HABEAS CORPUS (HC) – UMA GARANTIA CONSTITUCIONAL EM PROL DA LIBERDADE
O inciso LXVIII do artigo 5º da Constituição trata sobre o Habeas Corpus (HC), uma garantia fundamental voltada à proteção do direito individual à liberdade. O HC é comumente chamado de “remédio constitucional” existente para “curar” constrangimentos injustos à liberdade individual. Ele funciona como mecanismo para preservar o direito de ir e vir dos cidadãos ao prevenir ou anular a detenção ou prisão arbitrária praticada por abuso de poder ou ilegalidade.
Quer saber mais sobre como a Constituição define este direito e por que ele é tão importante, bem como a sua história e como é aplicado na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto “Artigo Quinto”.
Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros.
DESCOMPLICANDO O INCISO LXVIII
O inciso LXVIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, define que:
conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
Esse inciso conceitua o habeas corpus , uma garantia fundamental voltada à tutela do direito individual à liberdade de locomoção (direito de ir e vir), quando ele se encontra ameaçado ou prejudicado, em decorrência de violência ou lesão por ilegalidade ou abuso de poder.
Como resultado de sua importância para a garantia de um direito tão elementar, e porque expressamente previsto na Constituição Federal, o HC é comumente chamado de “remédio constitucional”, a exemplo do mandado de segurança, o mandado de injunção e o habeas data, que serão objeto de análise nos próximos capítulos.
Contudo, como mencionado, o HC visa especificamente a garantir o direito fundamental à liberdade de locomoção, ao passo que os demais remédios constitucionais citados têm outras funções, como veremos em breve.
Assim, sempre que alguém sofrer ou se sentir ameaçado de sofrer violência ou coação que, de alguma forma, limite sua liberdade de locomoção, seja por algum ato diretamente contrário à lei (ilegal) ou que extrapole o permitido em lei (abuso de poder), poderá fazer uso do HC para prevenir ou anular a detenção ou prisão arbitrária.
Nesse sentido, vale ressaltar que, uma vez concedido, o HC tem efeito imediato e constituirá verdadeira ordem judicial implicando a soltura ou a concessão de salvo-conduto ao cidadão, dentre outros efeitos. Dessa forma, o instrumento deve ter a eficácia necessária para, simultaneamente, decidir e fazer cumprir a decisão do órgão jurisdicional que o tenha concedido.
Outro ponto importante a ser ressaltado é o fato de que a nossa legislação prevê dois tipos de HC, cujas funções são distintas em virtude das hipóteses de seu cabimento. São eles:
- Habeas corpus preventivo: é utilizado quando existe apenas uma ameaça, ainda não concretizada, de coação ilegal ao direito de ir e vir. Nesse caso, qualquer indivíduo que se achar ameaçado de sofrer lesão ao seu direito de locomoção tem o direito de fazer um pedido de HC. Para isso, deve solicitar ao Poder Judiciário a expedição de um “salvo-conduto”, ou seja, de uma ordem que impeça a concretização indevida da detenção.
- Habeas corpus liberatório: é usado quando o indivíduo já teve sua liberdade restrita, como nos casos de prisão temporária ou preventiva sem fundamentação idônea ou fora das hipóteses legais. Desse modo, se o tribunal ou juiz considerar que a prisão não tem justificativa, ou tem alguma ilegalidade, a pessoa deve ser imediatamente liberada. Cabe ao Poder Judiciário conceder no HC liberatório uma ordem de imediata soltura, ou seja, de cessação da coação ilegal já ocorrida e de reestabelecimento da liberdade ao cidadão.
Na ação de HC, o cidadão cujo direito de liberdade se busca proteger é chamado de “paciente”, e aquele a quem se atribui responsabilidade por ameaçar ou ferir o seu direito de locomoção é denominado “coator” ou “autoridade coatora”, visto que geralmente se trata de uma autoridade pública.
Já o “impetrante”, ou seja, aquele que ingressa em juízo com a ação de HC, pode ser o próprio paciente ou qualquer pessoa capaz, conhecida ou não do paciente, não sendo necessário ser advogado ou ter representação por procuração.
HISTÓRICO DESSA GARANTIA
Os historiadores do direito e da política costumam situar as origens do HC no sistema jurídico de common law, particularmente no direito inglês. Ainda no século XIII, uma disputa de poder entre nobres e o rei deu origem à Magna Carta inglesa (1215). Por limitar pela primeira vez os poderes do rei, ela é um antecedente histórico das constituições modernas.
Com o passar dos séculos, as regras tornaram-se mais claras, ao mesmo tempo que o poder estatal passou a submeter-se, cada vez mais, às regras escritas, como as leis e as Constituições. Em paralelo, foram se desenvolvendo, em diferentes países, os remédios processuais adequados para a proteção das liberdades em face de abusos por agentes do Estado.
O HC consolidou-se como o principal desses instrumentos, estando presente em quase todas as legislações do mundo como um relevante instrumento contra prisões ilegais e arbitrárias.
No Brasil, o HC foi assegurado em todas as constituições desde a de 1891. Contudo, durante o período da ditadura militar (1964-1985), o HC foi suprimido pelo Ato Institucional n. 5 (AI-5). Ele determinava que ficaria “suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”.
A IMPORTÂNCIA DO HABEAS CORPUS
A garantia contida no presente inciso ganhou maior visibilidade nos últimos anos em razão de prisões preventivas de políticos envolvidos em denúncias de corrupção, bem como em decorrência da prisão de grandes empresários. Nesse contexto, HCs foram seguidamente impetrados para aferir a legalidade dessas prisões, contribuindo para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Apesar da menor repercussão midiática, o fortalecimento das Defensorias Públicas nas últimas décadas também ampliou o impacto do habeas corpus na sociedade. Isso porque elas atendem principalmente pessoas socioeconomicamente vulneráveis, mais expostas ao abuso de poder por autoridades estatais.
O assunto é tão relevante que a legislação brasileira garante que qualquer cidadão pode impetrar uma petição de HC. Segundo o Código de Processo Penal (CPP), para fazer isso, basta a elaboração do documento contendo o nome da pessoa que sofreu a coação ou a ameaça e o tipo de constrangimento sofrido ou as razões pelas quais se sente ameaçada, com a assinatura de quem o elaborou ao final.
Assim, apesar de desejável, em virtude de seu conhecimento técnico legal, a presença de um advogado é dispensável para apresentação da petição de HC, tendo o Supremo Tribunal Federal (STF) e outros órgãos do Poder Judiciário do país já concedido importantes ordens de HC à presos e cidadãos vulneráveis que não tiveram condições de ser assistidos por advogados.
Além disso, por sua importância, a Constituição Federal garante a gratuidade do procedimento. E, embora seja de rara ocorrência prática, a Constituição prevê que até o próprio membro do Ministério Público pode fazer petições de HC em favor de indivíduos.
Vale dizer que não há prazo para impetração do HC, portanto, não há prescrição do direito de acionar a Justiça com o pedido.
Em um país com uma população carcerária tão grande quanto a do Brasil, e no qual ocorrem tantos abusos e prisões desnecessárias, o instituto do HC se torna ainda mais relevante para evitar ou corrigir situações como a de cidadãos que já cumpriram suas penas, mas permanecem presos em razão da ineficiência do sistema e do descaso das autoridades.
Por fim, cabe ressaltar o caráter ilimitado do HC, uma vez que qualquer tipo de restrição à sua aplicação seria totalmente contrária à natureza jurídica intrínseca a esse remédio constitucional. Isto é, enquanto o direito de locomoção do cidadão for restrito ou estiver na iminência de o ser, sempre será cabível o uso do HC.
O INCISO LXVIII NA PRÁTICA
Na prática, a competência para julgar um HC é da autoridade judiciária hierarquicamente superior àquela que determinou a coação. Ou seja, caso a autoridade judiciária que foi coatora seja um juiz federal, quem julgará o pedido de HC será o Tribunal Regional Federal, pois esta é a autoridade imediatamente superior aos juízes federais. Por outro lado, caso o coator do HC seja um Tribunal Superior, compete ao STF julgar o HC. Por fim, também cabe ao STF julgar HC, por exemplo, contra ato do Presidente ou do Vice-Presidente da República, de ministros de Estado e de membros do Congresso Nacional.
O CPP é o responsável por concretizar o princípio contido no inciso LXVIII do artigo 5º, entre seus artigos 647 e 667. Nesse sentido, prevê que o HC poderá ser impetrado “sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir”. Uma vez julgado um pedido de HC, independentemente de seu resultado, será sempre possível ajuizar um pedido de revisão da decisão ou recurso.
O relatório Panaceia universal ou remédio constitucional? Habeas Corpus nos Tribunais Superiores (2014), traz um panorama interessante sobre impetrações de HC no STJ e no STF entre os anos de 2008 e 2012, quando houve o julgamento de um total de 196.833 casos. A amostra de casos utilizada foi de 5% (13.888 casos).
Entre as conclusões da pesquisa, dois dados são cruciais para a discussão:
(i) a concessão, total ou parcial, do HC atinge o percentual de 8,27% no STF e de 27,86% no STJ; e
(ii) esses percentuais podem superar os 50% quando a ilegalidade decorre temas como “erro da fixação de regime” e “erro na dosimetria”, cujo impacto incide diretamente na execução da pena – e, em geral, atinge mais severamente a população mais vulnerável, que constitui a maioria dos encarcerados.
Nos casos de roubo (crime relacionado à maior parte dos HCs), quando se demonstra “erro na fixação do regime”, os percentuais aumentam de forma significativa, atingindo 62% de concessão total ou parcial do HC. Já quando se demonstra “erro na dosimetria”, a concessão total ou parcial da ordem chega a 49%.
CONCLUSÃO
Neste texto, aprendemos sobre o HC, um dos fundamentos da sociedade democrática, de extrema importância para a manutenção do direito de ir e vir de todos seus integrantes.
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em setembro/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Autores:
- Julio Souza Marson Madeira Costa
- Mariana Mativi
- Matheus Silveira da Silva
Fontes:
- Instituto Mattos Filho;
- Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;