O Nordeste é uma região de contrastes—rica em cultura, mas também marcada por profundas desigualdades. Entender essas desigualdades é o primeiro passo para elaborar políticas públicas eficazes e garantir um desenvolvimento mais justo e equilibrado para os nordestinos e, consequentemente, para os brasileiros.
Ao longo deste artigo da Politize!, vamos explorar desde as raízes históricas até as atuais políticas públicas que buscam reduzir essas diferenças na segunda região mais populosa do Brasil.
História e formação da sociedade nordestina
Período colonial
Antes da chegada dos europeus, a região era habitada por diversas aldeias indígenas, como os Tupinambás, os Potiguaras e os Tabajaras. Com a vinda dos portugueses, no século XVI, o Nordeste se tornou a primeira área de colonização do país, fundando cidades como Salvador, em 1549, que se tornou a primeira capital do Brasil colonial.
A economia nordestina foi, inicialmente, impulsionada pela produção de açúcar. O surgimento dos engenhos de cana-de-açúcar trouxe um intenso fluxo de escravizados africanos para a região. Essa base econômica e o uso extensivo de mão-de-obra escrava resultaram em uma sociedade profundamente desigual desde o princípio.
Após a abolição da escravatura, em 1888, a região enfrentou diversos desafios, incluindo secas severas e crises econômicas, que contribuíram para a manutenção das desigualdades socioeconômicas.
Inclusive, você sabia que o Ceará, no Nordeste, foi o primeiro lugar do Brasil a abolir a escravidão? Sim, em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. Mas por que o Ceará? De acordo com o historiador Renato Pinto Venancio, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1872, as pessoas escravizadas eram apenas 4% da população cearense, porque a maioria delas havia sido vendida para as regiões cafeeiras de São Paulo.
Ou seja, no início da década de 1880, a classe dominante local não dependia mais economicamente da mão de obra escrava. Um caso excepcional que não se repetiu em nenhuma outra província do Império.
No entanto, apesar de ter sido pioneiro na abolição, o Ceará e o restante do Nordeste continuaram a enfrentar desigualdades profundas. A falta de políticas de inclusão para os ex-escravizados manteve a estrutura social marcada por disparidades econômicas e exclusão social, principalmente nas áreas rurais.
Durante o século XX, houve tentativas de modernizar a economia nordestina, especialmente através da industrialização e da criação de polos petroquímicos e têxteis. No entanto, essas iniciativas não foram suficientes para reduzir as disparidades sociais.
Muito antes da presença dos colonizadores europeus na Bahia, o Nordeste brasileiro era habitado pelas populações indígenas, que constituem a base da cultura da região. Nesse período, antes do século XV, centenas de etnias indígenas apresentavam manifestações culturais muito individuais, refletindo numa diversidade cultural do Brasil pré-colonial.
Influências culturais e sociais
A cultura do Nordeste é formada por manifestações introduzidas na região pelas populações indígenas, pelos africanos, por colonizadores e imigrantes europeus. Desde festas e danças típicas, como o São João, a Festa de Iemanjá e o frevo, até a culinária, com o baião de dois e o bolo de rolo.
O artesanato também é uma atividade de grande importância cultural e econômica para uma ampla parcela da população nordestina, em especial para aqueles que vivem e fazem parte de comunidades tradicionais, como quilombolas, indígenas e ribeirinhos. Ainda que semelhantes, os métodos de produção variam em cada estado.
A cultura do Nordeste é a expressão da identidade da população de mais de 54 milhões de pessoas que vivem nessa região, o que representa quase um terço dos habitantes do Brasil. Dessa forma, a cultura nordestina contribui com a diversidade cultural que é característica do território nacional, enriquecendo nossos Muitos Brasis.
A demografia do Nordeste do Brasil
O Nordeste é a segunda região mais populosa do país, abrigando cerca de 54 milhões de pessoas, segundo o Censo do IBGE de 2022. Lembrando que a população nordestina é resultado de um processo histórico de colonização, miscigenação e migração.
Conforme Érico Veras, professor do Departamento de Contabilidade da Faculdade de Economia, Administração, Atuária e Contabilidade (FEAAC) da Universidade Federal do Ceará (UFC), o alto número populacional em território nordestino influencia consideravelmente no cálculo de contribuição para a pobreza. Ele explica:
“Quando se fala de contribuição para a pobreza, deve-se ver a pobreza no Brasil como um todo, e analisar onde se tem mais pobreza. O Nordeste é uma região pobre e densa. O Norte é uma região pobre, mas não é uma região densa. A densidade demográfica da região Norte é bem menor que a da região Nordeste. Então, acaba que há uma concentração maior de pobres no Nordeste”.
A região Nordeste é formada por nove estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Cada um deles possui dinâmicas econômicas próprias, fortes e que atuam diretamente na composição da economia brasileira.
O interior do Nordeste também é formado por cidades com desenvolvimento industrial, com serviços de qualidade e comércios que abrangem outras regiões do Brasil. Entre elas, se destacam: Agreste (AL), Cariri (CE), Camaçari (BA), Campina Grande (PB), Feira de Santana (BA), Imperatriz (MA), Petrolina (PE), Juazeiro (BA) e Vitória da Conquista (BA).
Origens e formação da população nordestina
Origens e formação da população nordestina. Imagem: Marcelo Casal Jr./Agência Brasil.
A formação da população nordestina é uma mistura de indígenas, europeus (principalmente portugueses) e africanos. Como cantou Chico Science em “Etnia”:
“Somos todos juntos uma miscigenação e não podemos fugir da nossa etnia. Índios, brancos, negros e mestiços, nada de errado em seus princípios. O seu e o meu são iguais.”.
Esse caldeirão cultural resultou em uma rica miscigenação, que é uma característica marcante da região. Ao longo dos séculos, o Nordeste também recebeu migrantes de outras partes do Brasil e do mundo, contribuindo ainda mais para sua diversidade étnica e cultural.
Segundo dados do Censo 2022 do IBGE, a região Nordeste é a segunda com maior número de população indígena (cerca de 529 mil pessoas indígenas), ficando atrás apenas da região Norte (cerca de 753 mil).
Composição da população nordestina
O Censo 2022 do IBGE mostra que a composição da população nordestina, com 54.658.515 pessoas, é bem diversa:
- Raça: predomina a população parda (59,6%), seguida pela população branca (26,7%) e preta (13%). Isso significa que para cada 10 nordestinos, cerca de seis se identificam como pardos;
- Gênero: a distribuição entre homens e mulheres é relativamente equilibrada, com uma leve predominância feminina (51,67%). Conforme o Censo de 2022, as mulheres são maioria em todas as regiões;
- Idade: a região possui uma população jovem, com uma média de idade de 33 anos. Ou seja, a população do Nordeste é mais jovem que a do Brasil, que tem cerca de 35 anos;
- Urbano/Rural: a média de domicílios urbanos no Nordeste é de 87,1%, enquanto a de domicílios rurais é de 12,9%. Vale ressaltar que a porcentagem de domicílios urbanos e rurais varia entre os estados nordestinos;
- Religião: os dados sobre religião do Censo de 2022 ainda não foram divulgados (até junho de 2024). Então, mantêm-se as informações do Censo de 2010, onde o catolicismo (72,2%) é a religião predominante, seguida pelos evangélicos (24,6%) e pelas pessoas sem religião (8,4%). É importante destacar que esses números podem ter mudado significativamente nos últimos 12 anos, devido ao crescimento das igrejas evangélicas e ao aumento da população sem religião no Brasil.
Panorama das desigualdades no Nordeste do Brasil
Histórico das desigualdades
A renda média no Nordeste é uma das mais baixas do país. Segundo dados do IBGE, o rendimento médio domiciliar per capita é de aproximadamente R$ 985, significativamente abaixo da média nacional.
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) também é o mais baixo entre as regiões brasileiras, com um valor médio de 0,663, comparado à média nacional de 0,761. Somado a isso, no 1º trimestre de 2024, o Nordeste teve a maior taxa de desocupação (11,1%) em relação às demais regiões e, inclusive, à nacional (7,9%).
Também é importante pontuar que o recebimento de benefícios de programas sociais, como Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou seguro-desemprego, não está diretamente relacionado à ocupação ou desocupação.
Por exemplo, beneficiários do seguro-desemprego podem trabalhar informalmente e serem classificados como ocupados, ou não estarem procurando trabalho e, assim, serem classificados como fora da força de trabalho.
Dados e estatísticas atuais
A economia do Nordeste ainda enfrenta grandes desafios. A renda média da população é inferior à de outras regiões do Brasil, e muitos nordestinos dependem da agricultura de subsistência e do trabalho informal.
O índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, é particularmente alto no Nordeste. Um valor mais próximo de zero indica menor desigualdade, enquanto valores próximos de um refletem maior concentração de renda.
Medida por esse índice, Nordeste (0,517) continua sendo a região mais desigual do país, em contraste com a região Sul (0,458), que é a menos desigual
De acordo com o IBGE, programas sociais reduzem a extrema pobreza em cerca de 80%. Sem esses benefícios, a taxa de extrema pobreza aumentaria dos atuais 5,9% para 10,6% e a proporção de pessoas vivendo em pobreza aumentaria em 12%.
No Nordeste, os 10% mais pobres tiveram um aumento de renda de 73%, liderando entre as grandes regiões. O desafio é continuar com esse progresso em condições normais, pós-pandemia.
Impactos das desigualdades na sociedade nordestina
A economia nordestina ainda depende fortemente do setor primário, incluindo agricultura e extrativismo. Essa dependência limita o crescimento econômico e a diversificação da economia, perpetuando a pobreza e a desigualdade, gerando impactos em áreas como educação, saúde e infraestrutura, por exemplo.
Efeitos na educação
Historicamente, a educação é uma das áreas mais afetadas pela desigualdade no Nordeste. De acordo com dados do IBGE, das cinco regiões, ela é a última do ranking na taxa de alfabetização (85,79%). A região apresenta os maiores índices de analfabetismo (14,21%) do Brasil, especialmente entre idosos a partir de 80 anos (47,8%).
Contudo, o Ceará se destaca com o Índice de Oportunidades da Educação Brasileira (Ioeb) mais alto, junto a São Paulo. Os dois apresentam nota 5,5. Ararendá, cidade cearense localizada no sertão de Cratéus, com cerca de 10 mil habitantes, aparece com a nota 7,3, a melhor entre todos os municípios brasileiros.
O estado superou a média nacional e tem o melhor índice de alfabetização de crianças do Brasil, com 85%. Até 2030, a meta de todos os estados brasileiros é alfabetizar pelo menos 80% das crianças da rede pública na idade certa. Aqui, o Ceará é o único com a meta já batida. Em nove cidades (Altaneira, Catunda, Coreaú, Forquilha, Milhã, Nova Olinda, Piquet Carneiro, Potiretama e Senador Pompeu), 100% das crianças matriculadas estavam alfabetizadas.
Efeitos na saúde
A saúde pública no Nordeste enfrenta sérios problemas, com acesso limitado a serviços médicos e infraestrutura inadequada.
Muitos hospitais e postos de saúde carecem de recursos básicos, como medicamentos e equipamentos médicos, além da falta profissionais da saúde.
Além disso, populações rurais e comunidades indígenas enfrentam maiores dificuldades para acessar serviços de saúde, o que resulta em piores indicadores para esses grupos. Ainda, crianças e idosos são as maiores vítimas da falta de saneamento. Em 2000, o Nordeste tinha a maior taxa de mortalidade (41,2); em 2022, o posto foi ocupado pela região Norte (19,7).
O Nordeste também está em primeiro lugar na taxa de mortalidade atribuída a fontes de água inseguras, saneamento inseguro e falta de higiene, com 9,8% (a taxa nacional é 7,2%).
Efeitos na infraestrutura
As desigualdades socioeconômicas no Nordeste do Brasil têm diferentes impactos na infraestrutura da região. Esses efeitos se manifestam em áreas como educação, saúde, transporte, saneamento básico, e acesso à tecnologia e resultam em um ciclo vicioso de pobreza e exclusão social, já que a falta de investimentos perpetua problemas existentes.
Nesse contexto, o Nordeste será a segunda região que mais receberá investimentos do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nos próximos anos, totalizando R$ 700 bilhões.
Os recursos serão direcionados para obras prioritárias para a região. Isso inclui a infraestrutura de modais de transporte, como a conclusão de duplicações em rodovias federais; segurança hídrica; e recursos para o programa de moradias populares Minha Casa, Minha Vida.
Outras perspectivas sobre o Nordeste
Contrariando a hipótese de Kuznets
A hipótese de Kuznets, proposta pelo economista Simon Kuznets na década de 1950, sugere que, à medida que a economia se desenvolve e a renda per capita aumenta, a desigualdade de renda tende a aumentar inicialmente, e só depois diminuir, em uma curva em forma de “U invertido”.
Contrariando essa hipótese de Kuznets, os resultados de uma pesquisa, realizada em 2020, apontam para uma tendência de aumento da concentração de renda à medida que a renda per capita cresce. Ou seja, a desigualdade parece se expandir no longo prazo, e não diminuir.
Essa análise mais crítica e contextualizada dos padrões de desigualdade e crescimento econômico no Nordeste brasileiro é importante para compreender melhor a realidade específica da região e, com isso, informar políticas públicas mais eficazes.
O surgimento do termo Nordeste
Durval Muniz de Albuquerque Júnior, historiador brasileiro, explora a ideia de que o Nordeste não é apenas uma região geográfica delimitada por fronteiras naturais ou políticas, mas uma construção histórica, cultural e social.
Ele diz que o termo “Nordeste” surgiu em 1891, quando ainda era usado apenas como campo geográfico. Só nos anos 1920, intelectuais, como Gilberto Freyre, começaram a trabalhar melhor o termo, dando sentido e significado a ele.
Naquela época, o Brasil ainda era dividido em Norte e Sul. Com o passar do tempo, a noção de Nordeste foi moldada em grande parte no campo das artes e da mídia, que por muitos anos retratou essa região e a sua população de forma preconceituosa e caricata.
A região começou a ser caracterizada por determinadas imagens e estereótipos, como a seca, a pobreza e o coronelismo. Elites políticas e intelectuais do Sudeste, por exemplo, usaram a ideia de um Nordeste pobre e atrasado para justificar intervenções políticas e econômicas na região.
Isso ajudou a criar uma distinção entre o “moderno” Sudeste e o “atrasado” Nordeste.
A identidade nordestina foi sendo reforçada por meio da literatura, música, cinema e outras formas de expressão cultural. Autores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado contribuíram para a construção dessa identidade regional através de suas obras, que frequentemente destacavam temas relacionados à seca, à miséria e à resistência.
Com sua abordagem crítica e desconstrutiva, Durval propõe que se perceba o Nordeste como uma construção histórica sujeita a mudanças e reinterpretações. Ele busca desnaturalizar as narrativas que formaram o Nordeste, mostrando como elas foram construídas e para quais fins serviram.
As desigualdades no Nordeste refletem séculos de história, cultura e desafios econômicos. Comente: qual é a sua percepção sobre a região?
Referências:
- Budejo – A invenção do Nordeste
- Ceará supera média nacional e tem melhor índice de alfabetização de crianças do Brasil
- Ceará tem o 5º maior aumento na alfabetização em 12 anos, mas segue com 14% da população analfabeta
- Como o Ceará se tornou o primeiro lugar do Brasil a abolir a escravidão, quatro anos antes da Lei Áurea
- Cultura do Nordeste
- Desemprego IBGE
- Desenrola – O que é o Nordeste pra você?
- Desigualdade permanece em mínima histórica sob efeito do Bolsa Família, diz IBGE
- Desigualdade no Brasil e no Nordeste
- Diário do Nordeste – Nordeste, sertão: reservas de imaginação e de exotismo
- GEPHOM – Durval Muniz na EACH: A Construção da ideia de Nordeste
- IBGE divulga estudo sobre indicadores ODS e G20, nova versão do Atlas Escolar Geográfico e Relatório de Gestão 2023
- Mulheres são maioria em todas as regiões do Brasil, aponta Censo 2022 do IBGE
- Nordeste receberá investimentos de R$ 700 bilhões do Novo PAC; veja obras por estado
- Nove cidades do Ceará alcançaram 100% das crianças alfabetizadas em 2023, aponta MEC; confira lista
- Panorama do Censo 2022 IBGE
- Pobreza cai para 31,6% da população em 2022, após alcançar 36,7% em 2021
- Região Nordeste possui quase metade de toda a pobreza no Brasil, segundo IBGE
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- Só tem seca no nordeste? Efeitos das mudanças climáticas no mundo
- Um ensaio sobre a desigualdade e pobreza no Nordeste brasileiro à luz da hipótese de Kuznets