Ao longo da história da humanidade, nem sempre as crianças e adolescentes receberam atenção especial e interesse por parte da sociedade. Na verdade, houve períodos em que a consciência coletiva via o período da infância apenas como um momento de transição para a idade adulta, sem reconhecer as suas características particulares.
Dessa forma, foi somente a partir do século XX que a sociedade passou a reconhecer a criança e o adolescente como um ator social, que possui participação ativa na construção do ambiente em que vive. Assim, surgiu a necessidade de proteção desses indivíduos e, consequentemente, houve a conquista dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Nesse sentido, para entender melhor esse processo de conquista de direitos, neste texto do Equidade vamos falar sobre como surgiram os direitos das crianças e dos adolescentes, compreendendo as suas origens e evoluções ao longo do tempo.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, a Civicus e o Instituto Mattos Filho, voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender como surgiram os direitos das crianças e dos adolescentes? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
O ser criança em tempos passados
Para falarmos sobre o surgimento dos direitos das crianças e dos adolescentes, é importante termos uma noção sobre como as crianças e adolescentes eram tratados em períodos passados e quais eram suas condições de vida.
Sendo assim, olhando para certas sociedades na Idade Antiga (3.500 a.C – 476 d.C), é possível perceber que as crianças eram simplesmente ignoradas no sentido da proteção especial e ficavam expostas a explorações e condições precárias.
Na Roma Antiga, por exemplo, o trabalho infantil não era algo incomum, sendo que muitas crianças das classes mais baixas eram escravizadas. Isso porque a sociedade da época enxergava as crianças como “adultos em miniatura”, não oferecendo tratamento diferenciado. Como consequência, o abandono e a morte desses indivíduos eram situações recorrentes.
Além disso, em sociedades como a grega antiga, especialmente em Esparta, os meninos eram militarizados desde cedo. Sendo assim, a partir dos sete anos de idade, recebiam treinamentos militares para se tornar futuros guerreiros e lutar em guerras. As meninas, por outro lado, recebiam uma educação voltada aos cuidados do lar e da família.
De acordo com o historiador Philippe Ariès (1986), nesse período e durante a Idade Média (476 – 1453), a família era a referência em relação à educação, cultura e à formação moral e psicológica das crianças, em que o pai era considerado como a autoridade máxima.
Nesse sentido, ainda segundo o autor, foi somente a partir do século XV que a escola passou a ser o instrumento da iniciação social e educacional das crianças. Com isso, durante esse período e no decorrer da Idade Moderna (1453 – 1789), muito por influência do Cristianismo, novas condutas foram adotadas pela sociedade em relação às crianças, como veremos a seguir.
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A infância na modernidade e na contemporaneidade
É a partir da modernidade que ocorrem mudanças na concepção social sobre as crianças. Segundo o historiador Colin Heywood (2004), com o aparecimento de novos pensamentos e atos pela Igreja Católica, há a difusão da ideia de que a criança era um “mediador” entre o céu e a terra. Assim, a religião passa a acusar de bruxaria quem matasse crianças.
Além disso, Ariès (1986) aponta que nesse período nasce o sentimento de que as crianças e adolescentes formam um grupo separado dos adultos. Ou seja, a infância passa a ser vista como um momento da vida com características próprias.
Contudo, a precariedade de vida infantil e até mesmo a mortalidade ainda eram elevadas. Durante a Revolução Industrial, por exemplo, que se iniciou no século XVIII, as crianças e os adolescentes trabalhavam em condições degradantes e exaustivas, com remunerações ínfimas.
Sendo assim, foi somente na Idade Contemporânea (1789 – presente) que a criança começou a ser integrada na coletividade como um indivíduo pertencente à sociedade. Com isso, a sociedade passa a enxergar a criança como um ser que tem as suas próprias necessidades e o seu próprio modo de agir e pensar.
Como resultado, no século XIX apareceram as primeiras movimentações em torno de uma justiça voltada para crianças e adolescentes. Isso ocorreu nos Estados Unidos, que instituiu o julgamento de crianças em tribunais especiais.
A cidade de Chicago foi precursora nesse quesito, instalando o primeiro Tribunal para Crianças (Children’s Court) no ano de 1899. As iniciativas foram seguidas por outros estados estadunidenses e também por países da Europa. Contudo, a conquista dos direitos das crianças só viria a acontecer no século XX.
A conquista dos direitos das crianças e dos adolescentes
O início do século XX ainda era marcado pela falta de proteções especiais para crianças e adolescentes. Não era raro encontrá-los trabalhando em cenários insalubres e sem segurança, especialmente nos países industrializados.
Dessa forma, começa a emergir na sociedade o reconhecimento de que a situação na qual esses indivíduos se encontravam eram injustas e que deveriam receber uma maior proteção, tanto jurídica quanto social.
Como consequência desse sentimento, a Organização Internacional do Trabalho abordou sobre a proteção das crianças no preâmbulo da sua Constituição de 1919, assim como determinou em uma de suas primeira convenções a delimitação de idade para o trabalho infantil.
Mas foi na década seguinte que os direitos das crianças e dos adolescentes foram de fato conquistados no mundo. Isso ocorreu após a fundação, também em 1919, da organização não governamental Save the Children, que tinha como finalidade auxiliar os órfãos da Primeira Guerra Mundial.
A organização foi fundada por iniciativa privada na Inglaterra e foi responsável pela elaboração da Declaração dos Direitos das Crianças de Genebra, adotada pela Liga das Nações no ano de 1924, representando o surgimento dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Contudo, com a dissolução da Liga das Nações e o acontecimento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em que houve a violação em massa de direitos humanos, a comunidade internacional fundou a Organização das Nações Unidas (ONU) e publicou em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O documento prevê que todos os povos, sem exceção, devem ter as suas dignidades e direitos fundamentais garantidos. Além disso, cita em seu artigo 25 as crianças de maneira explícita, determinando o direito à assistência especial às mães e às crianças e a proteção social de todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio.
Mesmo assim, era visto como necessário a elaboração de um documento específico que tratasse sobre os direitos das crianças e adolescentes. Assim, novos tratados internacionais que tratam do tema foram elaborados, como veremos a seguir.
A evolução dos direitos das crianças e dos adolescentes
O primeiro tratado foi a Declaração dos Direitos das Crianças, aprovada pela ONU em 1959, que representou um grande avanço nas garantias internacionais dos direitos das crianças e dos adolescentes, reconhecendo esse grupo como sujeito de direitos.
O documento estabeleceu a proteção especial para o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social das crianças e adolescentes. Assim como determinou a educação gratuita e obrigatória, a proteção contra negligência, crueldade, exploração e discriminação, dentre outras garantias.
Mas apesar do avanço, a Declaração estava vinculada à visão social da época sobre as crianças e adolescentes, que enfatizava a questão da carência e até mesmo da sua incapacidade.
Assim, um novo debate sociológico em nível internacional veio à tona em relação às crianças e adolescentes à medida que novos direitos foram sendo conquistados por esse grupo no mundo.
Como o direito ao registro e a nacionalidade, a proteção contra a exploração econômica e social, a proteção contra trabalhos nocivos e a idade mínima para trabalho, adotados pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 1966.
O debate chegou ao seu ápice em 1979, quando diversas instituições e ONGs internacionais estimularam a ONU a declarar o ano de 1979 como o Ano Internacional da Criança.
Isso ocorreu pela data representar 20 anos da existência da Declaração dos Direitos das Crianças e em uma tentativa de chamar a atenção da comunidade internacional para questões que envolvem a infância.
Assim, a partir do ano de 1979 a ONU colocou em ação um grupo de trabalho para elaborar um novo tratado internacional sobre os direitos das crianças e dos adolescentes, baseado em uma visão que mais tarde seria chamada de Doutrina da Proteção Integral.
A Doutrina da Proteção Integral e direitos das crianças no mundo
Como resultado dos esforços do grupo de trabalho da ONU, foi elaborada e aprovada em 1989 a Convenção sobre os Direitos das Crianças, que entrou em vigor no ano seguinte, em 1990.
A Convenção é vista como uma conquista histórica dos direitos humanos. Isso porque reconhece direitos e liberdades fundamentais a serem garantidos com prioridade absoluta à criança em todas as suas fases da vida.
Dentre os direitos garantidos, destaca-se o direito à vida, à não discriminação, à saúde, à educação, à preservação de sua identidade, à liberdade de pensamento, consciência e religião, ao lazer, a proteção contra violência, abusos ou exploração, entre outros.
Dessa forma, esse documento consolida a Doutrina da Proteção Integral em nível internacional. Essa doutrina agrega a dignidade e o respeito aos direitos das crianças e dos adolescentes, se contrapondo a qualquer tratamento que resulte na sua exclusão social e enfatizando a necessidade da proteção prioritária desses indivíduos.
Com isso, é eliminada a interpretação de incapacidade das crianças e adolescentes, sendo incorporada a noção de que o Estado e a sociedade devem se moldar às suas necessidades e particularidades, contribuindo para o seu desenvolvimento.
De maneira geral, a Convenção sobre os Direitos das Crianças representou um grande avanço e influenciou normas legislativas de proteção às crianças e adolescentes em todo o mundo, como no caso do Estatuto da Criança e do Adolescente, no Brasil.
Além disso, há outros documentos internacionais que abordam sobre esses direitos, como as Regras de Beijing (1985), as Diretrizes de RIAD (1990) e os próprios protocolos facultativos referentes à Convenção de 1990. Mas veremos melhor todas essas garantias no nosso próximo texto.
Por enquanto, no infográfico abaixo é possível ver a evolução dos direitos das crianças e dos adolescentes ao longo do tempo:
Conclusão
Foram muitos séculos de história para que a sociedade começasse a dar atenção especial às crianças. Isso significa que por muito tempo esse grupo teve as suas particularidades ignoradas, recebendo um tratamento inadequado no que diz respeito ao seu desenvolvimento humano.
Na verdade, a vitória que consagra o surgimento dos direitos das crianças e dos adolescentes ocorreu somente recentemente, no século XX, reconhecendo esses indivíduos como sujeitos pertencentes de direitos próprios. Foi a partir de então que houve um grande impulso na defesa e promoção da dignidade e dos direitos humanos desse grupo.
Nesse sentido, a evolução da legislação, especialmente a internacional, por meio da ONU, foi e é fundamental para garantir o progresso de medidas e ações que visam a segurança e o amparo das crianças e adolescentes no mundo.
Mais do que isso, esses avanços também possuem impacto na concepção que a sociedade possui em relação à infância e a adolescência. Dessa forma, pela importância do direito internacional aos direitos das crianças e dos adolescentes, no nosso próximo texto vamos falar sobre como o sistema internacional protege a infância e a adolescência no mundo. Não perca!
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos das Crianças e dos Adolescentes“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Anna Paula Jacob Gimenez
Bárbara Correia Florêncio Silva
Caroline Sayuri Ogata Graells
Eduardo de Rê
Giovanna de Cristofaro
Mariana Dragone Pires
Mariana Scofano Martins
Fontes:
2- ÁRIES, Philippe. História social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 2ª ed. 1986.
3- FRANCISCO, Tomás. História dos Direitos da Criança no mundo e em Moçambique: um estudo sobre a sua evolução. Revista de Ciência Humanas, vol. 50, nº 1, p. 64-84, 2016.
4- HEYWOOD, Colin. Uma História da Infância. Porto Alegre: Artmed, 1ª ed. 2004.
5- LAES, Christian. Children and their Occupations in the city of Rome (300-700 ce). In: LAES, Christian et al. Children and Family in late Antiquity. Walpole: Peeters, p. 79-111, 2015.
6- MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2019. 12. ed. Disponível em: <https://www.google.com.br/books/edition/Curso_de_Direito_da_Crian%C3%A7a_e_do_Adoles/s9NiDwAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=Evolu%C3%A7%C3%A3o+hist%C3%B3rica+do+direito+da+crian%C3%A7a+e+do+adolescente+-+Andr%C3%A9a+Rodrigues+Amin&pg=PT58&printsec=frontcover>. Acesso em 29 de outubro de 2021.
7- SANTOS, Valdeir C. Direitos da criança e do adolescente: contribuições da memória e da história. Brazilian Journal of Development, vol. 7, n. 1, p. 3054-3076, 2021.
8- UNICEF. História dos direitos da criança. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/historia-dos-direitos-da-crianca>. Acesso em: 29 de outubro de 2021.