Como vimos no texto sobre a história dos direitos das mulheres, as funções sociais (que representam os papéis ocupados na sociedade) designadas a homens e mulheres foram muito distintas durante um longo período de tempo.
Geralmente colocando as mulheres em um patamar de submissão em relação aos homens. As questões de gênero praticamente não eram debatidas e os direitos das mulheres foram ignorados durante séculos.
No século XX, após movimentos sociais de mulheres ao redor do mundo reivindicarem que a discussão sobre Direitos Humanos tratasse especificamente sobre questões de gênero, houve uma conscientização sobre as necessidades específicas que os grupos de mulheres possuem.
Assim, a Organização das Nações Unidas (ONU) passou a englobar as questões de gênero e os direitos das mulheres em sua agenda e é sobre isso que vamos falar neste texto.
O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar de forma simples e didática os Direitos Humanos – desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas.
E então, preparado(a) para entender sobre o Sistema ONU e as questões de gênero? Então vem com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
A construção dos direitos das mulheres no Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos
A exigência pelos direitos das mulheres começou a chamar a atenção da comunidade internacional após a Revolução Francesa (1789).
Isso ocorreu quando Olympe de Gouges, dramaturga e ativista política francesa, escreveu, em 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã como uma resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que foi promulgada como resultado da Revolução.
No documento, ela criticou a ausência das mulheres no documento oficial e o uso da palavra homem como referência à humanidade.
Contudo, o reconhecimento internacional dos direitos das mulheres ocorreu somente na segunda metade do século XX. A fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, e a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, impulsionaram debates sobre os direitos civis e políticos ao redor do mundo.
Foi a partir desse momento que o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos foi estabelecido, com a finalidade de proteger a dignidade da pessoa humana a todos os povos do mundo.
O direito internacional dos Direitos Humanos era universal e abordava os Direitos Humanos de maneira igual e abrangente, se referindo a todas as pessoas.
Vale ressaltar que grande parte das violações de Direitos Humanos tiveram como fundamento a concepção do “eu versus o outro”, em que a diferença era enfatizada e o “outro” era visto como um ser inferior, de menor significância e que, por isso, não merecia ter direitos.
Dessa forma, os Direitos Humanos nascem na tentativa de eliminar essa concepção de diferença entre indivíduos.
Entretanto, os instrumentos internacionais estabelecidos até então não incluíam questões específicas envolvendo gênero e, ao abordar de maneira geral e abstrata a proteção de todos os indivíduos, as peculiaridades e particularidades das pessoas acabavam sendo deixadas de lado.
Assim, passa a ser visto como necessário a especificação das necessidades dos grupos vulneráveis historicamente (que sofreram opressões e foram subjugados ao longo do tempo), como no caso das mulheres.
Com isso, movimentos sociais de mulheres no mundo passaram a reivindicar que os direitos das mulheres deveriam ser tratados de maneira particular, para que suprissem as necessidades próprias das mulheres.
A partir desse momento se inicia o processo de conscientização sobre a importância da criação e implementação de mecanismos e instrumentos para melhorar as condições de vida das mulheres ao redor do mundo.
A ONU foi uma das responsáveis pela promoção das questões de gênero na luta contra a violência, discriminação e abusos contra as mulheres em âmbito internacional, por meio da elaboração de convenções, conferências e tratados internacionais sobre os direitos das mulheres. E é sobre isso que veremos a seguir.
Você sabia que um dos objetivos de desenvolvimento da ONU trata da igualdade de gênero? O ODS 5 busca promover os direitos das mulheres e garantir a equidade em todas as áreas da vida. Quer entender mais sobre o tema? Confira Como o ODS 5 contribui para combater a desigualdade de gênero?
Os principais instrumentos internacionais dos direitos das mulheres
A certificação de que a igualdade de direitos deve reconhecer as diferenças existentes entre homens e mulheres exigiu que os Direitos Humanos fossem pensados também a partir de uma perspectiva de gênero.
A primeira ação da ONU feita nessa direção foi a elaboração da Convenção dos Direitos Políticos das Mulheres, adotada pela Assembleia Geral em 1952.
A Convenção tinha como objetivo a proteção dos direitos políticos das mulheres nos países signatários, como a questão da cidadania, o direito ao voto, o direito a ocupar cargos ou funções públicas, entre outros.
Na década de 60 passa a ser discutido o papel das mulheres no desenvolvimento social e econômico das sociedades, principalmente devido ao processo de descolonização de inúmeros Estados membros da ONU, que evidenciaram os problemas das relações econômicas entre nações desenvolvidas e nações em desenvolvimento.
A discussão culminou na Declaração Sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, em 1967. Entretanto, o documento possuía apenas um caráter recomendatório aos países signatários.
Com isso, em 1975 é realizada a primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres, na Cidade do México. O ano de 1975 foi proclamado pela ONU como o Ano Internacional da Mulher e a Conferência serviu para a mobilização de mulheres de várias partes do mundo, aproximando a relação entre a ONU e a sociedade civil.
O principal resultado do encontro foi a elaboração do Plano de Ação para a Implementação dos Objetivos do Ano Internacional da Mulher.
O plano consistiu em um guia para as ações que deveriam ser implementadas na década seguinte, chamada de Decênio das Mulheres.
Os objetivos maiores eram promover a igualdade entre homens e mulheres no acesso a diversos aspectos, como educação, emprego e participação política, de maneira a integrar as mulheres nos objetivos de desenvolvimento e paz mundial.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
Além disso, a Conferência teve grande influência na elaboração do primeiro tratado internacional de caráter obrigatório sobre os direitos das mulheres no âmbito da ONU, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), em 1979.
O documento representa um marco nos Direitos Humanos das mulheres, por ser o único a abordar de forma ampla a questão de gênero tanto em relação aos direitos civis e políticos, como aos direitos econômicos, sociais e culturais.
A Convenção tratou sobre várias disposições referentes à igualdade de gênero e reconheceu o direito à integridade física e às decisões sobre o próprio corpo da mulher.
Assim como o direito a diferentes orientações sexuais, os direitos reprodutivos, o direito à igualdade nas decisões sobre reprodução e na responsabilidade compartilhada em relação aos filhos.
No que se refere aos Direitos Humanos no âmbito da ONU, infelizmente, essa Convenção recebeu ressalvas de diversos países, principalmente no que diz respeito à igualdade entre homens e mulheres na família.
Países como Bangladesh e Egito acusaram o Comitê Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (órgão encarregado de supervisionar as disposições contidas na Convenção) de praticar intolerância religiosa e imperialismo cultural por tratar sobre a igualdade entre os sexos.
Outros marcos em relação às questões de gênero no Sistema ONU foram:
- a II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, que reconheceu, de forma pioneira, que a violência contra as mulheres constitui uma violação de Direitos Humanos.
- a III Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, que reconheceu o aborto inseguro como um grave problema de saúde pública.
- e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, sediada em Pequim, em 1995, que resultou na Declaração e na Plataforma de Ação de Pequim, consistindo em um guia de orientação aos governos na formulação de políticas e implementação de programas para promover a igualdade e evitar a discriminação.
Os direitos das mulheres no Sistema Interamericano
Conforme foi visto no texto sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e demais sistema regionais, o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos não envolve somente o âmbito global, mas também o âmbito regional.
Os sistemas regionais consistem na união de países de uma mesma região ou continente e foram construídos por servirem como um sistema mais próximo da realidade social, política, econômica e cultural dos países membros.
Nesse sentido, é válido olharmos para como os direitos das mulheres são garantidos no Sistema Interamericano, por meio da Organização dos Estados Americanos (OEA), do qual o Brasil faz parte. Temos um texto específico sobre os direitos das mulheres no Brasil, e você pode conferir para saber mais.
A OEA foi fundada na nona Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em 1948, com a publicação da Carta da Organização dos Estados Americanos. A organização nasceu com o objetivo de promover a paz, a justiça e a solidariedade no continente americano.
Entre os seus documentos de proteção dos Direitos Humanos, destaca-se o Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, que estabelece as funções da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
Mas, o primeiro e único tratado interamericano referente à questões de gênero foi promulgado somente em 1994, denominado de Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ou Convenção de Belém do Pará.
Além de tratar sobre os direitos fundamentais das mulheres e aspectos sobre igualdade e discriminação, é o primeiro tratado internacional que reconhece a violência contra as mulheres como um fenômeno generalizado, que atinge um grande número de mulheres na América e que não se limita a questões gênero, pois pode envolver raça, classe, religião ou idade.
Em seu artigo 1º, a Convenção expressa que:
“Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.
O documento também enfatiza a proteção internacional dos direitos das mulheres ao possibilitar, em seu artigo 12, que qualquer pessoa ou grupo de pessoas possa apresentar denúncias de violação desses direitos para a CIDH.
Nesse sentido cria-se um ambiente de constrangimento político e moral aos Estados membros da OEA em casos de violação dos Direitos Humanos das mulheres.
Um exemplo prático foi o caso Maria da Penha, vítima de violência doméstica, analisado pela CIDH, que concluiu que o Estado violou os direitos e o cumprimento de seus deveres segundo o artigo 7 da Convenção de Belém do Pará, recomendando a adoção de diversas medidas para combater o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil.
Temos um texto aqui no Equidade tratando sobre o caso, que resultou na elaboração da Lei Maria da Penha, vale a pena conferir.
Conclusão
Atualmente, por contribuição do sistema ONU e os seus instrumentos internacionais, as questões de gênero entraram na pauta do direito internacional e os direitos das mulheres ganharam um reconhecimento mundial.
A conquista é muito recente, mas merece ser exaltada, pois é um grande passo para que a igualdade entre homens e mulheres seja alcançada um dia.
Em muitas sociedades as mulheres ainda são menosprezadas e tratadas como inferiores, sofrendo violências e discriminações. A luta por condições adequadas ainda se faz necessária e o cumprimento dos tratados e convenções internacionais sobre os Direitos Humanos das mulheres é essencial nessa batalha.
Os Estados membros da ONU e signatários dos documentos devem respeitar e seguir as obrigações previstas nos acordos de forma a contribuir para sociedades com menos desigualdade de gênero.
Assim, as mulheres podem cumprir o seu papel no desenvolvimento social, político e econômico do mundo, sem preconceitos e barreiras que impeçam as suas atuações.
Como cidadãos, nos resta cobrar das instituições e do Poder Público que os direitos das mulheres sejam respeitados. Afinal, esses direitos correspondem às necessidades da população feminina mundial.
Mas, você sabe o que efetivamente são os direitos das mulheres? Para entender melhor, você pode conferir o nosso texto sobre o que são os direitos das mulheres, aqui no Equidade.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos das Mulheres”, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Ana Paula Chudzinski Tavassi
Eduardo de Rê
Mariana Contreras Barroso
Marina Dutra Marques
Fontes:
2- CORREA, Bibiana. Direitos Humanos das Mulheres: Uma Reflexão Acerca da Efetividade do Sistema Internacional de Proteção à Luz do Fenômeno do Multiculturalismo. Trabalho de Conclusão de Curso. Relações Internacionais. Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), Florianópolis, 59 f, 2013.
3- Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, 1994.
4- CHARLESWORTH, Hilary. What are “Women’s International Human Rights”?. In: COOK, Rebecca J. Human Rights of Women: National and International Perspectives. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. 1994, p. 58-85.
5- GUARNIERI, Tathiana. Os Direitos das Mulheres no Contexto Internacional – da Criação da ONU (1945) à Conferência de Beijing (1995). Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery. Curso de Direito, nº 8, jan/jun. 2010. Disponível em: < http://re.granbery.edu.br/artigos/MzUx.pdf>. Acesso em: 16 de dezembro de 2020.
6- KAPLAN, Tema. Women’s Right as Human Rights: Grassroots Women Redefine Citizenship in a Globlal Context. In: GRIMSHAW, Patricia et al. Women’s Rights and Human Rights: Internacional Historical Perspectives. Nova York: Palgrave, p. 290-309, 2001.
7- PIOVESAN, Flávia. A Proteção internacional dos direitos humanos das mulheres. In: CADERNOS JURÍDICOS, Violência Doméstica. São Paulo: Escola de Magistratura de São Paulo, ano 15, nº 38, p. 21-34, jan/abr. 2014.
8 – TOMANZONI, Larissa. Afirmação histórica dos direitos humanos das mulheres no âmbito das Nações Unidas. Anais do XI EVINCI – Centro Autônomo do Brasil. UniBrasil, 2016. Disponível em: < https://portaldeperiodicos.unibrasil.com.br/index.php/anaisevinci/article/view/1102/1077> Acesso em: 16 de dezembro de 2020.