Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
25 de agosto de 2020

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Inciso LXIV – Direito à identificação do responsável pela prisão

"O preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial”

DIREITO À IDENTIFICAÇÃO DO RESPONSÁVEL PELA PRISÃO

Você sabia que quando um indivíduo é preso, ele tem direito de saber quem foi o agente ou a autoridade responsável pela sua prisão? É sobre isso que o inciso LXIV do artigo 5º trata. Por meio dessa previsão constitucional, é garantido ao preso que ele tenha condições de reagir contra eventuais abusos de autoridade e que tenha acesso à ampla defesa, à dignidade da pessoa humana e, se for o caso, à liberdade, conforme é previsto no ordenamento jurídico brasileiro.

Quer saber mais sobre como a Constituição define este direito e por que ele é tão importante, bem como a sua história e como é aplicado na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série de do projeto “Artigo Quinto”.

Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros, por meio de textos com uma linguagem clara.

O QUE É O INCISO LXIV?

O inciso LXIV do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:

“o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial”

Como dito, com essa previsão constitucional é garantido ao preso o acesso à ampla defesa, à dignidade da pessoa humana e, se for o caso, à liberdade. Além disso, fica garantido também o direito à defesa e à denúncia contra eventual abuso praticado pela autoridade policial. Afinal, ao exigir a identificação do responsável pela prisão ou interrogatório, torna-se possível questionar a competência ou as atribuições da autoridade que praticou o ato e a sua conformidade com a legislação e seus regulamentos.

Dessa forma, esse direito busca prevenir a prisão arbitrária e autoritária, bem como o interrogatório que ofenda preceitos legais e princípios fundamentais dos direitos humanos. Isso porque, segundo o inciso LVII do artigo 5º, uma pessoa só pode ser considerada culpada depois do trânsito em julgado, ou seja, depois de passar por um julgamento que, respeitando o devido processo legal, a permita dispor de todos os recursos cabíveis.

Por outro lado, a devida identificação de autoridades e agentes públicos que, no exercício de suas atribuições e seus deveres legais, concretizam atos estatais que intervêm na liberdade de ir e vir de cidadãos é regra importante para que haja controles e transparência sobre os atos desses agentes do Estado. 

Portanto, como há a necessidade de respeitar o direito à ampla defesa do indivíduo, é fundamental que o preso tenha o direito à identificação da autoridade que o prendeu.

HISTÓRICO DESTA GARANTIA

A primeira menção ao direito à identificação dos responsáveis pela prisão foi feita na primeira Constituição do país, promulgada em 1824, na época do Império. Nela, havia a previsão de expressa menção do nome do acusador na “nota de culpa” entregue ao preso. Do mesmo modo, as Constituições de 1891 (art. 72, §16) e de 1946 (art. 141, §25) previam a comunicação ao preso dos nomes de seus acusadores.

Contudo, nos períodos de 1937-1945 e 1964-1985, em que o país viveu respectivamente a Era Vargas e a ditadura militar, os direitos dos presos foram reduzidos, bem como os direitos da população em geral. 

Especialmente durante a ditadura militar, sobretudo após a edição, em fins de 1968, do Ato Institucional n. 5 (AI-5), a autoridade militar realizava prisões não comunicadas ao poder judiciário e aos familiares do preso, bem como não apresentava ao próprio preso a justificativa da prisão, impedindo que ele tivesse oportunidade de defesa e resgate de sua liberdade

Além disso, houve também a suspensão do direito de impetrar habeas corpus e há inúmeros registros históricos de práticas de tortura como método de interrogatório amplamente utilizado na época, as quais, como herança daqueles tempos, ainda hoje acontecem no Brasil, embora a sua prática atualmente constitua crime grave contra os direitos humanos.

Foi após o período da ditadura militar que a discussão em torno dos direitos dos presos ganhou relevância no Brasil. Isso porque, entre 1964 e 1985, foram registrados pela Comissão Nacional da Verdade ao menos 434 mortes e desaparecimentos políticos de vítimas do abuso de poder das autoridades militares. 

Assim, como uma resposta às discussões do período, a Constituição de 1988 – vigente até os dias de hoje – foi promulgada, marcando o fim do período ditatorial. Ela foi a primeira a englobar expressamente no direito do preso à informação, além da obrigatoriedade da identificação do responsável pela prisão, também a identificação daqueles que conduzem o interrogatório. Dessa forma, garante-se os direitos à liberdade, à ampla defesa e à dignidade humana, pelos quais as autoridades detentoras do poder estatal são responsáveis.

A IMPORTÂNCIA DO INCISO LXIV

O inciso LXIV do artigo 5º visa à proteção do preso contra a arbitrariedade da autoridade policial, seja no momento do aprisionamento, seja durante o interrogatório, garantindo, assim, seu direito à ampla defesa.

 Nesse sentido, a preservação do direito à defesa contra prisão e interrogatórios ilegais, por meio da informação sobre a identidade dos agentes, constitui a base para a garantia do direito à liberdade e da proteção à dignidade da pessoa humana.

Atualmente, o Brasil apresenta um número crescente de população carcerária. Segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), até junho de 2019, havia 758.676 presos no Brasil, dentre os quais 253.963 estavam presos provisoriamente, aguardando julgamento. Ou seja, aproximadamente 33,5% da população carcerária no país é constituída por indivíduos que ainda não foram condenados à prisão em definitivo, isto é, em última instância. 

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), assim como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, identificou que a aplicação arbitrária e ilegal da prisão provisória é um problema crônico em muitos países da região – que gera outros problemas como a superlotação e a falta de separação entre processados e condenados. 

Diante de tal cenário, o direito à informação sobre a identidade da autoridade policial responsável pela prisão ou interrogatório continua a ser medida importante para combater a arbitrariedade e a ilegalidade dos atos da autoridade policial, possibilitando que aqueles que cometam abusos de autoridade sejam devidamente identificados e responsabilizados.

É preciso lembrar, neste ponto, que, se o Estado existe para proteger direitos fundamentais dos cidadãos, seus órgãos de controle do crime também existem precisamente para esse fim. É, pois, por essa razão que a identificação e a responsabilização de agentes estatais que cometam crimes contra cidadãos fazendo uso do poder do Estado são essenciais em uma democracia.

O INCISO LXIV NA PRÁTICA

A materialização do direito à informação sobre a identidade da autoridade policial responsável pela prisão ou pelo interrogatório se dá, em um primeiro momento, na emissão da nota de culpa e, posteriormente, na realização da audiência de custódia. Além desses mecanismos, esse direito está resguardado no artigo 16 da Lei de Abuso de Autoridade ao definir como crime a não identificação ou a falsa identificação da autoridade policial.

Assim, após a prisão em flagrante, a autoridade deve entregar ao preso a nota de culpa contendo a assinatura da autoridade policial, o motivo da prisão e o nome do condutor e das testemunhas. Isto posto, é com o recebimento da nota de culpa que o preso se informa formalmente sobre a identidade daquele responsável pelo ato prisional e/ou interrogatório.

Posteriormente, o preso terá a oportunidade de se defender de eventual ilegalidade do ato praticado pela autoridade policial no momento da audiência de custódia, marcada pelo juiz em até 24 horas após o conhecimento da prisão em flagrante. 

A audiência de custódia tornou-se obrigatória no sistema judiciário brasileiro após o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015, cujo pedido era o reconhecimento da violação de direitos fundamentais da população carcerária, como consequência direta da superlotação do sistema.

Desde então, diversas organizações governamentais e não governamentais iniciaram estudos e produziram relatórios sobre o impacto das audiências de custódia no sistema carcerário. Nesses estudos, foi apontado que, apesar do elevado número da população carcerária no Brasil, as audiências de custódia têm contribuído para a soltura de uma quantidade significativa de presos em flagrante. 

Entre os estudos, vale mencionar o do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), em conjunto com o CNJ, que analisou resultados de audiências de custódia nos 27 estados brasileiros. Segundo informação disponibilizada pelo CNJ ao IDDD, entre fevereiro de 2015 e junho de 2017, foi realizado um total de 258.485 audiências de custódia. Desse total:

  • 115.497 casos resultaram em liberdade (44,68%);
  • 142.988 casos resultaram em prisão preventiva (55,32%);
  • em 12.665 casos houve alegação de violência no ato da prisão (4,90%);
  • em 24.669 casos houve encaminhamento social/assistencial (10,70%).

Nota-se que em quase metade das prisões em flagrante, a realização da audiência de custódia resultou em liberdade do preso, com o expressivo número de 103.669 pessoas que tiveram o seu direito à liberdade garantido enquanto aguardam julgamento final referente ao caso.

No entanto, o relatório produzido pelo IDDD em 2019, sobre estudos e análises conduzidos em 2018, aponta que ainda há muitos problemas e obstáculos para a garantia ao direito básico à liberdade e aos princípios dos direitos humanos por meio das audiências de custódia. 

Segundo o documento, o fato de as audiências de custódia serem realizadas, muitas vezes, dentro do complexo policial dificulta a defesa do preso, que não se sente protegido para relatar casos de prática de tortura e abusos da autoridade policial ou de agentes carcerários. Assim, tem-se apontado a importância de que essas audiências sejam presenciais e realizadas no ambiente de maior neutralidade das salas de audiência dos fóruns judiciais.

CONCLUSÃO

Tendo em vista o acima exposto, conclui-se que são necessários esforços para garantir o direito à informação do preso. Isso porque ainda há muito o que avançar em termos de proteção, garantia e efetivação dos direitos fundamentais de cidadãos em situação de cárcere.


Esse conteúdo foi publicado originalmente em agosto/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.


Autores:

Julia Touriño de Seixas

Mariana Mativi

Matheus Silveira


Fontes:

Instituto Mattos Filho;

Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;

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