INCISO XX – DIREITO DE NÃO SE ASSOCIAR
O direito de não se associar é assegurado pelo inciso XX do artigo 5º da Constituição de 1988. Ele é parte dos cinco direitos fundamentais que tratam sobre associação, ao lado do inciso XVII (Liberdade de Associação), do inciso XVIII (Livre Constituição de Associações), do inciso XIX (Dissolução de Associações) e do inciso XXI (Legitimidade de Representação da Associação). Como o próprio nome diz, o inciso XX trata do poder do indivíduo para decidir fazer ou não parte de uma associação.
Quer entender mais sobre como esse direito se aplica, onde ele surgiu e como é visto internacionalmente? Nesse texto, trazemos isso e muito mais para você!
Para conhecer os outros direitos fundamentais, confira a página do Artigo Quinto, um projeto desenvolvido pelo Instituto Mattos Filho em parceria com a Civicus e a Politize!.
O QUE É O DIREITO DE NÃO SE ASSOCIAR
O artigo 5º, em seu inciso XX, afirma que:
XX – Ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado.
Para entendermos a importância do inciso XX, vale relembrar o que é uma associação. Conforme o texto sobre o inciso XVII, associações são grupos de pessoas que se juntam para desenvolver atividades com o intuito de atingir objetivos lícitos.
Suas finalidades podem ser as mais variadas e têm relação com alguma necessidade ou interesse comum entre seus associados. Alguns exemplos são: associações de moradores de bairro, associações de pais e mestres, sindicatos, associações beneficentes, entre outros.
Nesse sentido, o inciso XVII do artigo 5º garante a qualquer pessoa o direito de criar ou participar de associações; o inciso XVIII dispensa a autorização do Estado para a criação de associações lícitas e sem caráter paramilitar; e o inciso XIX exige decisão judicial transitada em julgado para dissolver associações compulsoriamente.
Agora que já recordou os principais aspectos de uma associação, podemos voltar ao inciso XX. Como você sabe, todo cidadão tem direito a se associar a qualquer entidade associativa. Mas o que isso quer dizer? Segundo o jurista Alexandre de Moraes:
O direito de não ser coagido a inscrever-se ou permanecer em qualquer associação, ou pagar quotização para a associação em que esteja inscrito […] tem natureza de liberdade, enquanto não implica dependência de autorização de qualquer tipo ou de qualquer intervenção administrativa.
Na prática, isso significa que ninguém – seja associação, poder público ou qualquer particular – pode obrigar um indivíduo a fazer parte de uma associação.
Assim, se uma pessoa entrar em uma nova empresa ou se mudar de bairro, por exemplo, ela não estará automaticamente inserida no sindicato trabalhista da empresa ou na associação de moradores do novo bairro. Portanto, caso receba alguma cobrança de mensalidade sem que tenha concordado com isso, não terá a obrigação de pagá-la.
Além disso, o inciso XX também garante ao indivíduo já associado o direito de se desligar da associação a qualquer momento, independentemente da justificativa. Ou seja, não importa se o indivíduo está na associação há um dia ou dez anos, nem a extensão do seu envolvimento com ela – se tiver vontade de se desassociar e manifestar essa vontade, a desassociação não pode ser negada pela associação, sob nenhuma hipótese.
A HISTÓRIA DO DIREITO DE NÃO SE ASSOCIAR
Por incrível que pareça, o reconhecimento expresso do direito de não se associar é recente no Brasil. Enquanto o direito fundamental de associação existe desde a Constituição de 1891, foi somente na Constituição Cidadã, de 1988, que o direito de não se associar, previsto no inciso XX, passou a existir. Vejamos como o tema foi tratado em cada uma das nossas sete Constituições.
Na Constituição de 1824, durante o Brasil Império, não havia previsão nem mesmo do direito de associação. As duas únicas vezes que o termo “associação” aparece são no artigo 1º, para dizer que “O Império do Brasil é a associação Política de todos os Cidadãos Brasileiros”, e no parágrafo 10 do artigo 10, que trata da competência das assembleias legislativas para legislar sobre “quaisquer associações políticas ou religiosas”.
As cinco Constituições seguintes traziam em seu texto o direito de associar-se, mas não tratavam do direito de não se associar ou do direito de se desligar de uma associação, que só apareceram em 1988. Vamos entender melhor:
- A Constituição de 1891 trazia em seu artigo 72, § 8º, que “A todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas; não podendo haver intervenção da polícia, se não para manter a ordem pública”.
- Na Constituição de 1934, no artigo 113, item 12, constava também o direito à não dissolução de associações: “É garantida a liberdade de associação para fins lícitos. Nenhuma associação será compulsoriamente dissolvida senão por sentença judiciária”.
- A Constituição de 1937, sob a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, estabelecia uma liberdade de associação limitada “aos bons costumes”, no parágrafo 9º do artigo 122: “[É garantida] a liberdade de associação, desde que os seus fins não sejam contrários à lei penal e aos bons costumes”.
- Na Constituição de 1946, no artigo 141, § 12, constava que “É garantida a liberdade de associação para fins lícitos. Nenhuma associação poderá ser compulsoriamente dissolvida senão em virtude de sentença judiciária”.
- Na Constituição de 1967, no artigo 150, § 28, era “garantida a liberdade de associação. Nenhuma associação poderá ser dissolvida, senão em virtude de decisão judicial”. A esse texto foi acrescentado o termo “para fins lícitos” pela Emenda Constitucional (EC) n. 1, de 1969.
- Na Constituição de 1988, no inciso XX do artigo 5º aqui tratado, está previsto pela primeira vez que o indivíduo não poderá ser obrigado a associar-se e poderá se desassociar quando quiser.
UM OLHAR INTERNCIONAL SOBRE O DIREITO DE NÃO ASSOCIAÇÃO
Como você já deve ter percebido, o inciso XX do artigo 5º é relevante por reforçar a garantia da autonomia da vontade e da liberdade de expressão do indivíduo. Com esse inciso, ele pode fazer aquilo que realmente deseja em relação a uma associação, estando nele, e não na associação, o poder de determinar a sua participação.
Mas não é só na Constituição brasileira que esse direito está previsto. Ela encontra eco em diversos documentos e instrumentos legais ao redor do mundo, como a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seu artigo 20, inciso 2, diz que “Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação”.
Outro exemplo é o julgamento da Corte Internacional de Direitos Humanos no “Caso Baena-Ricardo et al. v. Panamá”, sobre uma união trabalhista. No seu argumento 159 ficou entendido que a liberdade de associação inclui a “liberdade de não ser obrigado ou forçado a se juntar a uma associação” (tradução livre), complementando o artigo 16 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Essa ideia respalda-se no Protocolo de San Salvador, artigo 8(3), o qual garante que “ninguém poderá ser obrigado a pertencer a um sindicato” (tradução livre).
Mais recentemente, em 2011, a Comissão de Veneza (do Conselho da Europa) entendeu — ao emitir sua opinião sobre a compatibilidade entre os padrões universais de direitos humanos e a posição da República de Belarus em relação a associações não registradas — que o princípio da liberdade de associação inclui a “liberdade negativa” da autonomia pessoal, tendo o indivíduo o direito de entrar e o direito de não entrar em uma associação (ponto 67).
Dessa forma, é inegável que, ao longo dos anos, esse direito vem conquistando cada vez mais reconhecimento no mundo. Mas, na prática, o direito de não se associar está sendo realmente assegurado no Brasil?
APLICAÇÕES DO DIREITO DE NÃO SE ASSOCIAR
Embora o direito de não se associar seja importante para o ordenamento jurídico brasileiro, o debate em torno dele ainda é escasso.
Apesar disso, podemos citar alguns casos emblemáticos sobre o tema no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). É importante ressaltar que, nas oportunidades que teve, o STF prestigiou a aplicação do direito previsto no inciso XX do artigo 5º, entendendo pela necessidade de se respeitar, acima de tudo, a intenção do associado.
O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n. 432.106/RJ, de relatoria do ministro Marco Aurélio, em 2011, é um desses casos. Nele, estava em questão a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) no julgamento da Apelação Cível n. 2002.001.28930, que obrigava um morador a pagar uma taxa para a associação de moradores de seu condomínio, por desfrutar dos serviços prestados por ela (“paz”, “segurança”, “tranquilidade”), ainda que não fizesse, nem quisesse fazer parte dela. É importante ressaltar que essa taxa difere da taxa de condomínio, a qual, de fato, é obrigatória nos termos da Lei n. 4.591/1964.
Nesse julgamento, no entanto, a questão era os serviços prestados pela associação de moradores (um serviço coletivo), dos quais o réu estaria usufruindo sem contribuir. A associação alegou que isso se configuraria como enriquecimento ilícito (também chamado enriquecimento sem causa). Ou seja, o morador estaria enriquecendo (mantendo o dinheiro que deveria pagar) às custas de outros moradores (que pagavam o serviço que ele recebia).
O STF decidiu em favor do morador, entendendo, com base no inciso XX, que caso algum morador não queira fazer parte de uma associação de moradores, ele não pode ser obrigado a tal. Assim, nenhuma das obrigações decorrentes do processo de se associar – entre as quais está o pagamento da mensalidade por serviços – pode ser imposta a alguém que nunca se associou, por mais que usufrua dos serviços coletivos. Para a cobrança ser realizada, é necessária a autorização do morador.
Com isso, o STF firmou jurisprudência no sentido de que o direito previsto no inciso XX do artigo 5º está diretamente ligado à autonomia de manifestação (o morador precisa manifestar interesse) e à liberdade (o morador é livre para se associar ou não).
Outro caso importante foi o julgamento da Repercussão Geral no RE n. 820.823/DF, de 2016, relatado pelo ministro Luiz Fux. Se no caso que trouxemos anteriormente discutiu-se a entrada de uma pessoa em uma associação, neste o assunto é a saída. O reclamante desejava retirar-se de uma associação, a qual condicionava sua saída à quitação de mensalidades atrasadas. Ou seja, a pessoa não poderia se desassociar enquanto não pagasse as mensalidades.
O STF entendeu que a vinculação do desligamento ao pagamento de dívidas viola a liberdade individual do associado. Além disso, com base no artigo 5º, inciso XX, decidiu que independentemente de qualquer valor pendente, o associado tem o direito de sair da associação da qual faz parte quando quiser.
O PODER NA MÃO DO INDIVÍDUO
O direito de não se associar, garantido no artigo 5º, inciso XX, da Constituição Federal, reforça as garantias de liberdade de associação ao fortalecer a liberdade do indivíduo de escolher se e quando fazer parte de uma associação.
Isso evita que alguém seja forçado a participar de algo com o qual não se identifique ou para o qual não tenha condições de contribuir.
Embora recente no Brasil, o direito de não se associar vem se firmando cada vez mais como uma face fundamental da liberdade de associação em documentos mundo afora. Apesar de algumas decisões relevantes, esse direito ainda precisa ser mais conhecido e debatido pela população em geral, detentora e beneficiária dele.
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em setembro/2019 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Sobre os autores:
Adriana Mattos
Advogada de Organizações da sociedade civil, Negócios sociais e Direitos humanos
Danniel Figueiredo
Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.
Fontes:
Free Assembly – (Sobre o Direito de não se associar pelo mundo)
Servidor Adv – Ninguém poderá ser compelido a Associar-se ou permanecer associado
JusBrasil – Cobrança de Condomínio Ilegal
Constituições brasileiras: 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, assim como a Emenda Constitucional de 1969
Declaração Universal dos Direitos Humanos
Caso Baena-Ricardo et al vs Panamá
Venice Commission opinion on the rights of non-registered associations in Belarus