Mesmo a infância e a adolescência sendo consideradas as fases mais importantes para a formação do ser humano, a situação de milhões de crianças e adolescentes no mundo está longe do ideal.
Para se ter uma ideia, de acordo com Relatório do Status Global sobre Prevenção da Violência contra Crianças (2020), elaborado por agências da Organização das Nações Unidas (ONU), aproximadamente 1 bilhão de crianças são vítimas de algum tipo de violência todos os anos no planeta.
Isso significa que metade da população infantil do mundo sofre agressões e tem os seus direitos básicos desrespeitados. Dessa forma, na tentativa de resguardar esses indivíduos ao redor do mundo, o sistema internacional possui diversas garantias previstas pelos direitos das crianças e dos adolescentes.
E é exatamente sobre essas garantias e como elas protegem a infância e a adolescência que vamos abordar neste texto do Equidade, buscando entender quais são os direitos que esses indivíduos possuem no âmbito internacional.
O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, a Civicus e o Instituto Mattos Filho voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender como o sistema internacional protege a infância e a adolescência? Segue com a gente!
Se quiser, escute nosso podcast complementar ao assunto do texto:
O conceito de infância e adolescência
Em nosso texto sobre o que são os direitos das crianças e dos adolescentes, comentamos brevemente sobre o que significa ser criança sob a ótica legislativa e também sociológica.
Basicamente, no sentido jurídico do sistema internacional, a criança é todo indivíduo que possui até 18 anos de idade. Mas no âmbito social e antropológico, a discussão sobre a infância e a adolescência é mais complexa.
Em termos etimológicos (origem das palavras), a palavra infância vem do latim e significa “aquele que não sabe falar”. A adolescência, por sua vez, também vem do latim e quer dizer “crescente” ou “crescer para”, representando o período de crescimento e amadurecimento para a fase adulta.
Contudo, as primeiras concepções em relação a esses períodos da vida estavam ligadas à ideia de irracionalidade, incapacidade e dependência, enxergando as crianças e adolescentes como indivíduos que necessitavam de disciplina e controle.
Já o conceito contemporâneo de infância e adolescência compreende esses períodos como uma construção social, influenciando e sendo influenciados pelo ambiente onde vivem. Isto é, conforme a socióloga Chris Jenks (2005), a infância está relacionada ao status social atribuído à criança, que varia entre sociedades e através do tempo por incorporar e manifestar diferentes formas de conduta.
Isso significa que a infância como fase da vida está sempre ligada às tradições e comportamentos culturais da sociedade na qual está inserida. Vamos tentar simplificar com um exemplo hipotético.
Pense em um menino de 9 anos que vive em um centro urbano no Brasil, mora junto com a sua família, frequenta a escola e tem acesso a momentos de lazer e descontração, indo ao cinema, parques, etc.
Agora imagine uma menina de 8 anos da tribo Maori na Nova Zelândia, que também tem uma vida harmoniosa, recebe educação de qualidade e tem acesso ao lazer, mas vive em uma zona rural e segue os hábitos e os costumes específicos da sua tribo.
Apesar de serem crianças, a infância vivenciada por ambas (suas experiências, visões de mundo, etc.) é diferente, não é mesmo? Isso porque suas realidades são distintas e, consequentemente, seus comportamentos e suas condutas tendem a ser também. Essa lógica também é válida para a adolescência.
Nesse sentido, com base na ideia de que a infância e a adolescência são um fenômeno social além de um simples período da vida, o cuidado dado às crianças e adolescentes no mundo leva em consideração não apenas o aspecto biológico, mas também sociológico, psicológico e emocional.
Assim, as garantias internacionais existentes hoje buscam suprir esses aspectos e assegurar o desenvolvimento humano integral das crianças e adolescentes no mundo. Vamos ver melhor quais são essas garantias.
Quer entender mais sobre Lei Henry Borel e ODS 16? Confira o conteúdo do Projeto Direito ao Desenvolvimento: Lei Henry Borel e o ODS 16: proteção de crianças e adolescentes no Brasil
Os direitos das crianças e adolescentes no sistema internacional
Os direitos das crianças e dos adolescentes foram consolidados no mundo no século XX, especialmente com a aprovação em 1959 da Declaração dos Direitos da Criança pela ONU.
O documento reconheceu a criança como um indivíduo portador de direitos particulares e estabeleceu uma série de direitos fundamentais, como o direito à vida, à educação, à saúde, à proteção especial, entre outros.
Contudo, diversos outros tratados internacionais específicos foram elaborados após esse momento para complementar a abrangência e a efetividade desses direitos.
Isso foi feito com o intuito de promover uma maior proteção às crianças e adolescentes ao redor do mundo, baseados especialmente na Doutrina da Proteção Integral, explicada em nosso texto anterior.
Assim, é válido mencionar as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça e da Juventude, elaborada em 1985, também conhecida como as Regras de Beijing.
O documento foi aprovado pela Assembleia Geral da ONU e estabeleceu regras e princípios básicos para a elaboração e implementação de um sistema de justiça pelos países signatários, na defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
Dentre as regras, destaca-se a determinação de garantias fundamentais do processo jurídico, como a presunção de inocência, o direito de não responder, o direito à assistência jurídica, o direito à presença dos pais ou tutores, o direito de interrogar, o direito ao recurso, entre outros.
Já em 1990, a ONU publicou dois relevantes documentos voltados à infância e à adolescência: a Convenção sobre os Direitos das Crianças (falaremos só sobre ela mais para a frente) e as Diretrizes das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil, conhecida como Diretrizes de RIAD.
As Diretrizes de RIAD tratam sobre políticas públicas a serem tomadas com o objetivo de prevenir a delinquência (desobediência das leis e normas) entre crianças e jovens. Dessa forma, fica estabelecido que a sociedade deve garantir o desenvolvimento harmônico desses indivíduos.
Segundo o documento, isso deve se dar principalmente por meio da promoção do bem-estar, da educação, do ambiente familiar estável, de programas e processos de socialização e do acesso à informação.
Outro importante documento na proteção da infância e da adolescência é a Convenção nº 182, publicada em 1999 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), relativa à Proibição das Piores Formas de Trabalho e Ação Imediata para a sua Eliminação.
Essa Convenção da OIT tem como principal prioridade a proibição e a eliminação de qualquer forma de trabalho que possa prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças. Isso inclui toda a forma de escravidão ou práticas análogas à escravidão, servidão, trabalho forçado e recrutamento para conflitos armados.
O trabalho infantil é um problema grave que afeta crianças e adolescentes ao redor do mundo. O ODS 8 da ONU tem uma meta que busca erradicar esse tipo de exploração. Você sabe qual é essa meta? Confira em Trabalho Infantil no Brasil: como proteger as crianças e adolescentes?
A Convenção sobre os Direitos das Crianças e os seus protocolos
Como comentado anteriormente, em vista de sua importância, neste bloco falaremos apenas das garantias previstas pela Convenção sobre os Direitos das Crianças (1990) da ONU.
O documento é uma espécie de atualização da Declaração de 1959, sendo o principal documento internacional de proteção à infância e à adolescência no mundo, estabelecendo uma série de garantias.
Uma das inovações da Convenção é o seu caráter coercitivo, no sentido de que todo Estado signatário do documento deve seguir as garantias e os dispositivos previstos de maneira obrigatória.
Esse tratado é o instrumento de direitos humanos do sistema internacional mais aprovado da história, tendo sido ratificado por 196 países no mundo, incluindo o Brasil. Com isso, os seus direitos e princípios visam a melhoria das condições de vida de todas as crianças e adolescentes, sem exceção.
Sendo assim, o documento determina os direitos econômicos, sociais e culturais das crianças, assim como os seus direitos fundamentais. Destacando-se o direito à vida, ao registro e nacionalidade, à educação, à identidade, à liberdade, ao acesso à informação, à saúde, à adoção, à alimentação, ao lazer e a proteção contra todas as formas de exploração e abuso.
Essas garantias estão baseadas no princípio do interesse superior das crianças, que preza pela prioridade da sua proteção e do respeito aos seus direitos por parte do Estado, da família e da sociedade.
Mas mesmo com os seus avanços em relação aos direitos das crianças e adolescentes, com o passar dos anos o documento começou a se tornar insuficiente para abranger todas as questões que envolvem a infância.
Com isso, houve a necessidade da elaboração e aprovação de três protocolos facultativos a fim de complementar e fortalecer a Convenção. São eles:
- Protocolo Facultativo Referente à Venda de Crianças, à Prostituição Infantil e à Pornografia Infantil: Este protocolo entrou em vigor em 2002 e fornece aos Estados signatários requisitos para acabar com a exploração e o abuso sexual de crianças. Assim, o documento cria obrigações aos governos para criminalizar e punir as atividades relacionadas à transferência de órgãos ou crianças para fins lucrativos e ao trabalho forçado.
- Protocolo Facultativo Relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados: Entrou em vigor também em 2002 e estabeleceu que os Estados signatários são obrigados a tomar todas as medidas possíveis para garantir que membros de suas forças armadas menores de 18 anos não participem de hostilidades. Além de proibir o recrutamento compulsório de menores de 18 anos para as forças armadas.
- Protocolo Facultativo Relativo aos Procedimentos de Comunicação: Entrou em vigor em 2014, viabilizando o recebimento de denúncias e a realização de investigações pelo Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU em casos de violação de direitos. Além disso, possibilita que as crianças dos Estados signatários usem o tratado para buscar amparo, caso o sistema jurídico nacional não tenha sido capaz de reparar a violação.
A aplicação prática das garantias internacionais
Talvez você esteja se perguntando se os direitos comentados anteriormente afetam a vida das crianças e adolescentes na prática. Bem, a ONU em conjunto com sistemas regionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), possuem mecanismos jurídicos que buscam garantir a implementação desses direitos.
É o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que tem entre as suas atribuições, a função de julgar casos de violação de direitos humanos ocorridos em países membros da OEA. Como ocorreu no episódio Atala Riffo e filhas contra o Estado do Chile.
A Sra. Karen Atala Riffo era casada com o Sr. Ricardo Jaime López Allendes e, juntos, possuíam três filhas. No ano de 2002 o casal se separou e decidiram, consensualmente, que a guarda das filhas seria de Atala.
Contudo, no ano seguinte, em 2003, o Sr. López entrou com uma ação no Juizado de Menores de Villarrica requerendo a guarda das filhas em vista de a Sra. Atala estar vivendo uma relação homoafetiva. A alegação era que o ambiente familiar de um casal homossexual era prejudicial às crianças.
O pedido foi julgado improcedente pelo Juizado, e então o Sr. López levou o caso para a Suprema Corte de Justiça do Chile, que concedeu a guarda definitiva das crianças ao pai.
Com a perda das filhas, a Sra. Atala submeteu o caso para a Corte IDH, em 2004, alegando discriminação e violação dos seus direitos humanos por conta de sua orientação sexual.
Como resultado, a Corte IDH declarou que o Estado Chileno violou o direito à igualdade, à não discriminação e à vida privada da Sra. Atala e das crianças. Assim, especificamente em relação às crianças, concluiu-se que foi injustificado a separação do seu ambiente familiar.
Isso porque o interesse superior das crianças, previsto em tratados internacionais de direitos das crianças, não pode ser utilizado para reproduzir preconceitos e atos discriminatórios.
Com isso, foi determinado o pagamento de indenização, pelo Estado Chileno, por danos materiais e morais, bem como a obrigação de elaborar políticas públicas de tolerância e respeito às minorias sexuais.
Além desse episódio, no infográfico abaixo é possível observar outros casos em que cortes e tribunais implementaram na prática os direitos das crianças e dos adolescentes previstos no sistema internacional.
Conclusão
Os avanços obtidos no sistema internacional para a proteção da infância e da adolescência são significativos. O reconhecimento de importantes direitos de caráter social, civis, políticos e econômicos representa uma evolução na tentativa de garantir a dignidade e o desenvolvimento desses indivíduos.
Contudo, a realidade de muitas crianças e adolescentes ao redor do mundo ainda é de violação dos seus direitos fundamentais. De acordo com a ONU, uma em cada seis crianças no mundo viviam em extrema pobreza em 2020, sendo que esse número pode piorar devido à pandemia do Covid-19.
Isso representa 356 milhões de crianças vivendo em condições degradantes, tendo os seus desenvolvimentos físicos e cognitivos ameaçados. Dessa forma, é de extrema importância o fortalecimento dos direitos das crianças e dos adolescentes e a implementação de políticas voltadas ao amparo desse grupo.
Isso deve ocorrer tanto em nível internacional, quanto nacional, com a elaboração de leis e medidas por parte dos governos nacionais que visem a plena proteção desses indivíduos em situação de vulnerabilidade.
No caso do Brasil, a legislação brasileira possui importantes instrumentos de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). E para entender melhor sobre quais são as suas garantias, no nosso próximo texto vamos falar sobre os direitos previstos no ECA e na legislação brasileira, não perca!
Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Direitos das Crianças e dos Adolescentes“, confere o vídeo abaixo!
Autores:
Anna Paula Jacob Gimenez
Bárbara Correia Florêncio Silva
Caroline Sayuri Ogata Graells
Eduardo de Rê
Giovanna de Cristofaro
Mariana Dragone Pires
Mariana Scofano Martins
Fontes:
2- CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Atala Riffo e Crianças Vs. Chile. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_por.pdf>. Acesso em 02 de novembro de 2021.
3- JENKS, Chris. Childhood – second edition. New York: Routledge, 2005.
4- MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2019. 12. ed. Disponível em: <https://www.google.com.br/books/edition/Curso_de_Direito_da_Crian%C3%A7a_e_do_Adoles/s9NiDwAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=Evolu%C3%A7%C3%A3o+hist%C3%B3rica+do+direito+da+crian%C3%A7a+e+do+adolescente+-+Andr%C3%A9a+Rodrigues+Amin&pg=PT58&printsec=frontcover>. Acesso em 02 de novembro de 2021.
5- NASCIMENTO, Cláudia et al. A Construção Social do Conceito de Infância: algumas interlocuções históricas e sociológicas. Contexto & Educação, ano 23, nº 73, p. 47-63, 2008.
6- ROSEMBERG, Fúlvia; MARIANO, Carmem. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança: debates e tensões. Cadernos de Pesquisa, vol. 40, nº 141, p. 693-728, 2010. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cp/a/gvh6jf9BxZFWyZzcbSDWpzk/?lang=pt>. Acesso em: 01 de novembro de 2021.
7- UNICEF. Fortalecimento da Convenção sobre os Direitos da Criança: Protocolos Facultativos. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/fortalecimento-da-convencao-sobre-os-direitos-da-crianca-protocolos-facultativos>. Acesso em: 02 de novembro de 2021.
8- UN NEWS. Cerca de 1 bilhão de crianças no mundo são vítimas de violência todos os anos. Organização das Nações Unidas, 2020. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2020/06/1717372>. Acesso em: 02 de novembro de 2021.