DIREITO AO SILÊNCIO
O inciso LXIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 define que quando um indivíduo for preso, este deverá ser informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado. Nesse sentido, o direito ao silêncio é essencial para que o preso não se autoincrimine e para que possa se defender das acusações em um futuro julgamento, razão pela qual esse mesmo inciso também enuncia o tratamento constitucional de um direito de alcance mais amplo, o direito à não autoincriminação.
Quer saber mais sobre como a Constituição define este direito e por que ele é tão importante, bem como a sua história e como é aplicado na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série de textos do projeto “Artigo Quinto”.
Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiro.
O QUE É O INCISO LXIII?
O inciso LXIII do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, afirma que:
“o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.
Assim, o presente inciso trata do direito ao silêncio e à não autoincriminação, um dos direitos essenciais ao cidadão que for investigado, acusado ou preso.
Dessa maneira, é obrigatório que o preso receba informações claras acerca da sua situação e sobre como proceder, incluindo o direito de permanecer calado e o direito de ser assistido por familiares e, tecnicamente, por um advogado.
Isso porque, quando uma pessoa é presa, existe uma série de procedimentos a serem realizados até que, futuramente, a pessoa seja julgada e absolvida ou condenada.
Nesse sentido, não necessariamente alguém que é preso assim permanece, pois, no curso das investigações, as provas e as testemunhas podem indicar que aquela pessoa não está conectada ao crime ou não deve permanecer presa por outros motivos – até porque, como regra, a pessoa deve responder à investigação e ao processo criminal em liberdade, na medida em que, como vimos no texto sobre o inciso LVII do artigo 5º, ela só poderá ser tratada como culpada após eventual condenação definitiva. Dessa maneira, não se pode presumir que o indivíduo seja culpado, impondo que diga coisas que o incriminem sem que ele perceba.
Portanto, não se pode coagir alguém preso ou investigado a se manifestar, devendo todo cidadão sob investigação ser informado pelas autoridades que não é obrigado a responder às perguntas.
Além disso, conforme o inciso LXII, o preso tem o direito de avisar sua família ou outra pessoa que indique para que saibam de sua situação, bem como de solicitar um advogado para auxiliar em sua defesa para que, assim, lhe seja garantido um tratamento de acordo com a lei e a Constituição.
HISTÓRICO DESTA GARANTIA
O Código de Processo Penal (CPP) vigente foi criado em 1941, quando o Brasil vivia a ditadura do Estado Novo. Como se sabe, regimes políticos autoritários reconhecem menos direitos aos cidadãos e mais poderes ao Estado e a seus agentes. Nessa época, pois, o artigo 186 tinha o seguinte texto:
“Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”.
Ou seja, embora o acusado tivesse o direito de não responder às perguntas, essa escolha poderia ser apreciada de maneira negativa no momento do julgamento. Após a promulgação da Constituição de 1988, primeiro texto constitucional brasileiro a trazer o direito ao silêncio do preso, essa visão vem sendo paulatinamente transformada para se adaptar aos direitos fundamentais hoje reconhecidos, entre eles o direito de não se autoincriminar.
Em 1992, por meio do Decreto n. 678, o Brasil internalizou em sua legislação a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, da qual o país é signatário. Também fruto da afirmação internacional dos direitos humanos ao longo do século XX, seu texto prevê, no artigo 8º, § 2º, alínea “g”, o “direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado”, expressando até de forma mais completa o direito à não autoincriminação.
Também, o mencionado texto da redação original do CPP foi alterado com a Lei n. 10.792, de 2003, para que o código se tornasse coerente com o texto constitucional de 1988. Hoje, o texto alterado dispõe em seu artigo 186, parágrafo único, que “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.
A IMPORTÂNCIA DO INCISO LXIII
O direito contido no inciso LXIII está garantido também pela Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecido como Pacto de San José da Costa Rica, um tratado internacional assinado pelos Estados americanos.
Assim, está disposto em seu artigo 8º, que trata das garantias judiciais da pessoa humana, o “direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”.
Esse direito não é apenas procedimental; trata-se de um dos direitos civis e políticos garantidos ao redor do mundo como prioridade e que, no Brasil, tem status hierárquico de norma supralegal, ou seja, de valor superior ao de toda a legislação, e inferior somente às normas constitucionais, conforme estabelece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343 de 2006.
No entanto, de acordo com o Relatório sobre a Tortura no Brasil produzido pela Comissão de Direitos Humanos da ONU e com pesquisas acadêmicas desenvolvidas no país a respeito do tema, o cenário de produção coercitiva de confissões não parece ter melhorado ao longo dos anos tanto quanto deveria.
Muitas dessas pesquisas sugerem que durante os anos da ditadura militar, que vigorou no país entre 1964 e 1985, desenvolveu-se um hábito sistemático de agentes policiais obterem confissões sob tortura na investigação de crimes políticos e, depois, isso generalizou-se para outras investigações criminais, sendo que o Estado brasileiro ainda tem bastante dificuldades para erradicar essas práticas abusivas e ilegais.
De fato, a experiência concreta das práticas policiais brasileiras mostra que os direitos fundamentais dos cidadãos não são sempre respeitados, gerando uma população carcerária composta por presos que não necessariamente precisariam cumprir pena em presídios, e muitos casos de condenados injustamente.
O INCISO LXIII NA PRÁTICA
Uma das manifestações desse direito em nossa legislação está no já citado artigo 186 do CPP:
Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.
Além disso, a Lei n. 12.403/2011 trouxe uma inovação – a comunicação imediata da prisão também ao Ministério Público, consagrada pelo artigo 30: “A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada.”
Na prática, esse direito tem reflexos em diversas situações, valendo citar, a título de exemplo, o crime de embriaguez ao volante previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que estabelece a responsabilização penal do motorista que tiver certa concentração mínima de álcool em seu organismo.
Até 2012, a redação do artigo permitia que a embriaguez fosse atestada por meio de testemunhos e exames médicos externos, razão pela qual o Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou à época o entendimento de que o delito só poderia ser configurado com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue, não podendo ser presumida – isto é, só testes do bafômetro ou exames de sangue podem atestar a embriaguez.
Com a entrada em vigor das Leis n. 12.760/2012 e n. 12.971/2014, a redação do artigo 306 reiterou a possibilidade de constatação da embriaguez por outros meios que não o teste de alcoolemia, mas esse ainda é o principal meio de prova e mais aceito por nossos tribunais.
Porém, o motorista não é obrigado a se submeter ao exame de sangue ou bafômetro, já que isso pode significar a produção de prova contra si mesmo, o que vai de encontro ao direito à não autoincriminação previsto no inciso LXIII do mesmo artigo 5º.
De toda forma, ainda que seja preservada a possibilidade de recusa do motorista em se submeter a esses exames, o CTB dispõe essa é uma infração administrativa gravíssima, que tem como punição a perda da carteira de motorista por um ano e a aplicação de multa. Esse ponto, contudo, continua a gerar controvérsia jurídica sobre a sua constitucionalidade, uma vez que alguns autores apontam que essa punição violaria o direito à não autoincriminação.
Para além disso, esse direito faz que ninguém seja obrigado a confessar crime algum, à polícia ou mesmo em juízo, ou a cooperar com as autoridades para investigações contra si.
CONCLUSÃO
Sendo assim, o inciso LXIII do artigo 5º que trata sobre o direito ao silêncio é de grande importância para que o preso não produza provas contra si mesmo, as quais, em diversas situações, podem não condizer com a realidade.
Esse conteúdo foi publicado originalmente em agosto/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Autores:
Bianca Lopes Rodrigues
Mariana Mativi
Matheus Silveira
Fontes:
Instituto Mattos Filho;
Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;
Notícia sobre presos no brasil – G1;
Relatório sobre a Tortura no Brasil – USP
CAPEZ, Fernando. COLNAGO, Rodrigo. Código de processo penal comentado. 2 edição. São Paulo. Saraiva, 2017.