Dia desses vi a campanha “We’re the Super Humans” do Channel 4, canal de TV britânico, que decidiu exibir apenas os jogos paralímpicos nas olimpíadas Rio 2016. Além da campanha ser incrível, passando uma mensagem de empoderamento da pessoa com deficiência, que estrelam todas as atividades, da música, a banda, dos esportes radicais, as atividades olímpicas, o que me chamou atenção foram os recursos de acessibilidade.
ACESSIBILIDADE COMO PROTAGONISTA
Ao invés das versões de acessibilidade existirem ‘para cumprir tabela’, elas são protagonistas de suas versões, a audiodescrição é empolgante e divertida.
A VERSÃO EM LIBRAS VALE A PENA VER SÓ PELO PERSONAGEM QUE FAZ A INTERPRETAÇÃO
ENTREVISTA COM SIDNEY ANDRADE
Tenho observado uma movimentação na comunicação pública para trazer esse recurso e até mesmo nas comunidades e grupos do Facebook. Então decidi conversar com o Sidney Andrade, comunicólogo e mestre em literatura que tem militado pela acessibilidade nas mídias digitais e pode trazer a vivência de uma pessoa cega para nós que somos videntes (termo que não era familiarizada ainda, então já adorei a oportunidade!).
Jana Santos: As pessoas cegas acessam as mídias sociais por softwares de acessibilidade conhecidos como leitores de tela. Você poderia contar um pouquinho como funcionam estes softwares? Existe diferença entre eles?
Sidney Andrade: Pessoas cegas utilizam computadores e smarphones por meio de leitores de tela, são softwares que reconhecem o material textual exibido no dispositivo e o vocalizam, por meio de vozes sintetizadas (como aquela do Google Tradutor) na medida de onde minha navegação passa.
Os leitores de tela servem não só pra acessar mídias sociais, eles nos dão acesso a todo o ambiente do sistema operacional, de modo que não apenas posso navegar na internet, como também posso editar e formatar textos, criar planilhas, editar áudio e vídeo (sim, é possível), enfim, de modo geral, uma pessoa cega é capaz, ao dominar as ferramentas, de fazer as mesmas coisas que pessoas videntes fazem, só que, obviamente, ao invés dos olhos, estamos usando os ouvidos para tanto.
Existem diferenças entre leitores de tela porque o leitor tem que ser compatível com o sistema operacional do dispositivo. De modo que existem vários disponíveis para o Windows (como o NVDA, JAWS, etc.), Para Linux (o Orca) e para Mac (Voice Over).
Nos smartphones, a lógica é a mesma, a diferença é que o leitor de tela, nesses dispositivos móveis, já vêm de fábrica e podem ser acessados em qualquer aparelho, nas configurações de acessibilidade, para Android existe o Talk Back e para IOS o leitor de tela é o mesmo dos computadores Apple, o voice Over.
Cada leitor tem suas particularidades, como é de se esperar de softwares diferentes, cabe ao usuário decidir qual se adéqua melhor ao seu gosto, seu bolso ou à sua necessidade de uso, já que escolher o sistema operacional e o leitor de tela são escolhas interdependentes.
Jana Santos: Há um movimento de algumas páginas no Facebook em começarem a trazer acessibilidade para as imagens. Qual sua opinião sobre? Aprova a forma com que tem sido feito?
Sidney Andrade: Eu acho ótimo que isso esteja acontecendo, ainda que aos poucos e como exceção, pois o mais importante na discussão sobre acessibilidade é a promoção da inclusão. O que significa dizer que é muito agradável saber que essas descrições, além de servirem para tornar as imagens acessíveis, elas nos colocam em pé de igualdade no que diz respeito ao consumo de conteúdos, ou seja, a mesma imagem que os seguidores videntes estão usufruindo eu posso usufruir junto, graças à descrição.
Não haver um campo ou grupo específico só para pessoas cegas entrarem, isolando-as do resto da população é o que atrapalharia. De modo que, ainda que as descrições careçam, atualmente, de profissionalismo e rigor, elas servem para esclarecer, de um lado, que existem pessoas cegas usando o Facebook (acredite, isso ainda é um choque pra muita gente) e, por outro lado, espalham a mentalidade de que não se deve esperar uma demanda para que comecemos a pensar em acessibilidade.
Se oferecermos acessibilidade de antemão, a demanda chegará, inevitavelmente. Essa onda de descrições tem promovido um diálogo entre usuários videntes e cegos que é importantíssimo para dissiparmos a mentalidade capacitista que impera na sociedade. Só através dessa aproximação entre pessoas com e sem deficiência, usufruindo juntas dos mesmo espaços, sem segregação, é que conseguiremos, um dia, experimentar uma sociedade sem preconceito e sem exclusão.
Jana Santos: Recentemente houve um grande debate sobre a questão de leitores de tela e a linguagem neutra utilizada pelos movimentos sociais para dar visibilidade a questão do empoderamento de gênero. Qual sua opinião?
Sidney Andrade: Eu acho o tema da neutralidade da linguagem importantíssimo, que não pode ser negligenciado, sob o risco de apagarmos ainda mais uma parcela da população já tão invisibilizada. Dito isto, preciso esclarecer que o modo como tem sido executada a neutralidade de gênero na escrita, na minha opinião, é contraproducente não só pra mim, que uso leitores de tela, como também pra própria galera não binária que precisa de uma linguagem que a contemple. Explico.
Quando escrevem “amigxs”, trocando uma vogal por uma consoante, o fluxo da pronúncia da palavra é quebrado, o que gera um ruído no fluxo da leitura dos leitores de tela; quando usamos “amig@”, trocando a vogal por um caractere que sequer letra é,ou seja, sequer possui som a ele associado, quebramos a palavra e, de novo, a leitura do leitor de tela fica comprometida.
De modo que, sim, essa linguagem atrapalha quem usa leitores de tela. Mas só nesses casos. No entanto, eu também penso em uma pessoa não binária que quer dizer que é “amig@” de alguém, como essa pessoa vai verbalizar isso? Assim, esse tipo de substituição não se aplica na fala, o que significa, do ponto de vista linguístico, que ela não vai se perpetuar, porque o que perpetua um uso da língua é a fala, a escrita é apenas a representação de uma fala já institucionalizada entre os falantes.
De minha parte, considero que há maneiras mais produtivas de neutralizar o gênero na linguagem, seja usando palavras que não possuam gênero ou ambivalentes, seja por meio de uma alteração na grafia das desinências de gênero que não altere a lógica fonética, como trocar “todos” por “todes”. Sei lá, isso são só elucubrações minhas, mas acho que dá pra um usuário de leitor de tela se acostumar mais com trocar A e O por E do que por X e @, além do que será possível oralizar isso na vida real, nas conversas do dia a dia.
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Jana Santos: Observo que cada local que implementa uma política de acessibilidade, utiliza uma hashtag diferente. Qual seria a melhor prática para o uso das hashtags que demarcam esse conteúdo acessível?
Sidney Andrade: Não existe, na minha opinião, uma necessidade de padronizar as tags. Ou melhor dizendo, eu não acho que seja preciso decretar A TAG para todos dominar… hehehe
Tem uma que rola há tempos que eu acho péssima, que é a #pracegover. Se, por um lado, ela esclarece pra quem não sabe do que se trata aquela descrição, por outro lado ela é condescendente e exprime uma interpretação sobre cegueira do ponto de vista de quem não é cego.
Eu não vou ver com a descrição, eu vou ter acesso à imagem por meio da descrição. Não se engane, nenhuma pessoa cega se ilude achando que vê pelas palavras, as palavras não substituem a visão, elas compensam a falta que a visão nos faz.
Assim, gosto mais do jeito divertido de fazer, cada lugar tendo a sua própria, contanto que ela sinalize que ali está um recurso de acessibilidade, que não está ali à toa. Geralmente, usam algum prefixo seguido do termo Acessível, acho isso ótimo, porque traz pro conhecimento geral a discussão sobre acessibilidade, e acessibilidade não se resume a só descrever imagens na internet, é toda uma discussão que engloba uma série de deficiências e de modos de garantir acessos informativos, estruturais, arquitetônicos e até de atitude. Construir uma mentalidade de atitudes acessíveis, pra mim, é mais importante do que ficar perdendo tempo em decretar qual vai ser a tag certa a se usar.
Jana Santos: Tem alguma prática ruim que você gostaria de salientar para que não fosse adotado no uso de conteúdos acessíveis?
Sidney Andrade: No que diz respeito a descrição de imagens e gifs, o pessoal geralmente confunde DESCRIÇÃO com LEGENDA. Acho que esse é o maior problema. Pois uma legenda não descreve, a legenda serve para complementar o sentido da imagem que está sendo vista, tanto é que a maioria dos memes só têm graça porque associam uma imagem a uma legenda que completa o humor ao ser associada.
Descrever é traduzir em palavras aquilo que está sendo visto com os olhos, é transformar em linguagem verbal aquilo que está expresso em linguagem figurativa, inclusive informando as legendas existentes numa imagem. Creio que esse seja o maior problema quanto a isso, coisa que é fácil de lidar, uma vez que você começa a pensar no assunto e cultivar mentalmente o hábito de traduzir imagens em palavras.
O difícil mesmo é criar esse bom hábito. Não raro vejo páginas que se empolgam, começam a oferecer a acessibilidade das imagens, passa uma ou duas semanas, o ânimo vai acabando e tudo volta ao normal inacessível de sempre. Acessibilidade não pode ser pensada como um favor.
É preciso que cada um de nós pense em acessibilidade como uma necessidade básica, porque qualquer pessoa está sujeita a ficar privada de uma capacidade, seja provisória ou permanentemente, e numa sociedade acessível, esta possibilidade não soaria tão fatalista e terrível, como certamente soou para quem acabou de ler isso.
Jana Santos: Você tem um texto bastante interessante no medium sobre boas práticas para acessibilizar os conteúdos, o que diria para uma governo/empresa que quer investir nessa iniciativa?
Sidney Andrade: Propõe-se, hoje, que superemos aquele modo de tratar a deficiência do ponto de vista da medicalização, ultrapassado e nocivo, para adotarmos uma mentalidade de inclusão que, oposta ao assistencialismo, pretende que, na vida diária, nos lugares públicos e no cotidiano das pessoas, tudo seja projetado de forma tal que alguém sem deficiência alguma esteja transitando pelos mesmos locais que pessoas com os mais diversos tipos de deficiência. A chamada universalização do acesso viabiliza a convivência e seria capaz de anular a impressão de que não existem deficientes e, por isso, os espaços não precisam ser adaptados.
Em outras palavras, uma sociedade capacitista subverte a lógica da oferta/demanda em favor de manter seu conformismo confortável. Um dono de restaurante, por exemplo, argumenta que não investe em cardápios em Braille porque não recebe clientes cegos, quando, na verdade, ele precisaria dispor desse material de antemão, para que clientes cegos se sentissem impelidos a frequentar seu estabelecimento. Assim, acabamos por levar a culpa pela própria falta de acessibilidade que nos impede de transitar pela cidade. Este é o perigo do capacitismo: uma vez que não temos condições de frequentar lugares públicos, devido à falta de acessibilidade, é lógico que ninguém vê pessoas com deficiência nesses lugares, o que acaba criando a ilusão de que essas pessoas não existem.
Em suma, o empresário não pode esperar que pessoas com deficiência apareçam para ele ser acessível, se o negócio dele for acessível, pessoas com deficiência vão aparecer.
O meu texto na íntegra, sobre capacitismo.
Comunicação acessível
Para terminar, empresto aqui 4 dicas do próprio Sidney Andrade sobre como deixar as timelines acessíveis para cegos .
- Descreva o que você vê na imagem, não julgue nem opine sobre ela, seja objetivo na sua descrição.
- Quanto mais direto ao ponto, melhor, Diga o suficiente para que a ideia geral seja transmitida.
- Em caso de memes, cujo intuito é, na maioria das vezes, cômico, a descrição também pode ser cômica, contanto que não confunda o leitor. É importante que a ideia principal seja transmitida.
- Sinalize, antes da descrição, com alguma palavra ou expressão que mostre que a seguir a imagem será descrita. Assim, quem não entender ou achar estranho a descrição da imagem logo depois dela aparecer fica avisado de que pessoas cegas também usam a internet e precisam dessa descrição para consumir os conteúdos de imagens. Desse modo, além de ser acessível, sua atitude também será educativa para quem nunca pensou sobre o assunto. Exemplos de termos que podem informar: “descrição da imagem”, “Acessibilidade da imagem”, “Imagem Acessível”, enfim, qualquer expressão que mostre que aquilo não está ali a toa Muita gente usa tags, variando de acordo com a rede social: #TimelineAcessivel, #InstaAcessivel, enfim, o importante é sinalizar para que os desavisados também fiquem sabendo do que se trata.
Nota do Politize!: este texto foi publicado originalmente na página da WeGov.
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