Vivemos em uma sociedade complexa, composta por diversos grupos que possuem características e identidades diferentes, como o grupo LGBT+, os grupos religioso, os indígenas, os negros, os ciganos, os brancos, entre outros.
Com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, todos esses grupos, incluindo os grupos étnico-raciais (grupos que possuem a mesma descendência e a mesma identificação cultural), passaram a ter seus direitos e dignidades reafirmados.
Contudo, muitos desses grupos viveram e vivem em uma situação de vulnerabilidade. Assim, surge a necessidade da elaboração de direitos específicos para lidar com as necessidades de cada grupo, como os direitos étnico-raciais.
No Brasil, por exemplo, segundo o IBGE, 54,9% da população total é preta ou parda, ou seja, são a maioria no país. Mas mesmo assim, representam 75% da população mais pobre do país em situação de pobreza.
Isso significa que apesar de ser maioria, os negros estão entre os grupos vulneráveis que mais sofrem as consequências da desigualdade social e econômica do país. É nesse sentido que direitos específicos que protegem esses grupos existem.
Mas você sabe o que são esses direitos e o que eles representam? É isso que vamos entender melhor neste texto do projeto Equidade, buscando compreender a sua importância para a sociedade e para a garantia de direitos fundamentais aos grupos étnico-raciais.
O projeto Equidade é uma parceria entre a Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre o que são direitos étnico-raciais? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
A diferença entre raça e etnia
Para entendermos os direitos étnico-raciais, antes de mais nada, precisamos ter noção de alguns conceitos básicos, como o significado de raça e de etnia. Existe certa confusão entre os termos, que muitas vezes são tidos como a mesma coisa. Mas apesar de possuírem semelhanças, ambos referem-se a diferentes características entre grupos sociais.
O que é raça?
O conceito de raça está principalmente ligado a questões de aparência física e características ligadas ao corpo (morfológicas). Dessa forma, quando falamos de raça, estamos falando de características como cor da pele, forma do corpo, cor do cabelo, forma facial, entre outros.
Conforme Nildo Viana, sociólogo brasileiro, o conceito de raça pode ser definido como uma população que possui uma série de características físicas e hereditárias em comum. Entretanto, é importante ressaltar que para os estudos genéticos e para a comunidade científica, a espécie humana possui apenas uma raça.
Pois, biologicamente, o DNA (material genético) entre diferentes pessoas com diferentes características físicas possui uma variação considerada insignificante.
Nesse sentido, a compreensão do termo raça está ligada a discussões sociológicas e políticas sobre o processo histórico e social dos seres humanos, como em questões que envolvem a desigualdade social, a discriminação e o racismo, e não a partir da categorização científica de diferentes raças humanas.
E o que é etnia?
Quando falamos em etnia, falamos não só de questões morfológicas, mas também de características sociais e culturais de uma população. A etnia está ligada aos costumes, práticas sociais, língua, tradições, religião, entre outros.
Nesse sentido, segundo o sociólogo Nildo Viana, a etnia pode ser definida como um grupo de indivíduos de um mesmo território que possuem uma homogeneidade cultural (mesma língua, religião, crenças, valores etc.) e uma identidade coletiva de pertencimento a esta etnia, como os povos indígenas, os judeus, os curdos, os rohingyas, entre outros.
Como surgiram os direitos étnico-raciais?
Agora que entendemos a diferença entre os conceitos de raça e etnia, fica mais fácil de entender os direitos étnico-raciais. Uma boa pergunta para começar é: afinal, como eles surgiram?
A promoção desses direitos pelo mundo começou após o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos na Organização das Nações Unidas (ONU). Foi a partir desse momento que necessidades e particularidades de grupos vulneráveis historicamente passaram a ser levadas em consideração.
Isso ocorreu em vista do reconhecimento de que a discriminação étnica e racial configura um problema histórico da humanidade. Durante muito tempo diversos povos foram marginalizados e até escravizados por conta do seu grupo étnico ou características físicas, como a cor da pele.
Falamos mais sobre isso no nosso texto sobre a história dos direitos étnico-raciais e você pode conferir para entender melhor esse contexto histórico.
Devido a essa relação de dominação, por séculos os povos africanos (negros em sua maioria) e também os povos indígenas de regiões como a América, não tiveram os seus direitos fundamentais reconhecidos.
Por esse motivo, em 1963, a ONU proclamou a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que reconheceu mundialmente os direitos étnico-raciais.
Nela, é afirmada a necessidade de eliminar todas as manifestações de discriminação étnica-racial, assegurando que a dignidade de todos os povos e grupos etnico-raciais do mundo sejam respeitadas.
Mas afinal, o que são os direitos étnicos-raciais?
O reconhecimento por parte da ONU no século XX que grupos étnico-raciais sofriam com uma discriminação histórica foi resultado do debate sobre questões raciais conduzido por grupos vulnerabilizados nos mais variados países, e aumentou o alcance de discussões sobre temas como o racismo, a desigualdade racial, a inclusão racial, entre outros. Isso fez com que a comunidade internacional começasse a problematizar as relações étnicas-raciais existentes em alguns países.
Dois grandes exemplos desse período são o apartheid, na África do Sul, e o movimento por direitos civis dos negros nos Estados Unidos, liderado por Martin Luther King Jr.
O que foi o apartheid?
O apartheid representava um sistema legal de segregação, iniciado em 1948, em que pessoas não-brancas eram obrigadas a viver em áreas separadas e não possuíam os mesmos direitos das pessoas brancas, não podendo, por exemplo, frequentar os mesmos espaços públicos.
Na década de 60, muitas lutas por parte de movimentos sociais foram feitas no país, resultando na prisão de um de seus líderes, Nelson Mandela. Mesmo assim, o sistema só foi destituído legalmente em 1994.
O que foi o movimento pelos direitos civis nos EUA?
O movimento representava a luta dos negros por direitos civis, como o direito à educação, saúde e transporte. Eles também viviam em um regime de segregação, no qual não podiam ocupar os mesmos locais que pessoas brancas, como escolas, restaurantes, transporte, hospitais, entre outros.
Diante disso, entre várias iniciativas e formas de organização política, em 1963 ocorreu a Marcha Sobre Washington, que reuniu cerca de 250 mil pessoas, lideradas por Martin Luther King Jr.
O movimento foi um dos responsáveis para que em 1964 fosse aprovada a Lei dos Direitos Civis, encerrando legalmente a segregação racial nos EUA.
Esses dois exemplos ilustram o que os direitos étnico-raciais significam. São um conjunto de normas e princípios que visam proteger grupos étnico-raciais que sofrem com a exclusão, a discriminação e a desigualdade.
Eles buscam garantir que todos os direitos humanos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à justiça e ao trabalho sejam respeitados também a esses grupos.
A importância dos direitos étnico-raciais
Agora que entendemos o que esses direitos significam, podemos analisar a importância das suas garantias para a sociedade.
Pegando o Brasil como exemplo, a chance de um homem negro ser assassinado é 74% maior em relação a não negros, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Além disso, em 2019, 66,7% das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional do país eram negras.
Isso significa que mulheres e homens negros apresentam os maiores percentuais de indicadores considerados negativos no país, como consequência das desvantagens socioeconômicas históricas às quais esse grupo esteve exposto.
Essa desigualdade pode ser observada em questões de violência racial, no acesso ao mercado de trabalho, à renda, à educação, à saúde, entre outros. Temos textos tratando sobre a violência racial no Brasil e a discriminação racial no mercado de trabalho, vale a pena conferir.
Além disso, no país outros grupos que vivem em situação de vulnerabilidade são os indígenas e os quilombolas. De acordo com o Conselho Indígenista Missionário, as invasões de terras indígenas e a exploração ilegal de recursos naturais aumentou de 109 casos em 2018 para 256 casos em 2019.
E, segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), houve um aumento de 350% no número de quilombolas assassinados entre 2016 e 2017. Você pode entender melhor sobre esses povos nos nossos textos sobre os direitos indígenas e os direitos quilombolas no Brasil.
De maneira geral, os direitos étnico-raciais, como as ações afirmativas e o Estatuto do Índio, visam criar medidas de equiparação (dar o mesmo valor e condição à todos) e justiça entre diferentes grupos sociais.
No infográfico abaixo podemos ter uma melhor noção da importância e da situação atual dos direitos étnico-raciais.
Conclusão
Imagine uma corrida em que para alguns indivíduos são colocados obstáculos na pista, enquanto para outros não. É certo que os indivíduos que podem correr livremente na pista terão grandes vantagens para vencer a corrida, não é mesmo?
Essa é a situação de acesso a direitos e oportunidades entre os grupos étnico-raciais atualmente. Em vista das discriminações sofridas e a exclusão social que vivenciam, esses grupos possuem grandes dificuldades para viverem uma vida digna na sociedade.
É por isso que os direitos étnico-raciais existem. Para tentar promover a justiça social para esses grupos vulneráveis, que acabam sendo as principais vítimas de mazelas como a violência e a desigualdade.
No caso do Brasil, a defesa dos direitos fundamentais das pessoas pretas, pardas e indígenas é também a defesa da democracia. Como foi dito no início do texto, a população negra representa a maioria da população brasileira. Entretanto, é essa mesma população que mais sofre com a pobreza no país.
Dessa forma, nós enquanto sociedade devemos lutar para que os direitos de todos sejam respeitados. Especialmente daqueles que por muito tempo não tiveram os seus direitos reconhecidos.
Pois, apesar da previsão de defesa e garantia de direitos humanos, alguns grupos permanecem em situação desigual, sendo necessária a previsão de direitos e políticas específicas, como no caso dos direitos étnico-raciais, os quais foram e continuam sendo reivindicados ao longo do processo de lutas e esforços coletivos.
Quer entender melhor sobre esse processo? Então confere o próximo texto do projeto Equidade, em que vamos falar sobre a história dos direitos étnico-raciais.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos Étnico-raciais”, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Eduardo de Rê
Isabela Campos Vidigal Takahashi de Siqueira
Julia Reis Romualdo
João Pedro de Faria Valentim
Leonardo Gabriel Reyes Alves da Paes
Fontes:
2- ESTEVES, Gabriel. As relações étnico-raciais no Brasil: cultura e preconceito. Revista Espaço de Diálogo e Desconexão, vol. 10, n. 2, p. 111-117, 2018. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/redd/article/view/11898>. Acesso em: 22 de fevereiro de 2021.
3- GOES, Emanuelle; SOUSA, Diogo. Raça, Gênero, Etnia e Direitos Humanos. Salvador: UFBA, Faculdade de Direito, Superintendência de Educação à Distância, 59 p. 2020. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/32039/1/eBook-Raca%2c%20Genero%2c%20Etnia%20e%20Direitos%20Humanos.pdf>. Acesso em: 22 de fevereiro de 2021.
4- HISTORY EDITORS. Apartheid in South Africa. History, 2010. Disponível em: <https://www.history.com/topics/africa/apartheid>. Acesso em 22 de fevereiro de 2021.
5- OLIVEIRA, Luís. Racismo, direitos e cidadania. Estudos Avançados 18 (50), p. 81-93, 2004.
6- PETRONI, Camila. Movimento dos direitos civis nos EUA. Infoescola. Disponível em: <https://www.infoescola.com/historia/movimento-dos-direitos-civis-nos-eua/>. Acesso em: 23 de fevereiro de 2021.
7- VIANA, Nildo. Raça e Etnia. In: PEREIRA, Cleito; VIANA, Nildo. Capitalismo e Questão Racial. Rio de Janeiro: Corifeu. 1. ed. p. 8-22, 2009.
8- VIEIRA, Hector. Direitos Humanos, Racismo e Cotas Raciais: A construção de uma democracia antirracista com base em reconhecimento e consideração. Revista Perseu, nº 17, ano 12, p. 62- 89, 2019.