A discriminação de minorias é um fato recorrente no mundo ao longo da história. Assim, medidas para atuar em reparações de desigualdades e desvantagens vem sendo desenvolvidas ao longo do tempo. Neste conteúdo, falaremos sobre uma dessas medidas: as ações afirmativas.
Quer entender sobre o assunto? Leia abaixo!
O que são ações afirmativas?
O ex-Ministro brasileiro Joaquim Barbosa Gomes, conceitua as ações afirmativas da seguinte forma:
“As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fato, de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade” (2001).
Em outras palavras, podemos entendê-las como um conjunto de ações que visam combater e diminuir as desigualdades historicamente acumuladas em nossa sociedade, buscando a partir delas, garantir a igualdade de oportunidade a todos bem como corrigir injustiças provocadas pela discriminação racial, étnica, religiosa ou de gênero.
Qual o objetivo dessas ações?
Para Flávia Piovesan, jurista, advogada, professora e autora brasileira de inúmeras obras voltadas aos Direitos Humanos e ao Direito Internacional, as ações afirmativas representam um poderoso instrumento de inclusão social, porque:
“as ações afirmativas, como políticas compensatórias adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes de um passado de discriminação, cumprem uma finalidade pública decisiva para o projeto democrático: assegurar a diversidade e a pluralidade social. Constituem medidas concretas que viabilizam o direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve moldar-se no respeito à diferença e à diversidade” (2008).
Isso porque as ações afirmativas se baseiam em uma reparação histórica de desigualdades e desvantagens acumuladas e vivenciadas por determinado grupo racial ou étnico.
Essa reparação tem como base medidas de combate a todo tipo de discriminações, sejam elas, étnicas, raciais, religiosas, de gênero, de classe, físicas, de idade ou quaisquer outras.
De maneira geral, essas ações buscam eliminar as desigualdades e segregações a fim de aumentar a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social, no reconhecimento cultural e principalmente situá-las em condições de igualdade de oportunidades na sociedade.
Breve histórico das ações afirmativas
A expressão “ação afirmativa” teve origem nos Estados Unidos, sendo este, o primeiro país a adotar efetivamente esse tipo de política ainda nos anos 60, momento em que os norte-americanos viviam um clima de reivindicações democráticas internas, cuja bandeira central era a igualdade de oportunidades a todos.
Nesse período, o movimento negro surgiu como uma das principais forças atuantes no país. Apoiados por liberais e progressistas, se formou então, uma união em prol da ampla defesa de direitos, eliminação das leis segregacionistas que existiam no país e posturas ativas para a melhoria das condições da população negra estadunidense.
E foi nesse cenário em que se desenvolveram as ideias das ações afirmativas. Tais políticas foram concebidas inicialmente como mecanismos tendentes a solucionar a marginalização social e econômica do negro na sociedade americana.
Mas é de fácil percepção que a discriminação de minorias são um fato recorrente no mundo. Ao longo da história da humanidade, são inúmeros os casos de discriminação étnica contra negros, pardos e índios bem como contra mulheres e pessoas com deficiência.
No cenário internacional, o comportamento discriminatório secular presente nas sociedades fez com que os Estados buscassem medidas para atenuar esse comportamento e, consequentemente, buscar a aplicação da igualdade entre os indivíduos em sociedade, sendo a construção da ideia de direitos humanos essencial a essa tarefa.
A relação entre ações afirmativas e direitos humanos
Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos inovou extraordinariamente a gramática dos direitos humanos ao combinar o valor de liberdade ao valor da igualdade.
Mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção, foi criado um sistema internacional de proteção e valorização da dignidade da pessoa humana e, a partir disso, as primeiras ações afirmativas passaram a existir.
É importante lembrar que essa primeira fase de proteção dos direitos humanos foi profundamente marcada por uma ideia de proteção geral, baseada em uma igualdade formal de que “todos são iguais perante a lei”, principalmente pelo temor da diferença que o nazismo havia levantado, o qual se orientou para um extermínio de milhões de judeus.
Contudo, aos poucos foi verificado que seria insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata.
Assim, em um segundo momento de defesa dos direitos humanos se fez necessário o reconhecimento das particularidades dos indivíduos e, principalmente, da necessidade de conferir a determinados grupos uma proteção especial e individualizada em face de sua própria vulnerabilidade.
Nesse cenário, as populações afrodescendentes, as mulheres, as crianças e demais grupos passaram a ser vistos nas especificidades e peculiaridades de sua condição social e, no sistema internacional, a defesa dos direitos humanos foi fortalecida por vários Tratados e Convenções que consequentemente cederam grandes contribuições as ações afirmativas.
Vejamos alguns exemplos:
- a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial em 1965;
- a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher em 1979;
- o Programa de Ação Mundial Para as Pessoas Deficientes de 1982;
- o Protocolo de San Salvador de 1988.
Conheça também o projeto Equidade, que trata dos Direitos Humanos de diversos grupos sociais!
Os tipos de igualdade sob o olhar jurídico
Como dito anteriormente, em um dos momentos de defesa dos direitos humanos se fez necessário o reconhecimento das peculiaridades, particularidades e vulnerabilidades dos indivíduos.
Na defesa do princípio da igualdade, o conceito jurídico foi sendo marcado por modificações, pois ele é extremamente adaptável ao dinamismo e reivindicações da sociedade.
Assim, a sociedade humana evoluiu de um estágio em que se entendia como sendo natural a desigualdade, passando pela defesa de uma igualdade formal e alcançando posteriormente a igualdade material.
A igualdade formal foi reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” que se preocupava, fundamentalmente, com o tratamento normativo (ou seja, tratamento pela lei) de forma igualitária, que foi crucial para abolição de diversos privilégios.
No entanto, explicamos no tópico anterior que tratar os indivíduos de forma genérica, geral e abstrata se tornou insuficiente. Ao lado do direito à igualdade, surgiu também, como direito fundamental, o direito à diferença e à diversidade.
A partir daí surgiu a ideia da igualdade material que correspondente ao ideal de justiça social pois reconhece às variadas identidades (sejam elas de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios) a igualdade de oportunidades.
Na igualdade material não se admite qualquer tipo de discriminação, pelo contrário, pensando sob o seu viés, as políticas de ações afirmativas se tornam essenciais para a vida social. Isso ocorre porque:
“(…) A passagem do modelo de igualdade formal para o material deriva da necessidade de oferecer condições desiguais de acesso àqueles que são tratados historicamente e, portanto, estruturalmente, de forma desigual, com o propósito de corrigir décadas de falta de oportunidades. Por isso, as ações afirmativas também serem denominadas de discriminação positiva. Discrimina-se para incluir, levando-se em consideração idiossincrasias de gênero, etnia, raça e classe social. Nesse contexto, as políticas públicas de educação e trabalho passam a ser direcionadas para esse indivíduo, que há muito deixou de ser universal” (CAMPOS, 2003).
As ações afirmativas no Brasil
As primeiras políticas públicas voltadas a não discriminação no país, se caracterizavam inicialmente por medidas de cunho assistencialista contra a pobreza.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a legislação em seus atuais moldes, passou a estabelecer o princípio da dignidade da pessoa humana, conforme estabelece o artigo 1º, inciso III da Carta Magna bem como o da igualdade, estabelecido no caput do artigo 5º.
Em seu artigo 3º, a Constituição da República apresentou seus objetivos principais, sendo eles:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Outro ponto a ser destacado na Carta de 1988 foi a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho bem como a previsão da proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, o que podem ser considerados como as primeiras efetivas ações governamentais voltadas para a inclusão de minorias.
Assim, conforme Cynthia Campos explica, as ações afirmativas no Brasil compreendem:
“políticas públicas (e privadas) que visam à garantia de direitos historicamente negados a grupos minoritários, como negros, mulheres e portadores de deficiência. Fundamentam-se no princípio de igualdade substancial ou material” (2003).
Lembramos que essas mudanças foram possíveis graças a evolução da legislação internacional, por meio dos tratados e convenções dos quais o Brasil era signatário.
Assim, a partir disso, muitas ações afirmativas já foram e ainda são feitas no Brasil. Entre algumas delas podemos citar:
Acesso à educação por meio de cotas
A Lei nº 12.711/2012, regulamentada pelo Decreto nº 7.824/2012, garantiu que até 2016, no mínimo, 50% das vagas das universidades públicas brasileiras deveriam ser reservadas para alunos cotistas que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas, das quais 50% (25% do total) destinam-se aos de baixa renda (renda per capita igual ou inferior a 1,25 salário mínimo) e os 50% restantes destinados a negros, pardos e indígenas, distribuídas proporcionalmente de acordo com o percentual populacional da unidade federativa identificado no último censo.
Inclusão social de pessoas portadoras de deficiência ao mercado de trabalho
As dificuldades encontradas para a inserção e manutenção da pessoa com deficiência na sociedade são as mais diversas e o Estado representa a peça fundamental para inserção dessas pessoas no seio social.
Pensando nisso, a Lei nº 8.213/1991, ao apresentar os benefícios da previdência social, trouxe em seu artigo 93 a previsão legal de percentuais mínimos a serem preenchidos por pessoas com deficiência nos quadros das empresas, sendo estes:
“Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:
I – até 200 empregados……………………………………………………………………………….2%;
II – de 201 a 500…………………………………………………………………………………………3%;
III – de 501 a 1.000……………………………………………………………………………………..4%;
IV – de 1.001 em diante. ……………………………………………………………………………..5%.”
De maneira simples, esses percentuais asseguram à pessoa portadora de necessidades especiais a possibilidade de reversão de um quadro de exclusão e mais oportunidades de se inserir no mercado de trabalho bem como na sociedade.
Determinação de cotas mínimas de participação na política
A política de cotas no Legislativo por critério de gênero é uma ação afirmativa de empoderamento feminino, através de uma discriminação positiva, que foi adotada em vários países do mundo.
No Brasil, o sistema de cotas na política para as mulheres chegou em 1995 com um projeto de Lei proposto pela Deputada Marta Suplicy, que apoiava a reserva de 30% das vagas dos partidos políticos para a candidatura de mulheres.
O primeiro projeto de Lei não foi aprovado, no entanto, em 1997, foi aprovada a Lei de Cotas, qual permitida uma cota mínima de 30% e máxima de 70% para qualquer um dos sexos no preenchimento das vagas de candidatura dos partidos políticos. Essa lei, no entanto, apresentava uma grande problemática: não existia ainda uma obrigatoriedade na candidatura, somente um direito a vaga por um dos sexos.
Esse fato foi modificado com a lei nº 12.034/2019 que acrescentou um caráter obrigatório ao cumprimento da norma ao reservar o percentual de 30% das vagas para candidatura destinados a um dos sexos fazendo com que a participação das mulheres na política venha crescendo gradualmente nos últimos anos.
Concessão de bolsas de estudo e auxílio estudantil
O Programa Universidade para Todos (PROUNI) criado pela Lei nº 11.096/2005, concede bolsas de estudo integrais ou parciais em cursos de graduação em instituições de ensino superior privadas. Estudantes que concluíram o ensino médio na rede pública ou em rede particular como bolsistas integrais, com renda familiar per capita máxima de três salários mínimos, podem se candidatar e serão selecionados pelas notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), valorizando os estudantes com melhores desempenhos acadêmicos.
O Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), criado pelo Decreto nº 7.234/2008, prevê apoio à alimentação, transporte, saúde, inclusão digital, cultura, exporte, acesso à creche e suporte pedagógico de acordo com as necessidades pessoais do indivíduo. Tal iniciativa tem como objetivo ampliar as condições de permanência dos jovens no ensino superior público presencial, para evitar a repetência e a evasão.
As ações afirmativas podem ser compreendidas como uma forma de aliviar a carga de um passado discriminatório ainda acumulada em nossa sociedade, mas não somente isso. Essas políticas devem acima de tudo serem entendidas como uma forma de transformação social e criação de novas realidades onde a igualdade, a equidade e a justiça social estejam presentes possibilitando a participação, a inclusão e o respeito as diversidades.
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Referências:
- GASPAR, Lúcia; BARBOSA, Virgínia. Ações afirmativas e cotas no Brasil. 2003.
- GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação Afirmativa & Princípio Constitucional da Igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. 2001.
- PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas no Brasil: Desafios e perspectivas. 2008.
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