A série Dados pandêmicos é uma parceria entre Politize! e Instituto Norberto Bobbio. Por meio da criação de infográficos e posterior análise teórica, apresentamos dados produzidos nos últimos dois anos que revelam como a pandemia de Covid-19 impactou – e ainda impacta – a sociedade brasileira como explicitam suas fissuras.
Acompanhe!
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Já se sabia que a emergência sanitária global traria sérias consequências para o desenvolvimento educacional de crianças e adolescentes. Relatório da Unesco, da Unicef e do Banco Mundial mostra que o fechamento de escolas durante a pandemia de Covid-19 atingiu cerca de 1,6 bilhões de crianças em 188 países. ¹
Na média mundial, de fevereiro de 2020 a agosto de 2021, as escolas permaneceram totalmente fechadas por 121 dias letivos e em funcionamento parcial por 103 dias. Contudo, os países de baixa e média renda experienciaram períodos de fechamento escolar quase três vezes maiores do que países de renda alta e estavam menos preparados para se adequar ao ensino remoto.²
Conforme aponta o relatório, o problema não se restringe ao número de dias de fechamento escolar, mas também à ausência de políticas coordenadas de atenção à educação em tempos de crise:
Por exemplo, apesar dos Estados Unidos não terem tido nacionalmente nenhum dia sequer de fechamento total de escolas, os fechamentos parciais de escolas continuaram por mais de 400 dias letivos. (…) Alguns sistemas de educação deram prioridade aos estudantes mais vulneráveis nos planos de reabertura escolar, muitos priorizaram os estudantes mais velhos e os que se preparavam para exames. Na Noruega, as escolas permaneceram abertas para estudantes com deficiências, estudantes cujos pais eram trabalhadores essenciais e estudantes que enfrentavam riscos em casa, tais como a violência. O Uruguai introduziu uma abordagem de reabertura faseada, dando prioridade às comunidades rurais, às populações de estudantes vulneráveis e à primeira infância nas fases iniciais da reabertura.
As evidências mostram ainda que houve uma defasagem de aprendizado generalizada em razão do ensino remoto, especialmente na primeira infância; contudo, uma vez mais, nos países de baixa e média renda e entre as classes mais pobres de cada país, essa perda foi significativamente maior.³
A pandemia parece ter explicitado e acentuado a crise de desigualdade na aprendizagem entre os mais vulneráveis, seja por razões de acesso e disponibilidade ao ensino remoto ou pelo fato de esses grupos terem sido também os mais afetados pela morte de parentes e pessoas próximas, pela perda de renda familiar e pela dificuldade de acesso a bens básicos de sobrevivência e saúde. É o que sugerem também os últimos dados referentes ao Brasil.
Pesquisa publicada em 2022 pela FGV Social, a partir dos dados coletados pelo PNAD–Covid, mostra que a taxa de evasão escolar foi maior entre os estudantes mais novos.4
Na faixa de 5 a 9 anos de idade, a evasão subiu de 1,41% em 2019 para 5,51% no último trimestre de 2020, índice que não se via no Brasil desde 2007. Entre o grupo de 5 anos de idade, a evasão chegou ao pico de 22,4% durante a pandemia.
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O impacto da renda no abandono escolar
Outro recorte trazido pela pesquisa é o de renda. Comparando a realidade escolar das crianças de 6 a 15 anos das classes AB (renda per capita acima de R$2.203,00) e E (renda per capita inferior a R$245,00), os estudantes mais pobres frequentam relativamente menos a escola, uma porcentagem muito maior não recebeu qualquer atividade escolar durante a pandemia e, entre os que receberam atividades, tiveram uma quantidade de dias de dedicação a elas na escola e em casa significativamente menor.5
Nesse sentido, o indicador de tempo para a escola por dia útil para alunos de 6 a 15 anos da classe E ficou em 2 horas e 5 minutos, já para os alunos da classe AB da mesma faixa ficou em 3 horas e 18 minutos.
Constatou-se que a pandemia teve sim um efeito deletério generalizado, sobre alunos ricos e pobres, de escola pública e escola privada. Comparando os dados de 2006 com os de setembro de 2020 sobre o tempo de permanência na escola tanto na faixa de 6 a 15 anos, houve uma significativa redução considerando a população total.
Veja também nosso vídeo no YouTube sobre os direitos das crianças e dos adolescentes
No entanto, é notória a discrepância do impacto da pandemia sobre os mais pobres e alunos do serviço público. Enquanto o tempo de permanência dos alunos de escolas privadas nesta faixa etária caiu de 4h30min para 3h06min, o dos alunos de escola pública caiu de 4h15min para 2h18min e daqueles que recebem o bolsa família, de 4h01min para 2h01min.
As desigualdades de renda parecem ter exercido um papel determinante no acesso à educação durante a pandemia também em razão das condições e infraestruturas necessárias para o ensino remoto.
Pesquisa da Undime e Consed sobre a oferta de atividades educacionais não presenciais, com cerca de 70% das redes municipais de educação do país, mostrou que 83% dos alunos das redes públicas do Brasil vivem em famílias consideradas vulneráveis, isto é, que recebem menos de 1 salário mínimo per capita – sendo que 54,2% recebem menos de meio salário mínimo per capita e 25,4% recebem menos de um quarto de salário mínimo per capita.6
Ainda de acordo com a pesquisa, 79% dos alunos das redes públicas do Brasil têm acesso à internet, mas 46% a acessam apenas por meio do celular. Dois terços dos alunos não têm computador em casa e outro dado importante destacado é que no Brasil apenas 45% das famílias das classes CDE tem acesso a internet de banda larga.
O conjunto desses fatores demonstra uma dificuldade estrutural do país para a garantia mínima de acesso à educação remota por meio digital, principalmente no que tange às populações mais vulneráveis.
Confira o infográfico que preparamos sobre o assunto
Crise educacional e vontade política
Quando se soma a essas dificuldades estruturais o desinteresse por parte do poder público em contornar os desafios impostos, criam-se as condições ideais para a instauração de uma verdadeira crise educacional.
Das 3.978 redes municipais entrevistadas na pesquisa da Undime e Consed, 1.578 declararam que não têm planos para atividades remotas, sendo que destas, 90% são de municípios considerados pequenos. Além disso, ressalta a pesquisa, a maior parte das redes que ainda não têm planos para ensino remoto atendem os alunos mais carentes.
Segundo o portal do governo “monitoramento dos gastos da União com combate à COVID-19”, apenas cerca de 1% dos 740 bilhões de reais gastos com o combate à pandemia até dezembro de 2021 foram destinados ao Ministério da Educação, o que demonstra pouco interesse por parte do Governo Federal em relação à urgência das medidas que precisavam ser tomadas para amenizar os previsíveis efeitos prejudiciais do ensino remoto.
Nesse sentido, cumpre destacar também que não houve uma coordenação e ação nacional para implementação de políticas de ensino à distância por parte do governo federal, seja por iniciativa própria ou em parcerias com os demais entes da federação (estados e municípios).
De acordo com as secretarias municipais de educação, o principal desafio de implantação do ensino remoto são as indefinições sobre normativas durante a pandemia, seguida pela dificuldade dos professores e a falta de equipamentos necessários para alunos/professores.7
E o problema não parece ter sido a falta de recursos, mas sim de vontade política. Como revelou a Folha de São Paulo, o governo federal gastou 26 milhões de reais com a compra de “kits de informática” para escolas de cidades pequenas de Alagoas que sofrem com a falta de infraestruturas elementares como água encanada e sala de aulas, e ademais, sequer têm computadores ou plano de conexão com a internet.8 Como indica a reportagem, a empresa vencedora do contrato é de aliados do presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL).
Claro que havia e há alternativas para, mesmo nas piores condições, com o devido apoio e planejamento, garantir um mínimo acesso à educação por meios remotos. As próprias redes municipais sabem e se utilizam desses recursos.
A pesquisa da Undime e Consed, por exemplo, mostrou que 1.710 redes municipais (43% das que adotam ensino remoto) optaram por usar materiais impressos como parte das estratégias para superar os desafios educacionais durante a crise sanitária.
No plano internacional, várias experiências poderiam ter sido utilizadas como modelos para contornar até mesmo dificuldades estruturais como falta de internet e computadores. Apenas à título de exemplo, a rede pública de televisão – que no Brasil possui ampla cobertura no território nacional – foi utilizada em Portugal como forma de garantir o ensino remoto por meio do programa #EstudoEmCasa, o qual contou com uma aula do próprio presidente português, Marcelo Rebelo.9
Educação cidadã para a defesa da democracia
Em suma, o cenário educacional brasileiro, que já era permeado de desafios complexos antes mesmo da pandemia – como o baixo índice de alfabetização, elevados níveis de abandono e evasão escolar, insegurança alimentar das crianças e adolescentes, desigualdades econômicas, raciais, regionais, de gênero, sexuais e para pessoas com deficiências, além de tantos outros desafios10 –, encontra-se hoje em situação calamitosa, com estudos e especialistas indicando a necessidade urgente do poder público de tomar medidas para a recuperação da defasagem de ensino o mais rápido possível.11
Mas Educação é muito mais do que simplesmente garantir uma quantidade mínima de tempo de permanência na escola, segurança alimentar ou dedicação aos estudos. Como nos lembra Norberto Bobbio, filósofo e jurista italiano, a educação é um dos instrumentos fundamentais das sociedades democráticas na defesa contra regimes autocráticos.
A educação para a cidadania, ou seja, a formação de uma sociedade civil ativa e consciente, é a base para criação e manutenção da Democracia – a qual pode ser resumida pelo exercício do poder público em público.12
O poder, diz Bobbio, possui uma tendência irresistível de esconder-se, de atuar em segredo e velar os arcana imperii (os segredos do império):
À estratégia do poder autocrático pertence não apenas o não-dizer, mas também o dizer em falso: além do silêncio, a mentira. Quando é obrigado a falar, o autocrata pode servir-se da palavra não para manifestar em público as suas próprias reais intenções, mas para escondê-las. Pode fazê-lo tanto mais impunimente quanto mais os súditos não têm à sua disposição os meios necessários para controlar a veracidade daquilo que lhes foi dito.13
Acontece que esta tendência do poder e a concepção política que procurava justificá-la por meio de sua vinculação à vontade divina – a identificação do arcana imperii com o arcana Dei – entram em choque com o iluminismo e sua respectiva defesa do imperativo da razão. Os princípios iluministas de formação do comum (ou do Estado) a partir da livre vontade de indivíduos racionais invertem os pressupostos absolutistas e autocráticos de um povo ignorante e infantilizado a ser tutelado:
A comparação dos súditos com crianças e com doentes fala por si só. As duas imagens mais frequentes nas quais se reconhece o governante autocrático é aquela do pai ou do médico: os súditos não são cidadãos livres e saudáveis. São ou menores de idade que devem ser educados, ou doentes que devem ser curados. Uma vez mais a ocultação de poder encontra sua própria justificação na insuficiência, quando não na completa indignidade, do povo. O povo, ou não deve saber, porque não é capaz de entender, ou deve ser enganado, porque não suporta a luz da verdade.14
Portanto, para Bobbio, a defesa da educação, especialmente em seu sentido mais robusto de educação para a cidadania, não é apenas imprescindível como também corresponde efetivamente à defesa da Democracia.
Por isso mesmo, ela é considerada uma das promessas não cumpridas da democracia, algo que não foi ainda plenamente satisfeito nas sociedades modernas e que demanda um esforço contínuo de (re)produção.
Aos cidadãos conscientes e ativos, isso significa que, para o enfrentamento dos desafios da educação brasileira e, consequentemente, para a defesa de nossa Democracia, há muito trabalho a ser feito.
Referências:
1 Banco Mundial, UNESCO e UNICEF (2021). The State of the Global Education Crisis: A Path to Recovery. Washington D.C., Nova York: The World Bank, UNESCO, and UNICEF. Diponível em: https://www.unicef.org/media/111621/file/%20The%20State%20of%20the%20Global%20Education%20Crisis.pdf%20.pdf, p. 13.
2 Idem, p. 21.
3 Idem, p. 20 e seguintes.
4 NERI, Marcelo e OSORIO, Manuel. Retorno para Escola, Jornada e Pandemia. Rio de Janeiro, 2022. FGV ocial. Diponível em: https://www.cps.fgv.br/cps/bd/docs/FGV_Social_Neri_RetornoParaEscolaJornadaPandemia.pdf
5 Idem, p. 22 e seguintes.
6 Undime e Consed. Desafios das Secretarias Municipais de Educação na oferta de atividades educacionais não presenciais. Disponível em: https://undime.org.br/uploads/documentos/php7UsIEg_5ee8efcba8c7e.pdf
7 Idem, p. 19.
9 https://exame.com/mundo/presidente-de-portugal-da-aula-na-tv-aberta-para-alunos-da-rede-publica/
10 Conferir relatórios do UNICEF disponíveis em: https://www.unicef.org/brazil/media/14026/file/cenario-da-exclusao-escolar-no-brasil.pdf e https://www.unicef.org/brazil/media/12566/file/enfrentamento-da-cultura-do-fracasso-escolar.pdf
11 Conferir, por exemplo: https://www.fmcsv.org.br/pt-BR/biblioteca/impacto-covid-criancas/
12 BOBBIO, N. A democracia e o poder invisível. In: O futuro da democracia.Trad. Marco Aurélio Nogueira. – 13ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
13 BOBBIO, Norberto. Democracia e Conhecimento. In: Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 389.
14 Idem.