Como já contextualizamos em textos anteriores sobre o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, após a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948, os Direitos Humanos atingiram um novo patamar ainda não alcançado até então.
Diferentemente de qualquer outro momento da história, desde a metade século XX até os dias de hoje. os Direitos Humanos foram amplamente invocados, disseminados e implementados no mundo.
Tal avanço se deu principalmente em razão do fenômeno da globalização. Porém, nesse momento os Direitos Humanos também encontram situações de crise e dificuldade de afirmação.
Nesse sentido, pode-se dizer que a defesa e a proteção dos Direitos Humanos encara situações em que, ao mesmo tempo, são fortalecidas e sofrem desgaste.
Com isso em mente, neste último texto do Equidade sobre o tema do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, tentaremos compreender a situação dos Direitos Humanos no mundo, buscando entender alguns dos principais avanços e contribuições, bem como alguns dos desafios que ainda enfrentamos.
O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender os avanços e desafios que os Direitos Humanos possuem no mundo? Segue com a gente!
Avanços possibilitados pelo Sistema ONU
A preocupação com os Direitos Humanos à nível mundial, decorrente da criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, e da elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948, indicou que o direito internacional estava reconhecendo a vulnerabilidade de certos grupos de indivíduos ao redor do mundo, especialmente no que se refere à sua condição social, econômica, política e cultural.
Dessa forma, consolidou-se o entendimento de que um tratamento igualitário para todos os seres humanos era extremamente necessário para a prosperidade da humanidade como um todo.
Assim, o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos estabeleceu o caráter universal desses Direitos Humanos, propagando a ideia de que todos devem ter condições e recursos básicos para uma vida digna, sem distinção de classe, raça, sexo, religião ou nacionalidde.
Parece simples, como já comentamos em textos anteriores, mas foi a primeira vez que os Direitos Humanos foram reconhecidos em âmbito global, sem nenhum requisito prévio para que qualquer indivíduo possa invocá-los; bastando apenas estar vivo. Isso permitiu um grande avanço para grupos minoritários que geralmente sofrem algum tipo de preconceito ou discriminação.
Um exemplo prático desse avanço no mundo diz respeito à questão dos refugiados, ou seja, pessoas que são obrigadas a migrar de um país a outro ou de uma região a outra devido a guerras civis ou perseguição política, religiosa ou cultural.
Até a elaboração da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, ou Convenção de Genebra, em 1951, as pessoas obrigadas a se deslocarem do país de origem não tinham uma proteção jurídica universal.
A partir disso, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) foi fundada, e, desde então, trabalha defendendo os Direitos Humanos dos refugiados nos países de acolhimento, a fim de garantir que não sejam coagidas a retornar ao seu país de origem, contra sua vontade.
Atualmente, a ACNUR presta assistência e proteção a mais de 67 milhões de pessoas em situação de refúgio ao redor do mundo, estando presente em 130 países.
É claro que a questão dos refugiados no mundo passa longe de ser a ideal e milhares de violações de Direitos Humanos ainda ocorrem contra pessoas nessa situação.
Porém, o progresso é inegável, considerando que, no passado, essas pessoas não possuíam nenhum amparo, eram muitas vezes proibidas de entrar em outros Estados e devolvidas ao seu local de origem, onde eram submetidas a condições desumanas, sem poder recorrer a nenhuma rede de segurança e de proteção internacional.
De toda forma, até mesmo nos casos em que grandes progressos foram alcançados, os Direitos Humanos no mundo ainda enfrentam obstáculos a serem superados e há muito a se fazer. É o caso de dois grandes desafios que ainda assolam a humanidade: o encarceramento em massa e a discriminação.
Saiba mais sobre como a justiça social, igualdade de direitos e desenvolvimento sustentável se conectam: Como gerar energia sustentável para todos no Brasil?
O desafio do encarceramento em massa
O encarceramento em massa, ou seja, a existência de um grande número de pessoas em prisões em condições muitas vezes desumanas é um problema que afeta de maneira majoritária os países mais pobres e em desenvolvimento, também chamados de periféricos, como no caso do Brasil.
Segundo a World Prison Brief, os EUA e a China são os únicos países desenvolvidos que figuram entre os 20 países com as maiores populações carcerárias no mundo. Isso ocorre em vista das condições socioeconômicas dos países em desenvolvimento, que são mais precárias devido a desigualdade social existente, uma das principais causas da violência.
O raciocínio é simples: se um ser humano é colocado a viver em condições insustentáveis e degradantes, aumentam as chances de ele se revoltar e procurar meios ilegais para levar uma vida com o mínimo de decência.
Ou seja, quanto maior a desigualdade de uma região, maior tende a ser a violência nela também, como sugere o estudo do IPEA sobre criminalidade e desigualdade social no Brasil.
Buscando resolver esse problema, os Estados tendem a adotar medidas punitivistas. Em países das Américas, essas medidas foram acentuadas a partir da década de 1970, quando o governo de Richard Nixon, nos EUA, iniciou uma política de guerra às drogas.
O resultado no país foi o encarceramento em massa, principalmente de jovens afrodescendentes da periferia, colocando os EUA no topo do mundo como o país com a maior população carcerária do mundo.
A importação da política de guerra às drogas nos países latino americanos, especialmente no Brasil, fez com que o encarceramento aumentasse sistematicamente.
Atualmente, segundo o Infopen de 2019, o Brasil possui cerca de 758.676 pessoas em situação de privação de liberdade, sendo que segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), em 2017 o número de vagas disponíveis no sistema carcerário era de 367.217.
Ou seja, o país enfrenta uma superlotação no sistema prisional, sendo o terceiro país com maior número de presos no mundo.
O grande problema da superlotação é a condição sub-humana na qual essas pessoas são colocadas, sendo uma das principais causas de violações de direitos em nossa sociedade.
Como um sintoma desse problema estrutural, rebeliões e assassinatos ocorrem dentro dos presídios, em atos de revoltas contra a situação desumana em que se encontram grande parte dos reclusos. Como o conhecido massacre do Carandiru, ocorrido em 1992, em que 111 detentos foram mortos.
Segundo a advogada especialista em Direitos Humanos e consultora da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), Joana Zylberstajn:
“Os Direitos Humanos não vão garantir impunidade, vão garantir que as pessoas tenham defesa, tenham um processo justo. Isto é difícil de entender, às vezes“.
Isso significa que o aspecto universal dos Direitos Humanos também é válido para pessoas presas, que muitas vezes sofrem com abuso de autoridade, violência, suspensão arbitrária de direitos, falta de infraestrutura adequada, entre outros.
O desafio da discriminação
Outro grande desafio que a humanidade ainda enfrenta é a discriminação. A diversidade e a pluralidade das condições humanas ainda não é aceita de forma plena no mundo.
A segregação racial, as perseguições política e religiosa, a homofobia, o preconceito de gênero, entre outros, ainda estão presentes nas sociedades espalhadas pelo globo.
A discriminação nasce do olhar egóico (relativo ao próprio ego) do ser humano, que possui dificuldade em lidar com tudo que é diferente e foge do seu próprio referencial.
Ao ter o seu modo de vida e suas características, sejam elas físicas, materiais ou culturais, enraizados como um modelo a ser seguido, ou como “certo”, cria-se uma concepção dual em que o outro lado ou o diferente daquele padrão idealizado é “errado”.
Assim, o preconceito e a discriminação entre seres humanos e a exclusão de determinado grupo de pessoas acontecem.
As barreiras que são construídas com base na concepção do certo e do errado podem levar as pessoas a cometerem atos de violência e humilhação contra os seus próprios semelhantes.
Dessa forma, quando esse sentimento de aversão é institucionalizado em um país, temos a estruturação de um ambiente de perseguição contra os grupos de pessoas que sofrem a discriminação.
Um exemplo prático é a Turquia, que prevê em sua lei nacional que homossexuais não podem prestar o serviço militar no país, excluindo a parcela homossexual da população de uma atividade pública.
Além disso, em 2014 a Suprema Corte da Turquia definiu homossexualidade como um comportamento que não é natural dos seres humanos.
A discriminação também pode levar a perseguição de grupos minoritários e vulneráveis, causando um certo regime de terror contra essas pessoas.
Exemplos dessa situação foram o genocídio de Ruanda, em 1994, em que cerca de 800 mil pessoas foram assassinadas por serem do grupo étnico tutsi, minoritário no país e, mais recentemente, o genocídio Rohingya, no Myanmar, que de 2017 até 2019 obrigou cerca de 740 mil rohingyas, grupo étnico islão, a abandonarem o país por conta da violência praticada em vista de sua religião, o Islã.
Você pode estar se perguntando, “mas como a ONU e o direito internacional permitem que esse tipo de coisa aconteça?”.
A resposta é que a ONU não permite, mas também não pode interferir internamente em um país sem permissão, em razão da soberania que os Estados possuem sobre o seu território, o que lhes garante legitimidade para seguir e implementar as normas internas que lhe convém, sem necessariamente sofrer retaliações por isso.
Você sabia que as parcerias entre a iniciativa privada e o Estado podem transformar a qualidade de vida das pessoas? Ao facilitar o acesso a serviços essenciais como saúde, educação e água potável, as PPPs (parcerias público-privadas) desempenham um papel importante na garantia de direitos humanos básicos. Veja mais sobre o tema em: Parcerias Público-Privadas: um caminho para as metas do ODS 17.
Conclusão
É nítido que os Direitos Humanos ainda estão em um processo de evolução. Os avanços possibilitados pelo Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos são inegáveis e inéditos na história do direito internacional.
A valorização da vida e o reconhecimento do princípio da dignidade humana para todos os povos e sociedades do mundo é uma vitória que merece ser exaltada.
Entretanto, devemos acreditar em seus valores e, ao mesmo tempo, colocar esses direitos em prática.
Isto é, como humanidade, temos que criar a consciência de nossa igualdade enquanto seres humanos, trabalhando como se cada um fizesse parte de um mesmo todo, formado pela pluralidade e pela diversidade de crença, sexo, raça, cultura, classe social e nacionalidade.
O Direito, como parte integrante da construção dos valores e normas de uma sociedade, deve reconhecer a existência dessa pluralidade e atuar de maneira a amenizar as distâncias encontradas entre grupos dominantes e privilegiados e grupos vulneráveis e historicamente em desvantagem.
Os Direitos Humanos nascem desse ideal e buscam trazer o princípio da igualdade para servir como ferramenta de justiça e defesa para todos.
O propósito de justiça para todos é também uma das intenções do Equidade, que almeja contribuir, por meio da difusão de conhecimento sobre Direitos Humanos, para uma sociedade cada vez mais consciente de seus direitos e deveres.
Por isso, a nós cidadãos cabe lutar e exigir do Poder Público que absurdos como racismo, homofobia e discriminação contra mulheres, refugiados, pessoas com deficiência ou contra toda e qualquer pessoa em situação de vulnerabilidade, não sejam praticados sem que a justiça seja feita. Só assim os desafios e obstáculos enfrentados pelos Direitos Humanos serão superados.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos Humanos”, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Bárbara Correia Florêncio Silva
Eduardo de Rê
Helórya Santiago de Souza
Julia Piazza Leite Monteiro
Luíza da Camara Chaves
Marcella Caram Zerey
Marília Lofrano
Yvilla Diniz Gonzalez
Fontes:
2- BARROS, Patrícia F. et al. Direitos humanos x encarceramento: O sistema prisional brasileiro como violador dos direitos humanos. Jus Navigandi – Tudo de Direito e Justiça. Artigo de site, 2020. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/83413/direitos-humanos-x-encarceramento>. Acesso em: 12/11/2020.
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4- BBC Brasil. Entenda o genocídio em Ruanda de 1994: 800 mil mortes em cem dias. 2014. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140407_ruanda_genocidio_ms>. Acesso em: 13/11/2020.
5- CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos. 5ª edição, São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
6- CARNEIRO, Wellington P. A Declaração de Cartagena de 1984 e os Desafios da Proteção Internacional dos Refugiados, 20 anos depois. In: SILVA, César A. Direitos Humanos e Refugiados. Dourados: Ed. UFGD, p. 13-33, 2012.
7- Deutshe Welle (DW) Brasil. Tribunal da ONU determina que Myanmar proteja rohyngias de genocídio. 2020. Disponível em: < https://www.dw.com/pt-br/tribunal-da-onu-determina-que-myanmar-proteja-rohingyas-de-genoc%C3%ADdio/a-52121632>. Acesso em: 13/11/2020.
8- EXAME. Turquia define sexo entre homossexuais como antinatural. 2016. Disponível em: <https://exame.com/mundo/turquia-define-sexo-entre-homossexuais-como-antinatural/>. Acesso em: 12/11/2020.
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10- MOREIRA, Julia B; BORBA, Janine H. Direitos Humanos e Refugiados; Relações entre Regimes Internacionais Construídos no Sistema ONU. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, vol. 7, nº 14, p. 59-90, ago/dez. 2018.
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