IMPENHORABILIDADE DA PEQUENA PROPRIEDADE RURAL
A impenhorabilidade da pequena propriedade rural é descrita no inciso XXVI do Artigo 5° da Constituição Federal de 1988. Nele, estão previstos direitos fundamentais para assegurar uma vida livre, digna e igualitária.
Desta forma, o direito fundamental garantido neste inciso está relacionado à função social da propriedade, à dignidade da pessoa humana e ao direito de moradia, também estabelecidos na Constituição Federal de 1988.
Este conteúdo é parte da parceria entre o Instituto Mattos Filho, a Civicus e a Politize! que explicam, no projeto Artigo Quinto, os direitos fundamentais previstos na Constituição.
O QUE É A IMPENHORABILIDADE DA PEQUENA PROPRIEDADE RURAL?
O artigo 5°, em seu inciso XXVI, afirma que:
a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento.
O inciso XXVI estabelece que as pequenas propriedades rurais, se exploradas para atividades familiares, não poderão ser tomadas como pagamento de dívidas adquiridas em atividades relacionadas à sua manutenção. Dessa forma, está relacionado à função social da propriedade, à dignidade da pessoa humana e ao direito de moradia, também previstos na Constituição Federal de 1988.
Contudo, o inciso determina condições para essa proteção, de modo que ela não se aplica a qualquer hipótese. Vejamos abaixo os requisitos para tal proteção:
- que seja uma pequena propriedade rural, conforme descrito em lei;
- que seja explorada diretamente pelo agricultor e sua família; e
- que seja uma dívida adquirida para a manutenção da propriedade rural.
Analisemos detalhadamente cada uma dessas condições.
A definição de pequena propriedade rural é estabelecida no artigo 4°do Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/1964):
Art. 4º. Para os efeitos desta Lei, definem-se: […]
II — “Propriedade Familiar”, o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros;
III — “Módulo Rural”, a área fixada nos termos do inciso anterior […].
A Lei n. 8.692/1993, por sua vez, determina que a extensão-limite do território de uma pequena propriedade rural é de até quatro módulos fiscais — unidade de medida definida pelos municípios, em hectares, para definir uma área produtiva viável .
Quanto à segunda condição, caso a exploração da terra seja realizada por terceiros, a proteção constitucional deixa de ser válida. Isso não significa, no entanto, que o agricultor nunca possa contratar funcionários para ajudar no plantio ou na colheita. Por fim, para que a impenhorabilidade se aplique, ela deve ser referente a uma dívida contraída pelo produtor na manutenção da propriedade.
O inciso XXVI tem origem no reconhecimento de que a atividade rural envolve uma série de riscos, muitos dos quais estão fora do controle do produtor, a exemplo de alterações naturais, como secas, inundações ou pragas. Seu objetivo é proteger o pequeno agricultor desse tipo de situação. Até por essa razão, se a dívida for contraída por meio de atividades pessoais do produtor, não relacionadas à produção, não há proteção constitucional aplicável.
O HISTÓRICO DA IMPENHORABILIDADE DA PEQUENA PROPRIEDADE RURAL NO BRASIL
A previsão do direito fundamental à impenhorabilidade da pequena propriedade rural na Constituição é uma novidade no histórico constitucional brasileiro, sendo a Constituição Federal de 1988 a primeira a incluir essa garantia.
Essa proteção ao pequeno produtor rural no Brasil decorre da função social da propriedade, presente na Constituição de 1988. A função social pode limitar o direito de propriedade, nos termos do inciso XXIII do artigo 5°, devendo a impenhorabilidade da pequena propriedade rural ser entendida nesse contexto.
QUAL A IMPORTÂNCIA DE GARANTIR QUE A PEQUENA PROPRIEDADE RURAL NÃO SEJA PENHORADA?
De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 81,3% das áreas rurais do Brasil são latifúndios. Em 2010, 40% dos latifúndios brasileiros foram considerados improdutivos, somando 228 milhões de hectares abandonados ou produzindo abaixo da capacidade.
A improdutividade das grandes propriedades de terra contraria a Constituição Federal, segundo a qual toda propriedade deve cumprir sua função social. Assim, a impenhorabilidade da pequena propriedade rural pode ser entendida como um estímulo aos pequenos agricultores, que respeitam a função social da propriedade e com sua produção contribuem para o desenvolvimento social e econômico do país.
Dados divulgados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento em 2018 demonstram que, com faturamento anual de US$55,2 bilhões, o Brasil ainda estaria entre os dez maiores produtores de alimento do mundo se sua produção fosse inteiramente realizada pela agricultura familiar. De acordo com o último Censo Agropecuário do IBGE, a agricultura familiar, realizada pelo pequeno produtor rural, é responsável pela renda de 40% da população economicamente ativa do país. Além disso, os pequenos proprietários rurais são responsáveis por 70% do feijão, 34% do arroz, 60% do leite e 50% das aves produzidos no Brasil.
A importância da agricultura familiar é ainda mais evidente no nível municipal, já que é a base econômica de 90% dos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes.
Imagine, então, que um desses municípios é atingido por uma grande praga. Os pequenos agricultores perdem suas plantações e, para custear a produção, contraem dívidas. Sem a proteção do inciso XXVI do artigo 5º da Constituição, esses produtores poderiam perder suas propriedades, gerando caos econômico no município.
Assim, a impenhorabilidade da pequena propriedade também ajuda a garantir a dignidade humana, outro princípio basilar da Constituição Federal.
COMO ESSE DIREITO FUNDAMENTAL É GARANTIDO NA PRÁTICA?
A partir do inciso XXVI, do artigo 5º da Constituição, diferentes programas governamentais foram desenvolvidos. Dentre esses projetos, destaca-se o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que oferece financiamento para atividades rurais realizadas por pequenos produtores. Existem, ainda, políticas que oferecem segurança jurídica e um seguro da produção, com o intuito de impulsionar a agricultura familiar.
Assim, ao estabelecer que a pequena propriedade rural não poderá ser objeto de penhora, ou seja, não poderá ser tomada como pagamento de eventual dívida, o inciso XXVI apoia a agricultura familiar e reconhece a importância do vínculo entre o produtor e a terra.
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em novembro/2019 e atualizado em agosto/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Autores:
- Fernanda Araújo José
- Isabela Moraes
- Mariana Mativi