Na última semana, milhares de mulheres organizaram pelo Brasil protestos embaladas pelo grito de guerra “Pílula fica, fora Cunha”, levantando o debate a respeito do Projeto de Lei 5.069/13, aprovado no dia 21 de outubro pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). O projeto, que já ficou conhecido como “PL do estupro”, vem causando diversas controvérsias entre os setores mais conservadores da sociedade e os defensores dos direitos humanos, grupos feministas e profissionais da saúde.
A sanção da Lei 12.845/13 pela Presidenta Dilma Rousseff, que dispõe sobre o atendimento integral e obrigatório de pessoas em situação de violência sexual, gerou descontentamento em diversos parlamentares, que desde então se movimentaram para derrubá-la. Consideram-no uma espécie de permissão ao aborto e até mesmo um projeto mundial, financiado pelos Estados Unidos como forma de conter o crescimento da população, conforme descrito no projeto original.
Tentando entender todas as mudanças que estão sendo discutidas, montamos um quadro de como era, como ficou e por que é preocupante o PL do Estupro, a fim de facilitar o acesso a toda a legislação que será alterada.
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As mudanças do PL 5.069, o PL do estupro
O PL 5.069/13 altera vários dispositivos legais que falam sobre a prática do aborto do Brasil, que ainda é proibida, salvo algumas exceções. Veja quais são essas mudanças e por que elas têm sido criticadas:
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Mudanças no Código Penal
Art. 126
Como era:
“Provocar aborto com o consentimento da gestante
Pena – reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.”
Como ficou com o PL 5.069/13:
“Induzimento, instigação ou auxílio ao aborto
Art. 126-A. Induzir ou instigar a gestante a praticar aborto ou ainda lhe prestar qualquer auxílio para que o faça, ressalvadas as hipóteses do art. 128.
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, se o fato não constitui crime mais grave.
- 1º Incorre nas mesmas penas aquele que vende ou entrega, ainda que de forma gratuita, substância ou objeto destinado a provocar o aborto, ressalvadas as hipóteses do art. 128. § 2º Sujeita-se às mesmas penas aquele que orienta ou instrui a gestante sobre como praticar o aborto, ressalvadas as hipóteses do art. 128.
- 3º Se o crime é cometido por agente de serviço público de saúde ou por quem exerce a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro:
Pena – detenção, de um a três anos, se o fato não constitui crime mais grave.
- 4º As penas aumentam-se de um terço se é menor de dezoito anos a gestante a que se induziu ou instigou à prática de aborto ou que recebeu instrução, orientação ou qualquer auxílio para praticá-lo.”(NR)
Críticas: Antes, apenas a gestante e quem realizasse o procedimento nela é que seriam punidos com pena de prisão. Quem a auxiliou de alguma forma, prestando informações, dando referências de clínicas ou métodos abortivos, respondia apenas a uma contravenção penal, sujeito a multa.
Com a nova redação, todos que participarem, direta ou indiretamente poderão ser presos. Ou seja, se você indicar um chá abortivo, falar de alguma clínica (mesmo que não leve a gestante até lá) ou qualquer outra coisa parecida, você responderá por instigação ao crime de aborto. Caso alguma amiga sua seja estuprada e você informá-la a respeito da possibilidade do aborto, também poderá ser presa, por que a redação não é clara a respeito do que eles consideram “instigar”.
Art. 128
Como era:
“Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”
Como ficou com o PL 5.069/13:
“Art. 128 – ………………..
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro, constatado em exame de corpo de delito e comunicado à autoridade policial, e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” (NR)
Críticas: Talvez essa seja a mudança mais polêmica de todas. Antes, qualquer mulher estuprada teria direito ao aborto, bastava informar a violência ao médico. Agora, ela apenas poderá realizar o procedimento sem risco de ser presa, se realizar o boletim de ocorrência e se submeter ao exame de corpo de delito antes para comprovar o estupro.
É preocupante porque esse é um dos crimes mais subnotificados do mundo (e não apenas no Brasil). A maioria das mulheres tem vergonha ou medo de denunciarem o abuso, muitas vezes porque o agressor é alguém próximo delas, como namorado ou familiar. Foram cerca de 47 mil estupros registrados no último ano pela polícia, no entanto, a estimativa é que o número real seja em torno de 150 mil mulheres violentadas por ano.
Caso a vítima não realize o exame, ela e quem mais ajudá-la poderá ser presa. Além disso, a mudança no conceito de violência sexual (que veremos abaixo), também dificultará o acesso das mulheres aos procedimentos abortivos.
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3) Art. 278 – Outras substâncias nocivas à saúde pública
Como era: Fabricar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender ou, de qualquer forma, entregar a consumo coisa ou substância nociva à saúde, ainda que não destinada à alimentação ou a fim medicinal:
Pena – detenção, de um a três anos, e multa.
Modalidade culposa
Parágrafo único – Se o crime é culposo:
Pena – detenção, de dois meses a um ano
Como ficou com o PL 5.069/13:
“Art. 3º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal –, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 278-A e denominação do crime ali tipificado: ‘Anúncio de meio abortivo’.”
Art. 278-A. Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto, ressalvadas as hipóteses do art. 128: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, se o fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. Se o crime é cometido por agente de serviço público de saúde ou por quem exerce a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro: Pena – detenção, de um a três anos, se o fato não constitui crime mais grave.” (NR)
Críticas: esse também é um tópico importante. Foi divulgado em muitos meios que a pílula do dia seguinte seria proibida por ser um método abortivo. No entanto, não é exatamente dela que esse artigo fala. Há sim, algumas pessoas que consideram a pílula, assim como outros meios contraceptivos, como por exemplo, o DIU, abortivos. Mas, para a grande maioria ele é apenas uma forma de evitar a gravidez indesejada, não sendo abortivo. Por isso, ela não foi proibida expressamente, embora saibamos que em termos de lei, se elas não forem bastante claras, abre-se espaço para muitas interpretações que nem sempre estão em consonância com o espírito legislativo.
Mudanças na Lei
Essa lei dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Veja as principais mudanças:
1) Art. 1º
Como era: Os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social.
Como ficou com o PL 5.069/13:
Art. 1º Os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial e multidisciplinar, visando o tratamento das lesões físicas e dos transtornos psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social.
Críticas: Temos que ter muito cuidado ao analisar uma lei, uma vez que um artigo fora de contexto pode não representar o que o conjunto legislativo pretende dizer. Aqui, a mudança no artigo parece inofensiva, no entanto, ele suprime o atendimento integral às vítimas de estupro, justamente porque se, elas não realizarem o boletim de ocorrência e o exame de corpo de delito, não poderão realizar o procedimento de aborto.
2) Art. 2º
Como era: “Considera-se violência sexual, para os efeitos desta Lei, qualquer forma de atividade sexual não consentida”
Como ficou com o PL 5.069/13:
Considera-se violência sexual, para os efeitos desta Lei, as práticas descritas como típicas no Título VI da Parte Especial do Código Penal (Crimes contra a Liberdade Sexual), Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, em que resultam danos físicos e psicológicos.”
Críticas: Esse é um ponto bastante debatido. As pessoas contrárias ao projeto de lei dizem que, com a mudança da redação, o conceito de violência sexual será suprimido, uma vez que apenas a violência que trouxer danos físicos e psicológicos serão agraciados pela lei.
De fato, se não houvesse essa menção no projeto, pouca coisa mudaria, uma vez que o Código Penal editou em 2009 a ampliação do que se considera estupro que antes apenas se limitava a falar sobre “conjunção carnal não consentida”, porém, ao exigir a comprovação dos danos o projeto de lei tende a diminuir o alcance da violência sexual. Vamos supor que alguém se aproveite de uma mulher bêbada na balada, que mesmo não consentindo com o ato não consiga resistir por estar fisicamente muito mais frágil do que o normal (em comparação ao um homem). Ela terá dificuldades para comprovar num exame de corpo de delito a agressão e mais ainda, os danos psicológicos, logo, não se encaixará no novo conceito de violência sexual.
Outro caso semelhante é o da mulher violentada que demora a realizar o exame por que, naturalmente, ela está abalada e até o momento não se tem notícia de gravidez. Quanto mais tempo ela demora, menos chance ela tem de comprovar a agressão num exame, logo, também estará desprotegida pela Lei.
3) Art. 3º
Como era:
O atendimento imediato, obrigatório em todos os hospitais integrantes da rede do SUS, compreende os seguintes serviços:
III – facilitação do registro da ocorrência e encaminhamento ao órgão de medicina legal e às delegacias especializadas com informações que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da violência sexual;
IV – profilaxia da gravidez
Como ficou com o PL 5.069/13:
III – encaminhamento da vítima, após o atendimento previsto no art. 1º, para o registro de ocorrência na delegacia especializada e, não existindo, à delegacia de polícia mais próxima visando a coleta de informações e provas que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da violência sexual;
IV – Procedimento ou medicação, não abortivos, com eficiência precoce para prevenir gravidez resultante de estupro;
Ainda foi acrescentado:
4º Nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo. (NR)
Críticas: Mais um artigo que dificulta o acesso da vítima aos hospitais públicos, suprimindo a “facilitação de registro de ocorrência” e retirando o termo “profilaxia da gravidez” para métodos não abortivos. E, por fim, a possibilidade do médico se recusar a realizar o procedimento abortivo ou que ele considere abortivo, colocando mais uma vez, a vítima em risco.
Mudanças no Decreto-Lei nº 3.688/1941 – Lei das contravenções penais
3) Art. 20
Como era:
“Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto.
Pena – multa de hum mil cruzeiros a dez mil cruzeiros.”
Como ficou com o PL 5.069/13: o artigo 20 foi revogado.
Crítica: Falamos lá em cima sobre “instigar” o aborto.
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