A homosexualidade já foi considerada um comportamento desviante dos padrões sociais tidos como normais na sociedade, sendo até mesmo criminalizada. Contudo, há indícios de que relações homoafetivas são uma realidade desde os povos antigos na história da humanidade. Esses indícios históricos indicam que, apesar de ser condenada e discriminada, a homosexualidade é uma característica ou qualidade inata em nossa espécie.
Mesmo assim, o preconceito e o estigma construído em relação à orientação sexual e à identidade de gênero das pessoas fizeram com que os direitos LGBT+ ganhassem relevância no cenário internacional apenas recentemente. Por isso, neste texto do projeto Equidade vamos falar sobre a história dos direitos LGBT+, buscando entender o processo de conquista desses direitos para a proteção da comunidade LGBTQIAP+.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, o Instituto Mattos Filho e a Civicus, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado (a) para entender sobre a história dos direitos LGBT+? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
A homossexualidade em tempos passados
Para entendermos sobre a história dos direitos LGBT+, é importante primeiro compreender como as relações homoafetivas eram vistas no passado. Tomando as sociedades ocidentais como exemplo, os historiadores se concentram em duas principais abordagens teóricas em relação à homossexualidade: a essencialista e a social construtivista.
A abordagem essencialista expressa que a homossexualidade é ahistórica e acultural, ou seja, faz parte da humanidade desde sempre. A abordagem social construtivista, por sua vez, considera que a forma como uma sociedade enxerga a homossexualidade baseia-se no seu contexto cultural e social em um período específico de tempo. Ambas as teorias se baseiam nos indícios históricos de que a homossexualidade está presente na humanidade desde as civilizações antigas, como na Grécia e em Roma, o que veremos a seguir.
A homosexualidade na Grécia e na Roma antiga
As sociedades gregas e romana, consideradas o berço da sociedade ocidental, tinham as relações homoafetivas permitidas e consideradas comuns entre os seus cidadãos. Na cultura grega, o sexo entre pessoas do gênero masculino podia até mesmo ser visto como um rito de passagem para jovens que estavam em seu treinamento militar. Nesse sentido, atos homossexuais não eram perseguidos nem condenados. Na verdade, a ideia de beleza construída na Grécia antiga tinha a figura masculina como a sua referência. Isso significa que, apesar da homossexualidade feminina também ser permitida, o papel social da mulher era concentrado no casamento heterossexual e nas atividades familiares e domésticas. Nessa época, o termo “tribadismo” era utilizado para se referir à “lesbianidade”.
Além disso, a homossexualidade era vista socialmente como benéfica na construção de fortes guerreiros e exércitos. Pois, a relação afetiva entre dois guerreiros faria com que um se preocupasse e protegesse o outro, promovendo valores como a coragem. Segundo o historiador Vern L. Bullough, acreditava-se que o mais formidável exército do mundo seria formado por casais homoafetivos masculinos, que inspirariam um ao outro a atos de heroísmo e sacrifício.
Ainda de acordo com Bullough, talvez o exército mais próximo desse ideal foi o Batalhão Sagrado de Tebas, composto por 150 casais homossexuais, que foi responsável pela supremacia militar da cidade de Tebas por um período de tempo no século IV a.C.
Durante um tempo, a civilização romana também convivia com a homossexualidade sem discriminação ou perseguição contra quem assim se identificava. Contudo, isso mudou principalmente a partir do século III d.C, em que foi estabelecida a pena de morte para quem cometesse atos homossexuais (vamos aprofundar o motivo dessa mudança daqui a pouco). Esse momento representa um grande impacto na história dos direitos LGBT+, visto que o direito romano possui uma forte influência na construção do direito ocidental.
As origens da discriminação por orientação sexual
Em grande parte, essa mudança ocorreu por influência da Igreja Católica, que no Antigo Testamento de sua Bíblia Sagrada, condenava práticas homoafetivas, expressando que homens que se deitavam com outros homens cometiam uma abominação (nesse caso a lesbianidade não é citada explicitamente). Muitos estudiosos e historiadores enxergam a influência católica como determinante no estabelecimento da discriminação por orientação sexual. Devido à grande relevância e poder que a Igreja possuía nesse período e no posterior, que viria a ser conhecido como a Idade Média (476 até 1453).
Durante esse período, por exemplo, o movimento da Inquisição considerava a sodomia (prática de sexo anal entre dois homens ou entre um homem e uma mulher) uma das formas de heresia (comportamentos que não seguiam os dogmas da Igreja). Nesse sentido, adultos que cometiam tais atos eram condenados a pagar multas, sofrer torturas, ou até mesmo serem mortos em fogueira.
Como consequência, a homossexualidade foi cada vez mais perseguida e criminalizada na Europa. Como no Reino Unido, onde o parlamento britânico criminalizou a homossexualidade em 1533, com penas que incluíam a pena de morte. Para se ter uma ideia, manter relações homoafetivas na região foi considerado crime até 1967, quando foi promulgada a chamada Lei Alan Turing.
Ela refere-se ao matemático Alan Turing, considerado por muitos como o pai da computação, que construiu um aparelho capaz de decifrar mensagens nazistas e, assim, contribuiu para a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial. Entretanto, por manter relações homossexuais, Turing foi castrado quimicamente e, posteriormente, suicidou. Recentemente essa história virou filme, chamado de “O Jogo da Imitação”.
A evolução dos direitos LGBT+ na história
O caso do Reino Unido indica que os direitos LGBT+ começaram a ser reconhecidos há pouco tempo nas sociedades ocidentais da Europa e das Américas. Mais precisamente apenas na segunda metade do século XX, após a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que apesar de expressar que todos os seres humanos, sem exceção, devem ter os seus direitos fundamentais e dignidades respeitadas, não menciona especificamente a comunidade LGBTQIAP+.
Sendo assim, a LGBTfobia e a discriminação por motivos de orientação sexual e identidade de gênero continuaram sendo uma realidade para esse grupo. Tornando cada vez mais evidente a necessidade de leis e direitos específicos que garantissem os princípios da igualdade e da liberdade para esses indivíduos. As exigências e as reivindicações por esses direitos ganharam força especialmente após a Revolta de Stonewall.
A Revolta de Stonewall
O episódio ocorreu em 1969 no estabelecimento Stonewall Inn, na cidade de Nova York. O bar Stonewall Inn era conhecido socialmente por ser um local de encontro de pessoas e grupos excluídos e marginalizados socialmente, como a comunidade LGBTQIAP+. Naquele período, a relação entre pessoas do mesmo sexo era considerada crime no Estado de Nova York. Mas a polícia local fazia vista grossa ao estabelecimento, porque seus donos possuíam relação com a máfia nova yorkina e pagavam propina para o funcionamento do local.
Contudo, na madrugada do dia 28 de junho, a polícia resolveu fazer uma fiscalização no Stonewall Inn, que não tinha licença para vender bebidas alcóolicas. Era a terceira batida que policiais realizavam em bares daquela região. Dessa vez, os policiais prenderam funcionários sob a justificativa da proibição de venda de bebidas alcóolicas e começaram a agredir fisicamente frequentadores transgêneros que estavam no bar. Ao todo, treze pessoas foram detidas na violenta ação policial.
Contudo, ao se revoltar com a situação, a multidão que presenciava a cena resolveu reagir e começou a revidar as agressões, jogando pedras e garrafas contra os policiais, desencadeando uma rebelião. Como resultado, o bar foi incendiado e a multidão foi dispersa com os jatos d’água utilizados por bombeiros que foram chamados para controlar as chamas.
O episódio ficou conhecido como a Revolta de Stonewall e gerou uma onda de protestos e manifestações na cidade, que reivindicavam pelo reconhecimento dos direitos LGBT+. Nessas manifestações, expressões como “Gay Power” e “Gay Pride” ecoaram, simbolizando a união e a força da comunidade LGBTQIAP+. A data de 28 de junho é hoje celebrada mundialmente como o “Dia Internacional do Orgulho LGBT”.
As consequências de Stonewall e a conquista por direitos
As reivindicações intensificadas pelo episódio surtiram efeito nos Estados Unidos. Três anos depois, em 1972, muitos Estados como Michigan, Delaware e o Havaí descriminalizaram a relação afetiva entre pessoas do mesmo sexo. No Estado de Nova York, contudo, isso aconteceu somente em 1980.
Mas a importância de Stonewall na história dos direitos LGBT+ não se concentra apenas nos EUA, mas também em nível internacional. Nesses mais de 50 anos da revolta, os direitos LGBT+ apresentaram as suas maiores conquistas e avanços no reconhecimento das garantias fundamentais da população LGBTQIAP+. Como é possível observar no infográfico abaixo:
No Brasil, por exemplo, o movimento social Grupo Gay da Bahia (GGB) liderou uma campanha na década de 1980 exigindo a retirada da homossexualidade como doença na classificação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). A campanha surtiu efeito e em 1985 o Conselho Federal de Medicina aceitou a retirada. Mais tarde, em 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) também retirou a homossexualidade do seu código de classificação de doenças, depois de mais de 50 anos.
Além disso, em 2008, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou a resolução AG/RES. 2435, a primeira resolução a vincular a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero com os direitos humanos. Já em 2011, a Organização das Nações Unidas (ONU) seguiu o mesmo sentido, aprovando a Resolução 17/19 e reconhecendo em nível global que a violação dos direitos LGBT+ são violações de direitos humanos.
Dois anos mais tarde, em 2013, a OEA adotou a Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, que reconhece que a discriminação, direta ou indireta, pode ter base na orientação sexual e identidade ou expressão de gênero. Contudo, o tratado ainda não entrou em vigor, pois nenhum país membro da OEA, incluindo o Brasil, ratificou o documento. Isso significa que, apesar das resoluções, ainda não há um tratado internacional específico que trate sobre os direitos LGBT+.
Conclusão
Apesar de ter sido uma prática comum em civilizações antigas, atos sexuais e relacionamentos afetivos entre pessoas do mesmo sexo passaram a ser criminalizados em determinado ponto da história. Isso resultou em séculos de discriminação e marginalização social dos membros da comunidade LGBTQIAP+. Como consequência, esses indivíduos foram perseguidos e, muitas vezes, mortos apenas por manifestar os seus sentimentos, tendo que viver durante muito tempo sob a clandestinidade, reprimindo as suas vontades pessoais.
O reconhecimento dos direitos LGBT+ ao longo da história foi gradual e ocorreu, de maneira mais intensa, somente recentemente. Indicando que os princípios da igualdade, da liberdade e da dignidade humana, que abrangem os direitos humanos, devem ser garantidos e aplicados para todo grupo LGBTQIAP+, que ainda hoje se encontra em uma situação de vulnerabilidade.
Contudo, ainda não há um documento internacional válido no direito internacional característico sobre os direitos LGBT+, fazendo com que os países possam adotar as suas próprias medidas em relação ao assunto. É sobre isso que iremos falar em nosso próximo texto, que irá abordar sobre a diversidade sexual no mundo e os direitos LGBT+. Continue acompanhando o projeto para saber mais.
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos LGBT+“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Bárbara Correia Florêncio Silva
Bianca dos Santos Waks;
Caio Rigon Ortega;
Carina Janson Odfjell;
Edgard Prado Pires;
Eduardo de Rê
Francisca Guerreiro Andrade;
Lucas Henrique De Lucia Gaspar;
Yvilla Diniz Gonzalez;
Fontes:
2- BBC News. ‘Alan Turing Law’: The Thousands of gay men to be pardoned. BBC News. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/uk-37711518>. Acesso em: 1 de junho de 2021.
3- BBC Brasil. 50 anos de Stonewall: saiba o que foi a revolta que deu origem ao dia do orgulho LGBT. BBC News Brasil, 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-48432563>. Acesso em: 1 de junho de 2021.
4- BULLOUGH, Vern. Homosexuality: A History (From ancient Greece to Gay Liberation). Routledge Library Editions: History of Sexuality, New York, vol. 2, 2019.
5- GROSS, Aeyal. Post/Colonial Queer Globalisation and International Human Rights: Images of LGBT Rights. Jindal Global Law Review, vol. 4, n. 2, p. 98-130, 2013.
6- SULLIVAN, Michael. Homophobia, History, and Homosexuality. Journal of Human Behavior in the Social Environment. vol. 8, p. 1-13, 2004.
7- TERTO, Angelo; SOUZA, Pedro. De Stonewall à Assembleia Geral da ONU: Reconhecendo os Direitos LGBT. Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, vol. 5, n. 7, p. 120-148, 2015.