Modelos alternativos de administração pública no Brasil

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Este é o quarto e último texto de uma trilha de conteúdos sobre a administração pública no Brasil. Confira os demais posts: #1 – #2 – #3 – #4

Os três primeiros textos desta trilha abordaram os três modelos de administração pública que tradicionalmente são discutidos pelos diversos autores e pesquisadores do campo da administração pública quando tratam da trajetória da gestão pública. Neste post, faremos um esforço para ir além dos modelos mais “tradicionais”, apresentando modelos complementares ou alternativos a esses. O primeiro “modelo” a ser apresentado é o chamado Novo Serviço Público e o segundo a denominada Administração Pública Societal.

É importante destacar, como ponto de partida, que tais modelos podem ser entendidos como propostas para tentar lidar com as lacunas deixadas pelos outros modelos de administração pública já discutidos. Veremos que iniciativas, conceitos e ideias trazidos pelos dois modelos – ao menos em parte – já são uma prática na administração pública brasileira. Vamos discuti-los?

O NOVO SERVIÇO PÚBLICO

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O Novo Serviço Público (NSP) proposto pelos americanos Robert e Jane Denhardt se propõe como uma alternativa à velha administração pública (o equivalente ao modelo burocrático que tratamos no segundo texto desta trilha) e à nova gestão pública (ou a administração pública gerencialista como tratamos no terceiro texto desta trilha). Nesse sentido, critica a visão gerencialista de administração pública quanto a olhar as organizações públicas – que devem ser norteadas de acordo com o interesse público – como organizações de mercado, estas orientadas pela lógica do mercado, ou seja, de interesses privados.

O NSP, assim, é fundamentado em duas temáticas centrais: a promoção da dignidade e o valor do novo serviço público; e a reafirmação dos valores democráticos, da cidadania e do interesse público enquanto valores proeminentes da administração pública.

A partir desses temas, o NSP constitui-se de sete princípios-chave:

1 – Servir cidadãos, não consumidores: com base nesse princípio, entende-se que o trabalho desempenhado pelo servidor público é uma extensão de sua cidadania e que deve ser realizada em conjunto ou com a participação do cidadão. Assim, o cidadão deixa de ser um mero consumidor do serviço público para ser um partícipe. O governo, por sua vez, deve corresponder às necessidades e aos interesses dos cidadãos, trabalhando com eles em busca da construção de uma sociedade civil. Mas como isso poderia funcionar na prática? Como o governo pode trabalhar com os cidadãos? O próprio Politize! já tratou de algumas dessas práticas! Uma espiada nesse post permite conhecer o que é e como funcionam os Conselhos de Juventude.

2 – Perseguir o interesse público: por esse princípio entende-se que o administrador público é apenas um dos atores importantes na viabilização do interesse público, o qual será alcançado se tiver ampla participação de todos os cidadãos, grupos ou por meio de seus representantes e outras instituições. A ideia é que ao se ampliar a participação, garante-se o interesse público de fato. Aquele exemplo dos Conselhos que mencionamos no item anterior também se aplica aqui.

3 – Dar mais valor à cidadania e ao serviço público do que ao empreendedorismo: esse princípio pode ser relacionado à ideia de que o serviço público deva ser prestado buscando alcançar o interesse público, com vistas a contribuir para a sociedade. Sendo assim, o administrador público deve tomar decisões e utilizar os recursos disponíveis com vistas a promover o interesse coletivo e não o seu próprio interesse. Um exemplo: um gestor não deve pensar no quanto uma determinada obra lhe trará em termos de retorno político e sim o quanto ela de fato contribuirá para os cidadãos que dela se beneficiarão.

4 – Pensar estrategicamente, agir democraticamente: esse princípio decorre da ideia de que as políticas e programas voltados à sociedade tenham sua participação não só na definição das demandas e prioridades, mas também na implementação e acompanhamento deles. O papel do cidadão e dos servidores públicos deve ser compartilhado não só na identificação dos problemas, mas também na colocação em prática das soluções. Um post do Politize! que trata de colaboração e participação dos cidadãos ilustra esse princípio.

5 – Reconhecer que a accountability não é simples: prestar contas, ser transparente, ser responsável devem ser atributos inerentes ao serviço público, mas considerando que a sociedade é complexa e que portanto colocar em prática tais atributos não é tarefa simples. São normas e responsabilidades a serem atendidas que terão seu cumprimento observado por uma série de controles externos, padrões profissionais, preferências dos cidadãos, questões morais, direito e interesse públicos. Caso contrário, incorre-se no erro de não ser democrático.

6 – Servir em vez de dirigir: “o administrador público deve compartilhar poder e liderar com paixão, compromisso e integridade, de maneira a respeitar e conferir poder à cidadania”.

7 – Dar valor às pessoas, não apenas à produtividade: ser produtivo apenas não basta, é preciso considerar que a administração pública existe para servir ao cidadão. O serviço público não deve apenas estar sempre disponível. O serviço prestado por ele deve ser bem feito. Quem nunca ouviu falar em consultas médicas em postos de saúde que duram poucos minutos e o paciente mal se sente visto? De repente é porque a “meta” seja atender “x” número de pacientes no dia!

A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA SOCIETAL

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A Administração Pública Societal (APS) é uma proposta de “nova gestão pública” desenvolvida pela professora e pesquisadora brasileira Ana Paula Paes de Paula, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no livro “Por uma Nova Gestão Pública”. Interessante salientar que a própria autora não propõe que a APS seja “uma solução para todos os problemas de interesse público”, mas como um potencial que depende das articulações entre o Estado e a sociedade, bem como do amadurecimento de arranjos institucionais que viabilizem a gestão pública democrática.

A APS se propõe, assim, a contribuir para superar alguns limites da Administração Pública Gerencialista. Tais limites incluem uma não ruptura com os ideais tecnocráticos (reconstituído por uma nova política de recursos humanos); a persistência do autoritarismo e do patrimonialismo, tendo em vista que o processo decisório continuou como um monopólio de núcleo estratégico do Estado e das instâncias executivas; e a não garantia (apesar do discurso) da inserção da sociedade civil nas decisões estratégicas e na formulação de políticas públicas.

Em seu livro, Ana Paula Paes de Paula dá um exemplo de como, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, em que os ideais da Administração Pública Gerencialista foram perseguidos, governar por meio de medidas provisórias tornou-se um hábito. Vale lembrar que a medida provisória é um instrumento que deveria ser adotado pelo Presidente da  República apenas em casos de relevância e urgência. A crítica está justamente no fato de, ao invés disso, ter sido usado como instrumento recorrente para colocar em prática aquilo que o governo, por meio dos burocratas responsáveis pela sua formulação, desejava (Está com uma pinta de tecnocracia e insulamento burocrático, certo? Espie o segundo texto desta trilha para relembrar desses conceitos!). O post do Politize! sobre medida provisória já chama atenção sobre até que ponto este instrumento é compatível com os valores democráticos.

Observados alguns dos limites da Administração Pública Gerencial, como se caracterizaria, então, a Administração Pública Societal como alternativa a este modelo?

– ênfase na participação social na estruturação de um projeto político que repense o modelo de desenvolvimento brasileiro, a estrutura do aparelho de Estado e o paradigma de gestão. Tal projeto contrapõe-se à administração pública gerencial, que enfatiza a eficiência administrativa, as recomendações de organismos multilaterais internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, por exemplo) e o movimento gerencialista (puxado pela Nova Administração Pública a qual discutimos no terceiro post desta trilha) em detrimento de outros aspectos relacionados ao envolvimento do cidadão na administração pública;

– gestão guiada pela ênfase na dimensão sociopolítica, ou seja, que compreenda problemas situados no âmago das relações entre o Estado e a sociedade, envolvendo os direitos dos cidadãos e sua participação na gestão pública (aqui se faz um contraponto aos modelos de gestão que focam apenas as dimensões institucional-administrativa e econômico-financeira);

– não propõe uma organização do aparelho do Estado (como a administração pública gerencial que propõe a separação entre as atividades exclusivas e não-exclusivas do Estado), mas enfatiza iniciativas locais de organização e gestão pública;

– enfatiza a elaboração de estruturas e canais que viabilizem a participação popular, de modo que a participação social se dê no nível institucional e não apenas no nível do discurso (como no caso da administração pública gerencial), tendo em vista que os modelos anteriores acabam sendo centralizadores na tomada de decisão;

– baseia-se numa abordagem de gestão baseada na gestão social, a qual enfatiza a elaboração de experiências de gestão focalizadas nas demandas do público-alvo, incluindo questões culturais e participativas, fazendo, assim, um contraponto ao gerencialismo que se baseia na adaptação das recomendações gerencialistas para o setor público.

DÁ PRA FAZER?

Para finalizar, cabe mencionar aqui algumas iniciativas presentes na administração pública brasileira que vão ao encontro das ideias do Novo Serviço Público e da Administração Pública Societal:

Os Conselhos Gestores de Políticas Públicas

No livro Conselhos de Gestores de Políticas Públicas, disponível para download no site do Instituto Pólis, você encontra uma série de iniciativas de Conselhos em diversas áreas.

Vale destacar, mais uma vez, o post do Politize! que trata do Conselhos de Juventude.

Os Fóruns Temáticos

Os Fóruns Temáticos são reuniões na forma de seminários, encontros, painéis pautados por discussões de questões variadas relacionadas ao interesse público.

Um dos mais conhecidos no mundo e que de certa surgiu em contraponto às discussões realizadas pelo Fórum Econômico Mundial, uma organização sem fins lucrativos, sediada na Suíça e conhecida por suas reuniões anuais em Davos é o Fórum Social Mundial.

Além dos Fóruns mais amplos, como o Fórum Social Mundial, há também aqueles ainda mais alinhados com a proposta dos modelos de administração pública aqui discutidos, por permitirem uma interação mais direta dos cidadãos com os problemas que lhes atingem diretamente, são os Fóruns Temáticos Locais. Por exemplo, para discutir o tema da segurança pública num município, a sociedade civil pode propor um amplo debate de modo a se encontrar soluções para os problemas relacionados à insegurança.

Orçamento Participativo

De acordo com o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, o orçamento participativo é definido como “um importante instrumento de complementação da democracia representativa, pois permite que o cidadão debata e defina os destinos de uma cidade. Nele, a população decide as prioridades de investimentos em obras e serviços a serem realizados a cada ano, com os recursos do orçamento da prefeitura. Além disso, ele estimula o exercício da cidadania, o compromisso da população com o bem público e a corresponsabilização entre governo e sociedade sobre a gestão da cidade”.

Várias cidades brasileiras em diversos estados já adotaram ou ainda adotam essa prática, entre elas pode-se mencionar como exemplo Vila Velha no Espírito Santo; Mauá, Ribeirão Pires e Santo André em São Paulo; Distrito Federal; Recife em Pernambuco; Belo Horizonte, Minas Gerais; e Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Destaca-se que Porto Alegre em função do amadurecimento da proposta e dos resultados alcançados foi uma das experiências de orçamento participativo que mais destaque nacional e até internacional obteve.

Neste link podem ser encontradas mais informações sobre o histórico e o funcionamento do orçamento participativo no município de Porto Alegre.

Bom gente, nossa trilha vai chegando ao fim! Espero que tenha contribuído de alguma forma para o entendimento de como a gestão pública brasileira tem caminhado, seus limites e possibilidades…

Fontes de pesquisa:

DENHARDT, R. B. Teorias da administração pública. São Paulo: Cengage Learning, 2012.

PAULA, Ana Paula Paes de. Por uma nova gestão pública: limites e possibilidades da experiência contemporânea. Rio de Janeiro: FGV, 2005. 201 p

SANTOS, A. R.; SALM, J. F.; MENEGASSO, M. E. A Proposta do Novo Serviço Público e a Ação Comunitária de Bairro: um Estudo de Caso. Anais… Encontro de Administração Pública e Governança 2006. São Paulo: ANPAD, 2006.

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Conteúdo escrito por:
Professor do Departamento de Ciências da Administração e do Programa de Pós-Graduação em Administração Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Tem interesse por: administração pública, administração universitária, estudos organizacionais e epistemologia e sociologia da ciência da administração. Gosta de estar com a família e os amigos sempre ao som de uma boa música.
Schlickmann, Raphael. Modelos alternativos de administração pública no Brasil. Politize!, 10 de outubro, 2016
Disponível em: https://www.politize.com.br/administracao-publica-modelos-alternativos/.
Acesso em: 21 de nov, 2024.

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