Em 2021, uma emenda à Constituição dividiu opiniões ao estabelecer um teto anual para o pagamento de precatórios, despesas devidas pela União decorrentes de sentenças judiciais. Na época, a medida foi apelidada de PEC do Calote.
Nesse texto, a Politize! ajuda você a identificar o motivo da divergência a respeito da medida, contextualizando sua motivação e apontando os principais argumentos e o debate que se seguiu após a implementação.
Origem e contexto da PEC do Calote
“Estamos mapeando um meteoro que pode atingir a Terra. Temos que disparar um míssil para impedir que o meteoro atinja a Terra”. Com essa declaração em julho de 2021, o então ministro da Economia Paulo Guedes chamou atenção para um volume extraordinário de gastos que iriam impactar o orçamento público federal do ano seguinte. Esse volume extraordinário decorria de uma maior previsão de gastos com precatórios, valores devidos pela União após condenação judicial definitiva.
Com o limite definido pelo teto de gastos, esse aumento de despesas comprimiria o espaço das demais linhas no orçamento e exigiria algum ajuste pelo Ministério da Economia no desenho do Orçamento do ano seguinte. A solução encontrada foi encaminhada ao Congresso ainda em agosto daquele ano e ficou conhecida na mídia e no meio político como a PEC do Calote.
Principais propostas e objetivos
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 23/2021 tinha como objetivo estabelecer um novo regime de pagamentos de precatórios, limitando o valor anual de débitos dessa natureza e autorizando o parcelamento daqueles postergados.
Pela proposta, o novo limite anual seria definido pelo nível de despesas com precatórios de 2016 (ano considerado como referência para aplicação da regra do teto), corrigido pela inflação e descontadas as Requisições de Pequeno Valor. Com isso, os R$89 bilhões inicialmente previstos como despesas com precatórios em 2022 seriam limitados a cerca de R$40 bilhões, valor abaixo do realizado em 2021, conforme o gráfico abaixo.
Ainda de acordo com a proposta, os precatórios seguiriam sendo lançados por ordem de apresentação pela Justiça e aqueles que ficassem de fora em razão do limite teriam prioridade nos anos seguintes. O credor não contemplado poderia optar pelo recebimento em parcela única até o fim do ano seguinte, desde que aceitasse desconto de 40% por meio de acordo. Os precatórios não pagos seriam corrigidos pela Selic.
A PEC ia além do tema dos precatórios. Além das alterações relacionadas ao pagamento dessas despesas, a proposta também previa uma mudança no indexador usado para a correção das despesas na regra do teto. Em vez de ser corrigido pela inflação em 12 meses até junho do ano anterior, o limite passaria a ser corrigido pela inflação acumulada no ano-calendário anterior (janeiro a dezembro). Segundo o próprio Tesouro Nacional, a alteração abriria um espaço fiscal adicional de R$ 47 bilhões. A PEC 23/2021 foi aprovada e promulgada em dezembro de 2021.
Impactos econômicos, sociais e políticos
Os mercados reagiram com bastante intensidade ao que foi entendido como um pretexto para expandir os gastos públicos às vésperas de uma eleição presidencial. Entre agosto e outubro, a taxa de câmbio passou de cerca de R$/US$ 5,20 para R$/US$ 5,65 e as taxas de juros de longo prazo, também negociadas no mercado financeiro, passaram a refletir os riscos de um cenário com maior nível de gastos e endividamento público, como mostra o gráfico 2.
O impacto econômico foi além dos mercados. Com um câmbio mais depreciado, as expectativas de inflação referentes ao ano de 2022 divulgadas no relatório Focus passaram de 3,8% para 5,0% e a taxa Selic esperada para o fim de 2022 passaram de 7,0% para 11,5%. De fato, e por motivos que vão além da PEC dos Precatórios, a taxa de inflação e a Selic efetivas ao final de 2022 foram de 5,8% e 13,75% a.a. respectivamente.
Com a aprovação da PEC, o orçamento da União para o ano de 2022 passou a incluir R$ 24 bilhões para ajustar os benefícios vinculados ao salário mínimo e cerca de R$50 bilhões adicionais ao programa Auxílio Brasil (antigo Bolsa Família), criado ainda em agosto por meio da Medida Provisória 1061.
A partir de dezembro, o programa passou a ter benefício mínimo no valor de R$400. Em meio ao debate eleitoral, a partir de agosto de 2022, o programa passou a pagar R$600, inicialmente de forma temporária e de forma permanente a partir de janeiro de 2023, quando o programa voltou a se chamar Bolsa Família.
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Argumentos a favor e contra
Embora a PEC dos Precatórios tenha aberto espaço orçamentário para expansão de programas sociais, o principal argumento a favor da medida na época era lidar com um volume extraordinário de pagamentos naquele ano e cuja dinâmica fugia ao controle da União. Em anos como os de 2021 em que houve um aumento inesperado do volume de pagamentos, a execução de políticas públicas poderia ser ameaçada.
Um argumento adicional a favor de uma limitação ao pagamento de precatórios foi o de promover os incentivos corretos para o que foi considerada como uma “indústria predatória” pelo então ministro Paulo Guedes. Segundo ele, a legislação estaria obsoleta e precisava de uma atualização.
Os argumentos contra a medida têm três motivações principais. Em primeiro lugar, precatórios são dívidas líquidas e certas e seu não pagamento (ou simples postergação) representaria o descumprimento de uma decisão judicial e, consequentemente, o calote – motivo que ensejou o apelido dado à PEC 23/2021. Em segundo lugar, a medida não teria sido proposta para impedir a execução de políticas públicas, mas sim viabilizar a expansão de gastos em um ano eleitoral, questão vedada não apenas pela lei eleitoral como também pela própria lógica do teto de gastos. Por fim, a medida não propunha uma solução definitiva para o grande volume de precatórios, apenas postergava o problema para 2027.
Reações populares e das instituições
Afora a instantânea resposta dos mercados, as reações se estenderam para o meio político. Além da usual reação dos partidos de oposição, registrou-se um conjunto de manfestações relacionadas ao Judiciário.
À época, a OAB divulgou nota técnica defendendo a inconstitucionalidade da medida e segundo o presidente da entidade, Felipe Santa Cruz, a PEC era “a institucionalização do calote e da irresponsabilidade fiscal”. Especialistas também apontaram que o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia se manifestado por pelo menos duas vezes contra o parcelamento dos precatórios.
Desde então, o STF avaliou duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) questionando a medida, ambas sob relatoria do ministro Luiz Fux. Em setembro de 2023, em parecer assinado pelo Tesouro e pela Procuradoria Geral da Fazenda, a Advocacia Geral da União se manifestou favoravelmente às ações e pela inconstitucionalidade da medida. A nota sugeria também a quitação de todos os precatórios devidos e acumulados nos últimos anos.
Assim, em dezembro de 2023, por 9 votos a 1, o Supremo acolheu parcialmente o pedido da AGU e declarou a inconstitucionalidade do teto para pagamento de precatórios, permitindo que governo quitasse todo o volume de precatórios devidos sem que o seu pagamento infringisse as regras fiscais vigentes. Cerca de dois anos após a promulgação da PEC 23/2021, o imbroglio finalmente parece se encaminhar para um fim.
Você conhecia a PEC dos Precatórios e o debate que a medida gerou? Tem alguma dúvida sobre o tema e suas repercussões? Comente aqui!
Referências:
- Câmara dos Deputados – Câmara aprova texto-base da PEC dos Precatórios
- O Globo – PEC dos Precatórios deve ser levada à Justiça por ferir cláusula pétrea da Constituição. Entenda
- Poder360 – Guedes diz que o Brasil vai ser “destruído” pela “indústria de precatórios”
- Senado Notícias – Congresso muda Auxílio Brasil no primeiro semestre e assegura benefício de R$ 600