INCISO XLV – PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA DA PENA
Você sabia que o princípio da intranscendência da pena define que não é possível que a pena de um cidadão condenado seja transferida para outro? Essa é uma garantia extremamente importante para a sociedade, já que, de fato, não faria sentido que um cidadão que não cometeu nenhum delito respondesse pelos atos ilícitos de outro, certo? Mas esse assunto tem detalhes importantes que serão discutidos ao longo do texto, então continue conosco!
Explicaremos mais sobre como a Constituição define o princípio da intranscendência da pena e por que ele é tão importante, bem como seu histórico e aplicação na prática. Esse é mais um conteúdo do projeto Artigo Quinto, uma parceria da Politize! com a Civicus o Instituto Mattos Filho, que tem como objetivo descomplicar direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição.
Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do Artigo Quinto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros por meio de textos com uma linguagem fácil.
O QUE É O INCISO XLV?
O inciso XLV do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:
nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;
O inciso XLV do artigo 5º da Constituição trata do princípio da pessoalidade da pena – também conhecido como princípio da intranscendência, personalidade ou intransmissibilidade da pena. Ele garante que apenas a pessoa sentenciada poderá responder pelo crime que praticou.
Não importa se a pena é privativa de liberdade (reclusão, detenção ou prisão simples), restritiva de direitos (prestação de serviços à comunidade ou interdição temporária de direitos) ou multa: em todos os casos, a responsabilidade é sempre daquele que praticou o crime, isto é, do condenado, não podendo ser transmitida aos seus familiares.
Contudo, existe uma ressalva: os casos em que, em razão de um crime, a vítima sofre danos materiais e/ou morais. Nos termos do artigo 91, incisos I e II e § 1º, do Código Penal, além da pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos ou da aplicação de multa, o autor do crime também pode ser condenado à reparação do dano sofrido (mediante uma indenização, por exemplo).
Em tais hipóteses, a parte final do inciso XLV do artigo 5º permite que, em caso de falecimento do condenado, os seus sucessores (filhos e herdeiros em geral) arquem indiretamente com a reparação de danos, em montante limitado ao valor do patrimônio transferido pelo condenado via herança.
HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA DA PENA
O princípio da pessoalidade da pena está previsto em todas as Cartas desde a Constituição do Império (1824), exceto pela Constituição de 1937, que não inseriu nenhuma previsão sobre isso. Vejamos como as antigas Constituições abordavam este tema:
“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. […] XX: Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. Por tanto não haverá em caso algum confiscação de bens, nem a infamia do Réo se transmittirá aos parentes em qualquer gráo, que seja”;
“Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 19 – Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente”;
“Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […] 28) Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente”;
“Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 30 – Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente”;
“Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] § 13 – Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. A lei regulará a individualização da pena”;
“Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes: […] § 13. Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. A lei regulará a individualização da pena”.
Fica evidente que o conteúdo do inciso XLV do artigo 5º da atual Constituição não é inovador no ordenamento jurídico brasileiro, pois quase sempre esteve previsto em nossas constituições.
Como citado anteriormente, apenas a Constituição de 1937 – também conhecida como “Polaca” – excluiu esse princípio de seu texto. Isso é justificado pelo contexto histórico em que ela estava inserida: não era um período com grandes preocupações em relação a garantias de direitos para os cidadãos. Pelo contrário, por conta do governo autoritário de Getúlio Vargas.
IMPORTÂNCIA DO INCISO XLV E SUA APLICAÇÃO PRÁTICA
O princípio do inciso XLV do artigo 5º é um dos pilares do direito penal – que regula o poder punitivo do Estado – e, como visto, impede que terceiros sem qualquer participação no ato ilícito respondam por crimes praticados por outras pessoas.
Vale ressaltar que o princípio da pessoalidade da pena aplica-se não apenas à pena privativa de liberdade (cumprida em regime fechado), mas também às penas restritivas de direitos ou alternativas (cumpridas por meio de serviços à comunidade, por exemplo). Isso foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento do Habeas Corpus nº 68309.
Naquela oportunidade, o STF analisou especificamente a pena de prestação de serviços comunitários. A Corte ressaltou que, por se tratar de uma sanção jurídica e de uma medida alternativa à pena privativa de liberdade, a prestação de serviços à comunidade deveria submeter-se a todas as limitações dos princípios da liberdade individual.
Portanto, a decisão que permitisse “ao condenado fazer-se substituir, por terceiro absolutamente estranho ao ilícito penal, na prestação de serviços à comunidade”, violaria o princípio da pessoalidade.
De modo geral, o direito assegurado pelo inciso XLV do artigo 5º, por se tratar de uma garantia efetivamente assegurada na prática, é pouco polêmico em comparação a outros princípios constitucionais. Para que sua aplicabilidade fique clara, vejamos dois exemplos hipotéticos:
- Imagine que uma pessoa de sua cidade tenha cometido um crime passível de pena, com o qual você não teve nenhum envolvimento. O inciso XLV do artigo 5º assegura constitucionalmente que você não cumpra a pena no lugar dessa pessoa, mesmo que você assim queira. Isso porque seria uma injustiça enorme punir alguém pelos atos ilícitos praticados por outro.
- Agora, suponhamos que seu pai tenha cometido um crime de roubo a um banco e, além de receber uma pena privativa de liberdade (prisão), ele foi condenado a indenizar o dano patrimonial causado ao banco e, na sequência, veio a falecer. Diferentemente do exemplo anterior, caso seu pai viesse a óbito, você, na qualidade de herdeiro, poderia tornar-se responsável pela indenização do dano. Mas o limite seria o valor do patrimônio que seu pai deixou como herança.
O segundo exemplo é fundamentado pela parte final do inciso XLV, que prevê que a obrigação de reparar o dano e a decretação da perda de bens (quando há a necessidade de recolher algum bem para o pagamento da indenização) poderão ser estendidas aos sucessores e contra eles executadas até o limite do valor do patrimônio transferido.
Aqui não entra a pena privativa de liberdade, a restritiva de direitos e nem a multa, apenas a obrigação de indenização do dano causado. Portanto, a extensão dessa obrigação não viola o princípio da pessoalidade.
É interessante pontuar que, ainda que não haja o falecimento do condenado, há outros casos em que a família do acusado, além de todo o desgaste emocional decorrente do processo penal, também pode estar sujeita a uma drástica redução de recursos financeiros. Tais situações podem extrapolar a pessoalidade da pena, conforme alguns casos decididos pelo poder judiciário.
Nesse sentido, destacamos o raciocínio adotado pelo STF no julgamento do Habeas Corpus (HC) n. 95009. A Corte entendeu que os mandados de busca e apreensão de quaisquer bens do acusado, por permitirem excessos, violariam a garantia da pessoalidade da pena. Isso porque acabariam por punir, indiretamente, os familiares do acusado, privando-os de “bens que poderiam ser convertidos em recursos financeiros com os quais seriam eventualmente enfrentados os tempos amargos que se seguem à sua prisão”.
Cabe ainda citar o pronunciamento do então ministro Eros Grau, que discorreu sobre o caso:
AFRONTA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS CONSAGRADAS NO ARTIGO 5º, INCISOS XI, XII E XLV DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. De que vale declarar, a Constituição, que “a casa é asilo inviolável do indivíduo” (art. 5º, XI) se moradias são invadidas por policiais munidos de mandados que consubstanciem verdadeiras cartas brancas, mandados com poderes de a tudo devassar, só porque o habitante é suspeito de um crime? […] E a apreensão de toda a sorte de coisas, o que eventualmente privará a família do acusado da posse de bens que poderiam ser convertidos em recursos financeiros com os quais seriam eventualmente enfrentados os tempos amargos que se seguem à sua prisão. A garantia constitucional da pessoalidade da pena (art. 5º, XLV) para nada vale quando esses excessos tornam-se rotineiros.
O princípio da pessoalidade da pena também foi fundamento da decisão proferida pelo STF no HC n. 143.641. A decisão determinou a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar, em todo o território nacional, para mulheres presas que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência.
Entre as razões, o ministro relator Ricardo Lewandowski descreveu diversas situações cotidianas que mães e gestantes presas vivenciam. Ele destacou que o sistema prisional brasileiro faz com que a pena passe da mãe para os filhos, pois os sujeitam a situações desgastantes e de extrema calamidade.
CONCLUSÃO
Como visto, o princípio da intranscendência da pena é definido, basicamente, como a impossibilidade de transmitir a pena de uma pessoa condenada a um terceiro.
Agora que você já conhece um dos meios que o Estado se vale para proteger a democracia e a ordem constitucional, que tal disseminar esse conhecimento? Compartilhe esse conteúdo com seus amigos e dê sua opinião nos comentários! Esse foi mais um texto do projeto Artigo Quinto. Para conhecer outras liberdades e direitos garantidos no artigo 5º da Constituição Federal, visite a página do projeto!
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em abril/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Autores:
- Jéssica Caroline Covolan
- Mariana Mativi
- Matheus Silveira
Fontes:
- Instituto Mattos Filho de Advocacia;
- Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;