Manifestação cultural ou prática de crueldade? Essa foi a pergunta que muitos se fizeram depois de o Senado Federal aprovar um Projeto de Emenda à Constituição (PEC) que questiona uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional a prática da vaquejada.
Segundo a doutrina e a jurisprudência, nenhum direito é absoluto. Por isso, de tempos em tempos, principalmente com as mudanças na sociedade, são comuns os embates entre normas e princípios que parecem antagônicos entre si. Esse é o caso da vaquejada, uma tradicional festa cultural nordestina, em que vaqueiros montados tentam derrubar o boi puxando-o pelo rabo. Quem deixar o animal caído com as quatro patas para cima marca pontos. A festa remonta aos séculos XVI e XVII e movimenta muito dinheiro, com importância econômica para vários estados do nordeste.
Por outro lado, o direito dos animais vem ganhando cada vez mais força e representação. O filósofo australiano Peter Singer foi um dos primeiros a levantar a bandeira pelo direito dos animais. Seu livro “A libertação animal” (1975) é referência para todos os ativistas e movimentos que surgiram desde então. O livro denuncia práticas de crueldade aos animais de um ponto de vista ético:
“Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para recusar ter em conta esse sofrimento. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que ao seu sofrimento seja dada tanta consideração como ao sofrimento semelhante – na medida em que é possível estabelecer uma comparação aproximada – de um outro ser qualquer. Se um ser não é capaz de sentir sofrimento, ou de experimentar alegria, não há nada a ter em conta. Assim, o limite da senciência (utilizando este termo como uma forma conveniente, senão estritamente correta, de designar a capacidade de sofrer e/ou, experimentar alegria) é a única fronteira defensável de preocupação relativamente aos interesses dos outros. O estabelecimento deste limite através do recurso a qualquer outra característica, como a inteligência ou a racionalidade, constituiria uma marcação arbitrária.”
A Constituição Federal de 1988 expôs o conflito entre manifestações culturais e direito dos animais em dois dos seus artigos: art. 225, § 1º, VII e art. 215, caput e § 1º.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
E, então, o que devemos fazer? Continuar seguindo as tradições ou se adequar a uma mudança de valores nos novos tempos?
A BATALHA JURÍDICA
A polêmica ganhou mais um caso prático quando o STF analisou no ano passado a Lei 15.299/2013 do Estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado. Por 6 votos a 5, os ministros condenaram a prática pela “crueldade intrínseca” aplicada aos animais (veja a decisão do STF).
Para o relator, o ministro Marco Aurélio Mello, os laudos contidos no processo demonstram consequências nocivas à saúde dos animais: fraturas nas patas e rabo, ruptura de ligamentos e vasos sanguíneos, eventual arrancamento do rabo e comprometimento da medula óssea. Também os cavalos, de acordo com os laudos, sofrem lesões. Assim, para ele, revela-se “intolerável a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada”.
Os defensores da PEC que regulamenta a vaquejada e os rodeios argumentam que além da questão cultural, a vaquejada movimenta R$ 600 milhões por ano, gerando ainda 120 mil empregos diretos. Por isso, apenas um mês depois da votação no Supremo, o Congresso aprovou uma lei que tornava a vaquejada manifestação cultural nacional e patrimônio cultural imaterial. O objetivo é derrubar a decisão do STF. Isso porque o texto da emenda à Constituição diz que “não se consideram cruéis as manifestações culturais previstas no parágrafo 1º do artigo 215 e registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, desde que regulamentadas em lei específica que assegure o bem-estar dos animais”.
Com a emenda, a vaquejada e o rodeio estarão assegurados pela Constituição. Bastará apenas uma regulamentação que ateste o bem-estar dos animais envolvidos.
CULTURA PODE SER CRUEL COM ANIMAIS?
Esse é sem dúvida um grande debate nacional. Uma questão que envolve mais do que um estado e mais do que uma prática popular. Fazem parte da tradição cultural em diversos lugares do Brasil inúmeras manifestações envolvendo animais, algumas já consideradas inaceitáveis, como as rinhas de galo e a farra do boi.
Mas a discussão também é mundial, afinal como não se lembrar das touradas na Espanha? A cultura imaterial de um povo é tão forte que é impossível não associarmos os touros à tradição espanhola. Quando pensamos nesse país, essa é provavelmente a primeira imagem que ainda nos vem à cabeça. Mas mesmo as mais fortes tradições sofrem o baque da mudança de valores ao longo do tempo. É cada vez menor o número de municípios espanhóis que permitem a tourada. E, naqueles em que são permitidos, o número de eventos e, consequentemente, de espectadores não para de cair. Segundo os Ministérios do Interior e da Cultura, da Espanha, em uma década, o número de “corridas de touros” caiu quase 70%.
Enquanto isso, no Brasil, a Lei 13.364, sancionada em 29 de novembro de 2016, elevou não só o rodeio e a vaquejada, mas as respectivas expressões artístico-culturais à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial. Segundo a lei, consideram-se ainda patrimônio cultural imaterial do Brasil as expressões decorrentes, como montarias, provas de laço, apartação, bulldog, provas de rédeas, provas dos três tambores, team penning e work penning, paleteadas e outras provas típicas, como a queima do alho e o concurso do berrante, bem como apresentações folclóricas e de músicas de raiz.
A pergunta que fica é: até que ponto uma tradição com importante valor cultural e econômico deve ser mantida à custa de maus tratos a animais, comprovados em laudos técnicos?
Mudanças não acontecem da noite para o dia. Quando uma tradição envolve importantes aspectos financeiros fica mais difícil ainda. Cabe à sociedade refletir e discutir o tema. Afinal, os vaqueiros não fazem o espetáculo sozinhos. E mais poderoso do que o Judiciário, o Legislativo e o Executivo em criar ou julgar as leis, é o público. É graças a ele que o espetáculo acontece.
VAQUEJADA: ARGUMENTOS CONTRA E A FAVOR
A favor
- Vaquejadas modernas usam protetores de caudas e a caixa de areia na pista é mais alta para que o animal sofra menor impacto na queda;
- Fortalecimento da cultura nacional, além de atração turística que gera emprego e renda;
- Novas regras asseguram o transporte adequado do animal, garantia de água e alimentação, bem como a presença de médico veterinário.
Contra
- Laudos técnicos comprovaram maus-tratos aos animais;
- A vaquejada faz parte de um tipo de turismo contra a corrente mundial dos direitos dos animais. Na Catalunha, Espanha, por exemplo, as touradas são proibidas desde 2011;
- A forma de contenção dos animais antes das provas já os coloca em estresse e não há garantias de que os eventos serão fiscalizados.
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