Cada país estabelece suas próprias regras de tributação sobre herança em seu território. Na Bélgica, por exemplo, o percentual cobrado pode chegar a 80%. Enquanto em outros países, como o Brasil, as alíquotas são definidas pelos Estados, mas serão de no máximo 8%, impactando essas sociedades de forma diferente.
Há em nosso país o direito à herança que é garantido pela Constituição, ou seja, todo cidadão tem assegurado o direito de transmitir o seus bens para os herdeiros após a morte. Devido ao contexto de concentração de riqueza, a forma como essa herança é transmitida tem sido motivo de debate.
Isso ocorre porque a tributação sobre herança pode promover a manutenção da desigualdade no país. Neste texto, vamos falar justamente sobre a relação entre a taxação de herança e a desigualdade. Se quiser entender melhor como esse tipo de tributação pode manter tais diferenças, segue com a gente!
O projeto Tributos e Desigualdade é uma realização do Instituto Mattos Filho, produzido pela Civicus em parceria com a Politize!. Juntos, temos o objetivo de levar conhecimento e informações sobre a tributação no Brasil e seus impactos sobre as desigualdades.
→ Neste eixo do projeto, conversamos com a Luiza Guanabara, estagiária de direito tributário do Mattos Filhos e discutimos qual o papel da tributação no combate às desigualdades. Confere esse papo aqui:
A concentração de riquezas no Brasil
Para entendermos melhor a relação entre a tributação de heranças e a desigualdade social, é importante analisar o contexto brasileiro no que se refere à concentração de riquezas, renda e propriedade. É necessário considerarmos que a maneira como o país foi construído gerou diversas desigualdades que persistem até os dias atuais. A colonização e a escravidão, por exemplo, foram responsáveis por diferenças significativas na distribuição de riquezas entre negros e brancos, assim como na concentração de terras, o que resultou em grupos privilegiados que detinham grandes extensões de terra, possibilitando a geração de mais riquezas.
→ Quer entender como a tributação foi se modificando ao longo da história do Brasil? Acesse nosso post “O tributo ao longo da história no Brasil”
Em uma entrevista à BBC, o economista irlândes Marc Morgan Milá, que investiga a concentração de riquezas no Brasil, afirmou que não é possível defender o princípio da meritocracia no país, pois a baixa tributação sobre heranças é vantajosa para aqueles que recebem fortunas. Isso resulta na persistência das desigualdades através das gerações.
Segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em 2019, o grupo de 1% dos brasileiros mais ricos possuía 25,5% da renda total do país e 35,3% da riqueza total. Se considerarmos o recebimento de heranças, 80,9% do total transmitido permaneceu nas mãos deste grupo. Esses números evidenciam a concentração de riquezas, em que um grupo extremamente pequeno possui uma parcela considerável das riquezas de um país com dimensões continentais, e essa concentração se mantém por meio da herança.
A tributação sobre herança ao longo do tempo
A tributação sobre herança teve início no Brasil com a chegada dos portugueses. A chamada “Décima das Heranças e dos Legados”, que definia a parte da herança que seria destinada à coroa, foi instituída em 1809. A partir de 1832, era responsabilidade das províncias imperiais fazer tal cobrança, e a Lei 1.507, em 1867, criou o “Imposto de Transmissão de Propriedades”, responsável por regulamentar as heranças, doações e transmissões entre vivos.
Com a Constituição de 1891, o imposto continuou sendo de competência estadual e isso se manteve durante 75 anos, de 1889 até 1964. Dessa forma, os estados tinham autonomia para estabelecer as alíquotas, podendo fazer isso variando o percentual de cobrança conforme o grau de parentesco, por exemplo.
A partir da ditadura militar, a Emenda Constitucional nº 18 de 1965 modificou a forma de cobrança do tributo sobre herança. Ela passou a ser feita apenas sobre imóveis, ou seja, todos os outros tipos de riquezas – dinheiro, carros, joias – não seriam tributados. O percentual de cobrança era definido pelo Senado Federal e chegou a um valor máximo de 4%.
Somente com a redemocratização, por meio da Constituição Federal de 1988, houve mudanças na tributação de heranças. Foi estabelecida a possibilidade de tributação sobre qualquer tipo de bem e a definição da alíquota máxima, mantida como competência do Senado Federal, passou a ser de até 8%. O tributo cobrado sobre as transmissões das heranças passou a se chamar ITCMD, Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação, existente até os dias de hoje.
Além do baixo percentual de cobrança sobre herança, ao longo da história, existiram formas de tributar que beneficiaram alguns grupos. Por exemplo, na ditadura militar, famílias com muitas riquezas poderiam transmitir seus bens por meio de dinheiro e não eram tributadas. Outro ponto relevante é a autonomia concedida aos estados para definir suas próprias regras de cobrança, já que isso poderia promover diferenças entre regiões.
Quer entender mais sobre desigualdade social no Brasil? Confira o conteúdo do Projeto Direito ao Desenvolvimento: Desigualdade social no Brasil: conheça o Novo Pacto Nacional das OSCs!
ITCMD – Imposto de transmissão causa mortis e doação
A herança, assim como a renda e a propriedade, também é tributada. Como já apresentamos, isso será feito por meio do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação ou ITCMD. Esse imposto está previsto no Artigo 155 da Constituição Federal.
→ Se quiser saber mais sobre o ITCMD, acesse nosso post “Quais impostos sobre propriedade devemos pagar?”
Essa cobrança é de competência dos Estados da Federação e as alíquotas podem ser progressivas, isto é, aumentar conforme a quantidade de riqueza a ser tributada. Em 2023, o percentual máximo de cobrança era de 8%, conforme definido em resolução do Senado Federal. Dessa maneira, há uma tentativa de considerar a capacidade contributiva, um dos princípios constitucionais, cobrando mais daqueles que receberão maiores patrimônios e, por consequência, podem contribuir mais.
Apesar desses avanços, ainda há desafios para que a tributação de heranças desempenhe um papel mais relevante na redução da desigualdade no país, tais como:
- Alguns estados, como São Paulo, Minas Gerais e Paraná, ainda possuem um sistema regressivo na cobrança do ITCMD, com alíquotas entre 4% ou 5%. Além disso, esses estados concentram cerca da metade do PIB brasileiro, ou seja, já há uma grande concentração de riquezas nessas regiões e, devido à falta de uma cobrança mais justa, isso acaba gerando mais desigualdade.
- A progressividade permitida para o ITCMD ainda é limitada, visto que a alíquota não pode ultrapassar 8% segundo a resolução do Senado Federal. Para um combate mais efetivo da desigualdade, seria necessário estabelecer uma maior progressividade.
- Há diferenças entre os critérios de isenção utilizados pelos estados. Então, algumas regiões podem ter uma tributação menor se comparada a outras, podendo afetar a concentração de renda e riquezas, consequentemente, promovendo a desigualdade.
Embora existam questões no que se refere à cobrança do ITCMD e seu efetivo papel na diminuição da desigualdade, a tributação sobre heranças tem como objetivo justamente promover a distribuição de riquezas e minimizar as diferenças sociais. Isso porque uma parcela do patrimônio do falecido passará a pertencer ao Estado por meio da cobrança de imposto, diminuindo a concentração de riqueza em uma única família, já que os herdeiros irão acessar o valor após recolhimento.
Com os valores arrecadados, o Estado pode favorecer diversas áreas, como: saúde, educação, lazer, cultura, entre outras, promovendo uma igualdade de oportunidade de acesso entre indivíduos. Em 2019, mesmo com a alíquota máxima de 8% (na prática, entre 4% a 5% se considerarmos que estados com parcela significativa do PIB não utilizam alíquotas maiores), foi arrecadado o equivalente a 0,12% do PIB brasileiro, totalizando R$ 7,389 trilhões, por meio da tributação sobre herança. Isso evidencia como o ajuste da alíquota pode favorecer o combate às desigualdades, uma vez que representa uma fonte de arrecadação significativa para a promoção de políticas públicas.
→ Que saber como a tributação se relaciona com as políticas públicas no Brasil? Acesse nosso post “ Tributação e garantia de políticas públicas: entenda essa relação”
Comparação entre tributação de herança entre Brasil e outros países
Cada país tem liberdade para definir seu sistema de tributação não havendo um “certo” ou “errado”. Diversas variáveis devem ser consideradas. Nesse sentido, é comum que especialistas e pesquisadores analisem as diferentes formas de tributação, os benefícios e malefícios que elas apresentam, para tentar definir qual seria mais adequada em cada contexto.
Assim, a comparação entre as diferenças da tributação do Brasil e de outros países pode ser feita para pensar possíveis melhorias e a aplicabilidade delas em nosso território. Entre os países analisados, aqueles que participam da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) ganham destaque por serem economias mais avançadas.
A OCDE considera que tributar heranças e doações pode permitir que os países aumentem a arrecadação e, por consequência, possam investir mais em políticas públicas que promovam melhorias econômicas e sociais, diminuindo as desigualdades.
Quando avaliamos a progressividade da tributação sobre herança, notamos que ela é bem maior em outros países, aspecto recomendado pela OCDE. Por exemplo, países como a França, Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos e Japão possuem alíquotas entre 30% e 55%. Então, nesses países os mais ricos pagam uma proporção muito maior desse tipo de imposto se comparado ao Brasil.
A partir dessas diferenças, muitos debates surgem no país sobre a necessidade de ajuste na tributação sobre heranças. Bianca Sampaio, advogada de direito tributário no Escritório Mattos Filho, afirma que no Brasil a renda é concentrada. Com isso, a baixa tributação sobre herança evidencia uma perspectiva que continua promovendo a concentração de renda. Por outro lado, nos países com uma tributação maior sobre herança, há uma visão de que é necessário trabalhar para acumular riquezas. Em outras palavras, a forma de tributação demonstra a perspectiva de uma sociedade sobre trabalho, riqueza e ganhos.
→ Para acessar o conteúdo completo, veja nosso vídeo no Youtube – “Tributação sobre renda, consumo e propriedade: como isso acontece no Brasil?”
Outro ponto que o Brasil se diferencia das recomendações da OCDE é no uso de um sistema tributário regressivo – aquele que há concentração de tributos indiretos. Em 2019, 51% da carga tributária brasileira foi composta por esse tipo de arrecadação. Desse modo, é evidente que essa concentração impede uma cobrança de tributos que considere de modo mais preciso a capacidade contributiva de cada um. A partir disso, ajustar a alíquota de tributação sobre heranças seria uma forma de reduzir a carga tributária proporcionalmente mais pesada para pessoas mais pobres.
→ É verdade que o Brasil paga mais tributos que outros países? Confira nosso conteúdo “A carga tributária do Brasil em comparação com outros países”.
Conclusão
A tributação sobre herança tem um papel fundamental no combate às desigualdades. Ela possibilita que haja uma diminuição na concentração de riquezas, já que, ao tributá-las, o Estado pode distribuí-las em ações públicas que promovam a igualdade.
A situação brasileira tem alguns agravantes: a tributação sobre herança ainda é baixa, apesar das melhorias que foram implementadas, e ocorre de forma distinta entre regiões, o que pode afetar a desigualdade entre elas. Além disso, o sistema tributário regressivo ainda cobra proporcionalmente mais daqueles com menor riqueza, sendo que a carga tributária nacional é composta principalmente por tributos indiretos. Dessa maneira, as tentativas de ajuste na tributação sobre heranças ainda não compensam a concentração de tributos sobre bens e serviços, sendo necessário mudanças mais profundas.
É importante pontuar também que não há um único “caminho certo”, como a advogada Bianca afirmou, a forma de tributar também apresenta a visão de uma sociedade sobre algo – não de toda sociedade, mas sim daqueles que agem mais diretamente sobre as leis. Nesse sentido, é necessário que cada cidadão escolha qual tipo de candidato pode representá-lo melhor.
Por fim, podemos perceber que o panorama da tributação sobre heranças é bastante complexo, com diversos interesses envolvidos. Embora existam melhorias, elas ainda são pouco eficientes. No próximo post, iremos nos aprofundar na isenção tributária e como ela se relaciona com a desigualdade. Quer saber mais sobre o assunto? Então, continue acompanhando o projeto!
→ Neste vídeo, apresentamos de forma simples e didática qual o papel da tributação no combate à desigualdade. Clique no play para começar:
Autores:
- Amanda Casseb Reis Ramos
- Isabele Monteiro Zeitune
- Leonardo Linck Squillace
- Luiza Linardi Guanabara
- Mariana Mativi
- Marina da Silva Costa
- Pamela Vieira de Souza Ramagnoli
- Pâmela Larissa Miguel Gottardinie
- Raimundo Vinicius