Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
junho 6, 2019

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Inciso III – Tortura

A tortura é uma pratica completamente proibida pela legislação brasileira - tal aspecto também é abordado em diversos tratados e convenções internacionais. Neste texto, apresentaremos o que caracteriza a tortura no Brasil e no mundo e como essa concepção se modificou ao longo da história.

PROIBIÇÃO À TORTURA: O QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO?

A tortura é prática absolutamente proibida pela legislação brasileira e é objeto de diversos tratados e convenções internacionais. Como é contrária à proteção à vida, à integridade e à dignidade da pessoa humana, é considerada violação gravíssima aos direitos humanos e sua proibição é um princípio geral do direito internacional. Por ser considerada um direito fundamental, a proibição à tortura é uma cláusula pétrea de nossa Constituição. Isso significa que nem mesmo uma reforma constitucional pode tornar permitida a prática de tortura.

A partir do inciso III do artigo 5º, a Constituição de 1988 é clara em afirmar que a prática da tortura é expressamente proibida em território brasileiro. O inciso aplica-se a qualquer pessoa, pois ao determinar que ninguém será submetido a tais atos violentos, incluem-se os brasileiros e qualquer indivíduo não nacional que esteja dentro dos limites territoriais de nosso país. Além da tortura, esse inciso também prevê que nenhuma pessoa pode ser vítima de tratamento desumano ou degradante, pois em todos esses casos se estaria agindo contra a dignidade da pessoa humana e, portanto, essas ações devem ser reprovadas pelo Estado brasileiro.

Pode parecer lógico que a prevenção à tortura esteja implícita na garantia do direito à vida, porém deixá-la evidente foi uma maneira de relembrar as autoridades de que essa prática não deve ser tolerada. Esse direito é relevante porque busca proteger a vida e a integridade física e moral dos indivíduos e evitar que sejam submetidos a atos cruéis e desumanos.

Neste texto, vamos explicar para você o que o inciso III do artigo 5º da Constituição fala sobre a tortura, qual a relevância da proibição dessa prática e como ela foi tratada ao longo da história em nosso país. Continue com a gente!

Este conteúdo é parte de uma parceria entre o Instituto Mattos Filho, a Civicus e a Politize!, que juntos explicam os direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição. 

TRATAMENTO DESUMANO, TRATAMENTO DEGRADANTE E TORTURA

Tortura, tratamento desumano e tratamento degradante: apesar de diferentes, esses três conceitos estão relacionados, pois todos se referem a situações em que o direito de viver uma vida digna é impedido. O conceito de dignidade da pessoa humana refere-se ao direito de cada ser humano de ser respeitado pelo Estado e pela sociedade, de ter assegurados seus direitos e seus deveres fundamentais, de ser privado de tratamento desumano e de ter condições mínimas para uma vida saudável.

Uma importante conceituação desses termos foi trazida pela Comissão Europeia de Direitos Humanos (CEDH), após analisar um caso de violações sistemáticas aos direitos humanos na Grécia. Segundo a Comissão:

  • Tratamento desumano: é um tratamento que provoca grande sofrimento físico ou mental. Não há razões para que ele aconteça e, geralmente, as pessoas são submetidas a esforços que passam dos limites humanos;
  • Tratamento degradante: caso em que o indivíduo é levado a agir contra a sua vontade ou quando é humilhado perante si mesmo ou outras pessoas. O tratamento degradante é um tipo de tratamento desumano;
  • Tortura: é um tratamento desumano aplicado sobre uma pessoa com um objetivo específico, como obter informações sobre a própria vítima ou um terceiro, castigá-la por ato cometido, intimidar ou coagir esta ou outras pessoas, entre outras razões baseadas em discriminações de qualquer natureza. A tortura seria, então, um tratamento desumano mais grave.

A PROIBIÇÃO À TORTURA NA HISTÓRIA

Apesar de hoje ser uma prática combatida por quase todos os países e por inúmeras organizações internacionais, a tortura já foi utilizada como instrumento de poder em diversas sociedades. No passado, as torturas serviam como punição e chegavam, inclusive, a ser previstas nas legislações, como era o caso de Roma no século VIII a.C.

Além de ser um modo de punição, torturar as pessoas foi uma forma bastante comum de adquirir provas ou confissões com o objetivo de incriminar alguém. As confissões, em algumas sociedades, tinham valor superior a outras provas, ou seja, o que era confessado valia como verdade absoluta. Assim, criava-se um mecanismo que dava às pessoas que detinham o poder as condições para incriminar quem desejassem, pois para livrar-se da dor da tortura, as vítimas acabavam por admitir até mesmo atos que não haviam praticado.

Talvez o uso da tortura como instrumento sistemático de manifestação do poder seja de difícil compreensão para aqueles que vivem em um Estado de Direito, mas a prática foi mais comum do que nossa breve existência possa nos fazer crer. Séculos antes do nascimento de Cristo, as torturas já eram utilizadas e só começaram a ser proibidas a partir do século XVIII, com a propagação das ideias do Iluminismo, movimento intelectual que defendia o uso da razão e pregava maior liberdade política e econômica.

Contudo, a proibição à tortura foi oficializada somente em 1948, com a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos pelos Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU). Fazia três anos que a Segunda Guerra Mundial havia acabado, e a motivação para a assinatura da declaração era, em grande medida, evitar que as atrocidades que foram cometidas durante a guerra, em especial no Holocausto, acontecessem novamente. Veja o que diz o artigo 5º desse documento:

Ninguém será submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Hoje, para o direito internacional, a proibição à tortura é considerada uma norma jus cogens, que significa que todos os países devem obedecê-la, mesmo aqueles que não tenham assinado qualquer tratado ou convenção internacional sobre o tema. Como já explicamos, além da proibição à tortura ser um princípio geral do direito internacional, é uma violação gravíssima aos direitos humanos.

→ Para saber mais sobre a história da tortura no mundo confira este texto da Politize!.

A PROIBIÇÃO À TORTURA NA HISTÓRIA DO BRASIL

A tortura também faz parte de diversas páginas da história do Brasil. Ainda no período da colonização, os portugueses praticavam torturas como mecanismo de dominação sobre a população, em geral, indígenas e negros. A tortura era uma forma de punição por desobediência aos senhores e também usada para obter provas por meio de confissões.

A proibição da prática da tortura foi prevista na Constituição de 1824, que estabeleceu a abolição dos “açoites, [d]a tortura, [d]a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis” (art. 179, XIX). É evidente que em um país onde a escravidão era largamente praticada, o referido texto constitucional não manteve qualquer correspondência com a realidade. Nas Constituições posteriores, inexistiu referência expressa à vedação da tortura, que ademais continuou a ser utilizada pelo Estado brasileiro em diversos momentos da história, de forma mais ou menos velada, especialmente durante a Ditadura Militar. Alguns anos depois do final da ditadura, proclamou-se a Constituição de 1988, que, além de instituir a proibição à tortura, atendeu ao previsto pelas normas internacionais nesse quesito.

Segundo a nova Constituição, ninguém poderia ser vítima de tortura no Brasil, sob nenhuma condição, como descreve o inciso III do artigo 5º. E para que essa norma fosse cumprida, era necessária uma lei que descrevesse o que é considerado tortura e quais são as penas para quem comete esse tipo de crime. A Lei n. 9.455 foi promulgada no Brasil em 1997 e descreve a tortura de duas formas:

 I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

II  a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

III b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

IV c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

VII – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.


A proibição à tortura também está prevista no Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940) e no Código de Processo Penal Brasileiro (Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941). Segundo essas normas, a tortura é crime inafiançável, ou seja, quem praticar a tortura não poderá recorrer ao pagamento de uma fiança para ter a liberdade. E, além disso, é um crime que dificulta o livramento condicional, situação em que o indivíduo pode ter sua liberdade antecipada se cumprir alguns requisitos.

Nos últimos anos, diversas iniciativas para prevenir a prática da tortura foram implementadas no Brasil, como a criação do Sistema Nacional de Combate à Tortura pela Lei n. 12.847/2013. Essa legislação também prevê o monitoramento de locais de detenção, hospitais psiquiátricos e estabelecimentos prisionais, por exemplo, com o objetivo de evitar a ocorrência de tortura nesses ambientes, entre outras iniciativas.

Além disso, o  Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania tem um canal de denúncia de violação aos direitos humanos, o “Disque 100”. As ligações podem ser feitas em qualquer dia e horário, inclusive sábados, domingos e feriados.

→ Quer entender mais sobre a história da tortura no Brasil? A Politize! te explica.

O tratamento desumano e a tortura hoje no Brasil

O término da ditadura poderia ter sido o fim institucionalizado de práticas desumanas e cruéis no Brasil, porém esse fantasma insiste em nos assombrar. O tratamento desumano e degradante e, até mesmo, a tortura continuam existindo no país e sua invisibilidade se dá mais por estar na clandestinidade do que por se tratar de eventos isolados.

A organização internacional Human Rights Watch recebeu, entre janeiro de 2012 e junho de 2014, 5.431 denúncias de tortura, crueldade, desrespeito ou tratamento degradante no Brasil. Essas violações acontecem principalmente dentro de delegacias, prisões e viaturas. Para Maria Laura Carineu, diretora da organização no Brasil, o fator que permite a perpetuação dessas atrocidades é a impunidade, pois raramente esses casos são levados à justiça.

Com o intuito de evitar as práticas de tortura em sistemas prisionais no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem empreendido alguns esforços, por meio de acordos de cooperação com entidades nacionais e internacionais e monitoramento das práticas judiciais. Além disso, desde 2015, por iniciativa do CNJ, são realizadas audiências de custódia com presos em flagrante. Essa audiência tem que ser realizada com uma autoridade judicial até 24 horas após a prisão em flagrante para verificar a legalidade e a necessidade da manutenção da pessoa na prisão.

Essa medida atende à exigência da Convenção Americana de Direitos Humanos, que determina em seu artigo 7º que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”. Além de evitar que fique presa por um longo período sem ter conhecimento sobre o seu processo, ao ser encaminhada a um magistrado após a prisão em flagrante, a pessoa tem a oportunidade de relatar se houve algum abuso, tortura ou maus-tratos durante a prisão em flagrante.

 PROIBIÇÃO À TORTURA: O QUE APRENDEMOS?

Neste post, falamos sobre o inciso III do artigo 5º da Constituição, que trata da proibição à tortura. Além de ser objeto de diversos tratados e convenções internacionais, a proibição à tortura é uma cláusula pétrea da nossa Constituição, ou seja, não pode vir a ser tolerada. Por ser considerada um crime gravíssimo, que viola um direito fundamental, a tortura passou a ser inafiançável no Brasil. Isso significa que aquele que praticar a tortura não pode recorrer ao pagamento de fiança para ter sua liberdade de volta.

Contudo, apesar dos esforços no combate à tortura, tanto por parte do Estado brasileiro quanto da sociedade civil, ainda existem muitos relatos de tortura, maus tratos e violações aos direitos humanos, especialmente nos estabelecimentos prisionais do país. As principais dificuldades em avançar nesse tema têm relação com a falta de estrutura dos mecanismos de monitoramento e denúncia e com a impunidade de quem a comete.


Esse conteúdo foi publicado originalmente em junho/2019 e atualizado em agosto/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.


Sobre os autores:

Adriana Mattos

Advogada da equipe de Organizações da Sociedade Civil, Negócios Sociais e Direitos Humanos do escritório Mattos Filho

Talita de Carvalho

Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.


Fontes:

Human Rights Watch – World Report – Brazil

UN – Declaração Universal dos Direitos Humanos

OEA – Convenção Americana Sobre Direitos Humanos

FOLEY, Conor. Protegendo os brasileiros contra a tortura: um manual para juízes, promotores, defensores públicos e advogados.

Direito do Estado – Jus Cogens e a proteção internacional dos direitos humanos Senado Federal – Cláusula Pétrea

Ministérios dos Direitos Humanos – Disque 100 Conselho Nacional de Justiça – Audiência de Custódia

 Conectas Direitos Humanos – Tortura blindada: sumário executivo

VIEIRA, Adriana Dias. Do surgimento da proibição de infligir um tratamento cruel, desumano e degradante.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, Porto Alegre: Livraria do advogado, 2001

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