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Com a piora da crise econômica em 2016, ressurgiu uma questão muito importante para o equilíbrio das contas públicas brasileiras – e consequentemente, para toda a economia do país. Estamos falando das dívidas que os estados brasileiros possuem com a União. Pode até parecer estranha essa situação, afinal os governos federal e estaduais fazem parte do mesmo Estado brasileiro, mas ela é real. Como é possível os estados se endividarem com a União? Vamos descomplicar essa questão para você!
O Brasil é uma federação. O que isso significa?
O Brasil é um país bem grande, você concorda? Somos o quinto país do mundo em território e também em população. Como administrar um país tão vasto e diverso? A solução que adotamos desde a proclamação da república é descentralizar em parte os poderes políticos da nação. Foi assim que surgiram os estados federativos (hoje são 26), os municípios (mais de 5 mil) e finalmente o Distrito Federal (que tem características tanto de estado, quanto de município). Todos esses entes políticos, além da União, compõem a federação brasileira. Em teoria, a grande vantagem de uma federação é que ela é capaz de aproximar o poder político dos cidadãos. Assim, as grandes decisões não ficam todas nas mãos apenas de uma pessoa ou de um único grupo de pessoas. O poder é descentralizado.
Os entes federativos possuem autonomia fiscal
Como parte da federação brasileira, os entes federativos possuem autonomia em algumas áreas importantes. Uma dessas áreas, que tem tudo a ver com a questão da dívida dos estados, é a autonomia fiscal. Isso significa que cada unidade federativa tem independência para cuidar de suas próprias finanças, determinando como vai arrecadar e gastar seus recursos. Essa situação também é chamada de federalismo fiscal, já que na prática cada ente político tem seu próprio orçamento. Estados e municípios possuem inclusive suas próprias fontes de receita – ou seja, seus próprios tributos. Vamos ver alguns exemplos de impostos cobrados por cada ente federativo?
A União cobra:
- Imposto de Renda (IR);
- Imposto de Exportação (IE);
- Imposto de Importação
- Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI);
- Imposto sobre Operações Financeiras (IOF);
- Imposto sobre Propriedade Territorial Rural (ITR);
- Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF; não regulamentado).
Já os Estados recolhem:
- Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS);
- Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA);
- Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).
Finalmente, os Municípios cobram:
- Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS);
- Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU);
- Imposto sobre Transmissão de Bens e Imóveis Inter Vivos (ITBI).
Estados e municípios também podem contrair dívidas com instituições financeiras nacionais e internacionais, públicas ou privadas. Por fim, cabe mencionar as transferências constitucionais. Como a maior parte dos recursos do Estado brasileiro é arrecadada pela União, o pacto federativo brasileiro prevê mecanismos de repasse de verbas da União para os Estados e Municípios, para ajudá-los a cumprir suas próprias obrigações, como gastos com educação e saúde. Alguns exemplos dessas transferências são o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), o Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Qual é o problema do federalismo fiscal no Brasil?
Legal essa coisa de federalismo fiscal, não é mesmo? Afinal, isso significa que o governo do seu estado e a prefeitura do seu município têm em mãos recursos e podem alocá-los da melhor maneira possível, afinal eles teoricamente possuem mais conhecimento da realidade de sua localidade do que o Governo Federal teria. Certamente, essa é uma ideia interessante e que já inspirou teorias econômicas de que a descentralização fiscal gera mais eficiência no gasto público.
O problema é que, pelo menos no Brasil, o federalismo fiscal nem sempre dá certo. A falta de responsabilidade de governadores com a questão fiscal levou muitos estados a se endividar absurdamente já nas primeiras décadas do século XX, época em que o endividamento não era muito controlado. Era corriqueiro estados contraírem empréstimos em bancos internacionais e depois desviar os recursos para outros fins que não aqueles acordados. O Governo Federal salvou muitas vezes esses estados, assumindo suas dívidas.
Em outras situações, as políticas do Governo Federal induziram os estados a se endividarem em um nível pouco saudável. Nos anos 1970, na ditadura militar, os estados brasileiros tinham poucas fontes de receita, já que o Governo Federal centralizava bastante a arrecadação de tributos. Nesse contexto, a dívida com instituições financeiras externas foi uma das principais saídas para que esses entes angariassem recursos. Com a piora das condições econômicas do Brasil nos anos 1980, que levou o país a pedir empréstimo para o Fundo Monetário Internacional, os governos estaduais também se viram em apuros em suas finanças. Foi então que começaram a se endividar com bancos públicos brasileiros e também com a própria União – e foram até incentivados a fazer isso. Além disso, naquele tempo os estados também tinham bancos públicos próprios e podiam se financiar emitindo títulos.
O endividamento com a União triplicou entre 1983 e 1993, o que na época já correspondia a 40% da dívida pública brasileira, o que já era um alerta. Com o plano Real, em 1994, veio o controle da inflação, o que prejudicou definitivamente as receitas dos estados. Esse foi o ponto em que os estados realmente quebraram. Nesse momento a União passou a intervir na situação fiscal da federação: assumiu as dívidas estaduais, tornando-se credora dos estados, e refinanciou o valor que eles deviam.
O acordo de refinanciamento, feito em 1997, determinou que os estados pagariam sua dívida em um prazo de 30 anos. O valor seria reajustado todos os anos de acordo com uma taxa pre-fixada (6% a 9%) somada ao IGP-DI (Índice Geral de Preços, medido pela Fundação Getúlio Vargas). Além disso, os bancos estaduais foram privatizados e os estados ficaram proibidos de emitir títulos de dívida. No ano 2000, também foi criada a Lei de Responsabilidade Fiscal, que aumenta o rigor em relação à gestão do dinheiro público.
E agora, o que aconteceu com a dívida estadual?
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Não é de hoje que o acordo de refinanciamento feito em 1997 com o Governo Federal gera descontentamento. Já faz alguns anos que governadores reclamam das condições impostas no acordo e pedem que elas sejam revistas. O que em 1997 parecia ser um bom negócio, hoje tornou o pagamento da dívida uma tarefa ingrata. Isso já levou a uma mudança importante, concretizada em 2016: o indexador da dívida, que antes era o IGP-DI mais uma taxa anual, passou a ser o IPCA ou a Selic (o que for menor) mais uma taxa de 4%.
Essa medida era requisitada por governos estaduais porque o IGP-DI tornou-se um índice “injusto”. Em 1997, ele ainda era bem menor do que a taxa de juros Selic, que na época passava até dos 30%, e menor do que o IPCA. Por isso, ele foi escolhido para corrigir o valor total devido pelos estados anualmente. Quase 20 anos mais tarde, porém, a situação se inverteu: a inflação encontra-se em um nível relativamente alto, enquanto a Selic, mesmo em um nível alto para os padrões dos últimos anos (14,25% ao ano) ainda está comparativamente baixa com os níveis dos anos 1990. Já o IPCA acumulado desde 97 também é muito menor do que o IGP-DI do mesmo período.
Mas trocar o índice que ajusta a dívida não foi o suficiente. Com o agravamento da crise econômica, os estados estão vivendo muitos problemas fiscais, assim como o Governo Federal, tornando ainda mais improvável que eles consigam honrar suas dívidas. Os motivos para que o problema se agravasse são: algumas medidas do Governo Federal que prejudicaram a arrecadação dos estados; e também a falta de um ajuste fiscal mais rigoroso por parte dos próprios estados.
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil / Fotos Públicas
O aumento da dívida levou os governadores a pedir mudanças drásticas, como a cobrança de juros simples em vez de juros compostos. Parece uma mudança banal, mas isso significaria que a União deixaria de arrecadar mais ou menos R$ 300 bilhões na próxima década. É muito dinheiro! Isso faria a dívida pública subir ainda mais, piorando de vez a nossa situação econômica. Alguns estados chegaram a conseguir no STF o direito de pagar apenas juros simples.
O Governo Federal, então, passou a negociar uma medida de emergência, que pudesse aliviar a situação no curto prazo. O governo Dilma ofereceu aumentar o prazo de pagamento por mais 20 anos e mudar o indexador. Mas apenas em junho de 2016, no governo Temer, a questão foi “resolvida” (provisoriamente). Os estados ficarão sem pagar a dívida por seis meses, e terão bons descontos quando retomarem os pagamentos das parcelas, até julho de 2018. Com essas condições, o Governo Federal deixará de arrecadar R$ 50 bilhões neste ano. Em contrapartida, os estados serão incluídos na PEC que impõe um teto para os gastos públicos.
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