamaña

Assim como o “Sumak Kawsay”, do idioma quíchua, o “Suma Qamaña”, originário do idioma aymara, emergiu na vida política da Bolívia no início deste século. A partir desse conceito se instalou na Bolívia um novo imaginário de sociedade sustentado nas matrizes culturais dos povos indígenas andinos. Assim como no Equador, a Constituição boliviana de 2009 reconhece como basilar a deidade Pachamama (Mãe-Terra). Além disso, a perspectiva do “Suma Qamaña” se tornou o fundamento jurídico central do constitucionalismo na refundação do Estado.

Chile

Quase três anos após a crise social de 2019, o Chile realizou três votações em um processo de mudança constitucional. Na última votação que ocorreu em setembro de 2022 a proposta do novo texto constitucional foi rejeitada por 62% da população. O projeto definia o Chile como Estado plurinacional e intercultural. Isso significa, dentre outras coisas, que a Constituição reconheceria a autonomia dos 11 povos originários do país:

  • Mapuche;
  • Aymara;
  • Rapa Nui;
  • Lickanantay;
  • Quéchua;
  • Colla;
  • Diaguita;
  • Chango;
  • Kawashkar;
  • Yaghan; e
  • Selk’nam.

O texto também preconizava que as distintas nações deveriam ser consultados e consentir em decisões que afetassem seus direitos. Os indígenas que participaram da assembleia constituinte conseguiram inserir no texto demandas históricas. Essas demandas estão relacionadas a território, recursos naturais, direitos coletivos e, naturalmente, ao reconhecimento do Chile como Estado plurinacional. O projeto para a nova Constituição reconhecia direitos de gênero e garantia a preservação de recursos naturais.

Olhar para trás para seguir em frente

Para as minorias sociais dos países plurinacionais, a proteção das práticas ancestrais significa a garantia de um futuro digno. O Bem Viver, princípio basilar dos Estados plurinacionais, reivindica a cultura da vida comunitária em plenitude. Além de oferecer alternativa à cultura do individualismo, do mercantilismo e do capitalismo – essa estrutura ocidental baseada na exploração irracional da humanidade e da natureza. A proposta de Estados plurinacionais que confrontam esses preceitos deu início, portanto, a mudanças paradigmáticas bastante profundas.

A persistência dessa abordagem que valoriza a diversidade dos povos tem levado teóricos a questionar as generalizações etnocêntricas geralmente feitas pelo “primeiro mundo”. É importante observar que para efetivar os Estados plurinacionais é necessário ir além de simplesmente fixar compromissos na Constituição. A materialização dos elementos que se propõem a romper com as matrizes da colonialidade, a garantia de direitos e a proteção dos diversos povos caracterizados como minorias é indispensável.

O que você achou desse modelo de formação do Estado nacional? Como você acha que seria recebida a proposta de constituir o Brasil enquanto Estado plurinacional? Deixe sua opinião nos comentários!

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Conteúdo escrito por:
Feminista, ambientalista, poeta, ativista pelo veganismo popular, graduanda em ciências socioambientais pela UFMG, cozinheira amadora e advogada com especialização em políticas públicas para a redução da desigualdade. Gosto de conversar sobre economia política, comida, saúde e bem viver.
Rath, Carolina. O que são Estados plurinacionais?. Politize!, 2 de janeiro, 2024
Disponível em: https://www.politize.com.br/estados-plurinacionais/.
Acesso em: 22 de nov, 2024.

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