Os desafios do livre exercício da fé

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Os desafios do livre exercício da fé
05 jul 2022
05 / jul / 2022

Os desafios do livre exercício da fé

A relação dos seres humanos com as religiões é um aspecto inegável em nossa história. Por envolver sentimentos e convicções, tanto individuais quanto coletivas, a religião é considerada por muitos como um fator fundamental em suas vidas, capaz de dar sentido às suas existências..

Um dos sentimentos que influenciam para que a experiência religiosa seja vista dessa forma é a fé. Contudo, o livre exercício da fé, envolvendo a prática de cultos e ritos que representam a manifestação de crenças religiosas, enfrenta dificuldades para ser praticado.

Isso ocorre mesmo com a liberdade religiosa sendo considerada um direito humano. Há desafios que impedem a implementação efetiva do direito à liberdade religiosa. Assim, neste texto do Equidade, vamos compreender quais são esses desafios e o que eles representam.

O projeto Equidade é uma parceria entre o Politize!, a Civicus e o Instituto Mattos Filho voltada a apresentar, de forma simples e didática, os Direitos Humanos e os principais temas que eles envolvem, desde os seus principais fundamentos e conceitos aos seus impactos em nossas vidas. E então, preparado(a) para entender sobre os desafios do livre exercício da fé? Segue com a gente!

Confira também o nosso podcast sobre o assunto, no qual conversamos com o Roberto Quiroga, sócio-diretor do Mattos Filho:

Antes de tudo, o que é fé?

A fé remete a um conceito religioso e está ligada com a interação entre um indivíduo e a religião. Assim, por se tratar de um fenômeno subjetivo e imaterial, existe uma dificuldade em conceituar exatamente o que a fé significa e o que ela representa.

 Muitas vezes, a fé é colocada como o oposto da razão, ou seja, ela não seria baseada em um pensamento racional e em fatos concretos da realidade. Essa ideia nasce especialmente na Idade Moderna (1453-1789), quando filósofos renascentistas, como Descartes, passaram a valorizar a racionalidade como método para explicar o mundo ao seu redor.

Nesse momento da história, a religião (centrada fortemente na Igreja Católica) possuía grande influência política e conseguia impor os seus dogmas e as suas visões para a sociedade. 

Dessa forma, a razão é posta como contrária à fé pelos filósofos renascentistas (e depois pelos iluministas) por questionar as explicações e os conhecimentos dominantes que eram baseados nas crenças religiosas. 

Contudo, não é possível apenas conceituar a fé como contrária à razão, pois a complexidade do assunto exige um maior aprofundamento sobre o seu significado. Para o teólogo Augusto Pasquoto (2015), a palavra fé é de difícil definição por abranger diversos elementos como os sentimentos, as vontades, o comportamento e o intelecto.

A fé, portanto, pode ser interpretada como um sentimento, crença ou confiança total em algo ou alguém mesmo que não haja evidências reais para a comprovação disso.

Sabia que milhares de pessoas perdem a vida devido à violência motivada pela intolerância religiosa? O ODS 16 se dedica a combater essa e outras formas de violência, além de promover a paz e a justiça social. Leia mais sobre esse ODS em: Como o ODS 16 ajuda a combater a violência e promover uma cultura de paz?

E quais são os desafios ao livre exercício da fé?

A fé, então, está ligada a uma experiência pessoal de um indivíduo com a religião, ou com aquilo que considera sagrado ou divino. 

Essa relação pode se dar de diversas formas que abrangem cultos, cerimônias, ritos e práticas religiosas em geral. Nesse sentido, o livre exercício da fé integra o direito humano à liberdade religiosa, que garante que todos podem adotar a sua religião e ter as suas crenças, sem sofrer restrição por isso (conforme o art. 5º, inciso VII da CF 1988).

Como vimos ao longo dos últimos textos, essa garantia é prevista em diversos tratados internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) de 1948, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, entre outros.

Imagem de uma pessoa carregando diversos incensos acesos representando os desafios do livre exercício da fé

Além disso, é um direito previsto também na legislação nacional brasileira, como na Constituição Federal de 1988 e na Lei nº 9.459 de 1997 (que criminaliza a discriminação religiosa). No entanto, a garantia e a aplicação prática desse direito passa por desafios, impedindo a liberdade das pessoas em expressar a sua fé. Vamos ver melhor alguns desses desafios.

O fundamentalismo religioso

Como aponta o mestre em filosofia Zeferino Rocha (2014), o fundamentalismo religioso pode ser entendido como a adesão integral à determinada doutrina religiosa, em que o modo de agir, pensar e se comportar são baseados nas crenças religiosas.

O fundamentalismo religioso passa a ser uma ameaça ao livre exercício da fé, por não ser aberto à aceitação de outras vertentes religiosas, assumindo as suas crenças e dogmas como verdade absoluta e incontestável.

Como consequência, muitas vezes, grupos fundamentalistas tomam ações que violam os direitos humanos e a liberdade religiosa por tentar impor as suas convicções. Esse perigo é ainda maior quando esses grupos assumem o controle político de um país ou região.

Um exemplo recenete foi a tomada de poder pelo grupo fundamentalista islâmico Talibã no Afeganistão, em 2021. O Talibã defende uma posição radical da Sharia, a lei islâmica, e não tolera a livre manifestação de outras religiões no país. De acordo com a ONG Portas Abertas, a tomada de poder pelo grupo aumentou o risco de perseguição religiosa, especialmente contra cristãos.

 Sendo assim, o fundamentalismo religioso quando assume poderes políticos diverge do Estado laico, que garante a neutralidade estatal perante questões religiosas e, assim, promove os princípios de liberdade de consciência e de crença, permitindo a livre manifestação da fé e a diversidade religiosa.

Como expressam os professores em Direito, José Reinaldo de Lima Lopes e Oscar Vilhena Vieira (2013),  fundamentalistas “almejam oferecer uma linha da qual seus adeptos não podem escapar e determinam todas as dimensões de sua vida”.

Com isso, o convívio harmônico entre religiões fica ameaçado e há a segregação de diferentes convicções religiosas, visto que a única fé que pode ser expressada é a fé imposta pelos fundamentalistas.

A intolerância religiosa

A intolerância religiosa corresponde à não aceitação de determinada religião ou crença, gerando sentimentos de aversão que podem resultar em ações hostis contra indivíduos ou grupos por motivo de crença religiosa.

Falamos sobre isso em nosso texto anterior, mas não há como deixar de citar novamente a intolerância religiosa, por ser um dos principais desafios do livre exercício da fé. Isso porque ela engloba comportamentos discriminatórios e resulta em ações prejudiciais (muitas vezes criminosas) que violam o respeito à dignidade humana. 

Nesse sentido, veremos alguns casos reais de intolerância que ilustram essa realidade aqui no Brasil.

  • Violência contra Muçulmanos: Em 2015, noticiou-se um aumento dos casos de intolerância religiosa contra mulçumanos no estado do Rio de Janeiro, tendo sido denunciadas agressões como insultos, cusparadas, pedradas e ameaças de morte. As mulheres, mais facilmente identificadas nas ruas pelo uso do véu, foram as principais vítimas de violência. Estima-se que houve ao menos uma denúncia por mês entre janeiro e agosto de 2015 de intolerância contra muçulmanos. Dentre os relatos, uma aeromoça disse ter levado um soco e ser xingada de “terrorista” por um homem, enquanto andava pela cidade.
  • Violência contra Judeus: Em uma das raras ocorrências contra judeus registradas no Brasil, um homem foi atacado por membros de grupo neonazista a caminho de uma sinagoga, em fevereiro de 2020, no interior do estado de São Paulo. Enquanto agrediam a vítima fisicamente, os agressores gritaram ofensas antissemitas e cortaram o seu quipá (boina utilizada por judeus como símbolo da religião).
  • Comunidades Indígenas: Em 2018, comunidades indígenas no Mato Grosso do Sul passaram a ser vítimas de crescente intolerância religiosa a partir de ataques contra líderes religiosos e locais de culto. O número de casos chegou a aumentar cerca de 800% em comparação com o ano de 2017. No caso da população indígena, os ataques estão frequentemente relacionados a disputas territoriais com fazendeiros.

O racismo

Especialmente no Brasil, a discriminação racial também é um fator que dificulta a liberdade religiosa e a manifestação da fé. Desde o processo de colonização do país, os povos africanos e indígenas, além de terem sido escravizados, sofreram com a exclusão social. 

Os negros, por exemplo, conquistaram o direito ao voto somente em 1934 e tiveram todos os seus direitos fundamentais reconhecidos apenas com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Tais exemplos ilustram as dificuldades da plena participação social, econômica e política desse grupo étnico-racial no país (falamos mais sobre isso em nosso tema sobre direitos étnico-raciais, confere lá).

Como consequência, o racismo estrutural é um problema presente até os dias de hoje em nossa sociedade e que possui ligação com a discriminação contra religiões de matriz africana, afro-brasileiras e cultos indígenas, visto que o aspecto religioso abrange o aspecto cultural.

Imaegm de uma mulher negra com os olhos fechados e com as mãos em posição de oração representando os desafios do livre exercício da fé

Nesse sentido, o babalorixá Sidnei Nogueira (2018), em seu livro “Intolerância Religiosa”, expressa que: “O racismo religioso condena a origem, a existência, a relação entre uma crença e uma origem preta. O racismo não incide somente sobre pretos e pretas praticantes dessas religiões, mas sobre as origens da religião, sobre as práticas, sobre as crenças e sobre os rituais” (p. 47).

Apenas no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, no ano de 2021, as religiões de matriz africanas foram alvo de cerca de 91% das agressões cometidas por motivos de religião, segundo o G1 com base em dados da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa.

Outro dado que indica a relação entre racismo e intolerância religiosa é apontado pela organização Aid to the Church in Need. Em seu relatório de 2021, declara-se que praticantes de religiões africanas e afro-brasileiras, como Candomblé e Umbanda, têm de 130 a 210 vezes mais chance de serem vítimas de intolerância, mesmo correspondendo a cerca de 1,9% da população brasileira.

Casos de intolerância religiosa ligadas ao racismo

Para além dos números e do episódio já citado nas comunidades indígenas, é possível citar outros casos reais que exemplificam a violência contra a fé das religiões de grupos étnico-raciais.

  • Proibição Ilegal do Exercício da Fé: Em 2019, um grupo autodenominado “Bandidos de Cristo”, proibiu, ilegalmente, a realização de ritos religiosos de matriz africana na região de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Na ocasião, cerca de 15 barracões de Candomblé foram proibidos de realizar atividades religiosas. O evento aconteceu após 25 barracões terem sido invadidos e depredados em Nova Iguaçu, também no estado do Rio de Janeiro, com os praticantes sendo ameaçados de morte.
  • Ameaça a Adepto ao Candomblé: Em 2010, um sargento do Exército Brasileiro, que também era pastor, ameaçou um de seus soldados com uma arma de fogo em razão de o soldado ser adepto ao candomblé. O caso foi levado ao Superior Tribunal Militar (STM) que manteve a condenação do sargento a dois meses de prisão pelo crime de constrangimento ilegal.
  • Destruição de Terreiros: No ano de 2017, uma série de terreiros de Candomblé foram atacados no estado do Rio de Janeiro, que, em um desses ataques, os criminosos obrigaram uma mãe de santo a destruir o seu próprio terreiro. Além disso, os agressores filmaram a cena e, enquanto a mãe de santo destruía as imagens e objetos, eles a ofendiam, chamando-a de “demônio-chefe”.

Conclusão

Os números e o casos trazidos, não só neste texto, mas durante toda a trilha de conteúdos do tema sobre liberdade religiosa indicam que o aparato legislativo, bem como as políticas públicas de combate à discriminação religiosa são falhas no que diz respeito às suas implementações.

A finalidade de uma lei é que ela seja cumprida, beneficiando toda a sociedade e construindo um ambiente mais justo. Contudo, essa finalidade só é alcançada quando a lei é efetivada na prática, e não apenas na teoria.

Sendo assim, o livre exercício da fé continua ameaçado, tanto no Brasil, quanto no mundo. Somado a isso, no Brasil, o agravamento da crise econômica e a polarização do debate público fizeram com que determinadas secretarias públicas de proteção à liberdade religiosa tivessem queda no orçamento ou fossem fechadas. 

Um exemplo foi a extinção da Assessoria de Diversidade Religiosa e Direitos Humanos (ASDIR), criada em 1989 e vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Nesse sentido, além do fortalecimento das medidas legislativas e das políticas públicas, é essencial que todos nós enquanto cidadãos nos conscientizemos sobre a importância do respeito às diferenças. 

Com isso, conseguiremos contribuir para uma sociedade mais democrática, justa e com equidade. Esse é um dos objetivos do projeto Equidade, que busca levar conhecimento sobre os direitos humanos para todos por meio de conteúdos didáticos e acessíveis.

Chegamos ao último texto do projeto, esperamos que tenham gostado! E se quiser conferir os demais temas que envolvem os direitos humanos, é só acessar a página do Equidade.

E lembre-se, em caso de suspeita de violação de direitos humanos, tanto de liberdade religiosa, quanto de quaisquer outros direitos tratados aqui no projeto, entre em contato com o Disque 100 do governo federal, sendo que as denúncias podem ser feitas de forma anônima para melhor segurança.

Ah! E se quiser conferir um resumo super completo sobre o tema “Liberdade Religiosa“, confere o vídeo abaixo!

Autores:

Bernardo Zahran Rache de Almeida
Eduardo de Rê
Felipe Lima Matthes
Giovanna de Cristofaro
Juliana Meneghelli de Barros
Mariana Carneiro Campos Niccoli
Mariana Carolina Rezende

Fontes:

1- Instituto Mattos Filho;

2- ROCHA, Zeferino. A perversão dos ideais no fundamentalismo religioso. Rev. Latinoam. Psicopt. Fund., São Paulo, 17(3), p. 761-774, 2014. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rlpf/a/3j4CBPgbVksnGDYVbJYsxzp/?lang=pt>. Acesso em: 07 de abril de 2022.

3- IZIDORO, Antônio. Fé e razão: o discurso religioso-filosófico na perspectiva do cristianismo

4- PASQUOTO, Augusto. Razão e Fé – Reflexões para uma fé adulta. Aparecida: Editora Santuário, 2015.

5- NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância Religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen (Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro), 2020.

6- Catraca Livre. Criminosos obrigam mães de santo a quebrarem terreiros no RJ. 2017. Disponível em: <https://catracalivre.com.br/cidadania/criminosos-obrigam-maes-de-santo-quebrarem-terreiros-no-rj/>. Acesso em: 07 de abril de 2022.

7- GOMES, Marcelo. Sargento, que é pastor evangélico, apontou arma para cabeça de soldado, praticante do candomblé. Extra, 2011. Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/sargento-que-pastor-evangelico-apontou-arma-para-cabeca-de-soldado-praticante-do-candomble-3467767.html>. Acesso em: 08 de abril de 2022.

8- Dossiê Intolerância Religiosa. Bandidos de Cristo proíbem 15 barracões de Candomblé de funcionarem em Duque de Caxias. 2019. Disponível em: <http://intoleranciareligiosadossie.blogspot.com/2019/05/bandidos-de-cristo-proibem-15-barracoes.html>. Acesso em: 08 de abril de 2022.

9- DULCE, Emily. Sob cerco evangélico, guarani-kaiowás sofrem com intolerância no Mato Grosso do Sul. Brasil de Fato, 2018. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2018/05/25/sob-cerco-evangelico-guarani-kaiowas-sofrem-com-intolerancia-no-mato-grosso-do-sul>. Acesso em: 08 de abril de 2022.

10- KUHL, Nathália. “Judeuzinho verme”: homem de 57 é espancado por 3 agressores. Metrópoles, 2020. Disponível em: <https://www.metropoles.com/brasil/policia-br/judeuzinho-verme-homem-de-57-anos-e-espancado-por-3-agressores>. Acesso em 07 de abril de 2022.

11- VILLELA, Flávia. Muçulmanos estão entre as principais vítimas de intolerância religiosa no Rio. Agência Brasil, 2015. Disponível em: <https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2015/08/muculmanos-estao-entre-principais-vitimas-de-intolerancia-religiosa-no-rio>. Acesso em: 07 de abril de 2022.

12- LOPES, Reinaldo; VIEIRA, Oscar. Religião e direitos humanos. Estado de São Paulo, 2013. Disponível em: <https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,religiao-e-direitos-humanos-imp-,1023910>. Acesso em: 07 de abril de 2022.

13- ONG Portas Abertas. Afeganistão. Disponível em: <https://www.portasabertas.org.br/lista-mundial-da-perseguicao/afeganistao>. Acesso em: 07 de abril de 2021.

14- TRIGUEIRO, André. Estudo mostra que religiões de matrizes africanas foram alvo de 91% dos ataques no RJ em 2021. G1, 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/01/22/estudo-mostra-que-religioes-de-matrizes-africanas-foram-alvo-de-91percent-dos-ataques-no-rj-em-2021.ghtml>. Acesso em: 08 de abril de 2022.

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