INCISO LIII – IMPARCIALIDADE E INDEPENDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO
Você sabia que a nossa Constituição garante a imparcialidade e a independência do poder judiciário? É sobre esse assunto que o inciso LIII do artigo 5º trata. Esse também é um dos incisos que compõem o princípio do juiz natural, que explicaremos neste texto.
Quer saber mais sobre como a Constituição define estes conceitos e por que eles são tão importantes? Neste texto, vamos passar pela história, relevância e como são aplicados na prática! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto Artigo Quinto.
Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros.
O QUE É O INCISO LIII?
O inciso LIII do artigo 5º, da nossa Constituição Federal de 1988, define que:
ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
Esse inciso trata do chamado princípio do juiz natural, que busca impedir a manipulação do órgão julgador e garantir a imparcialidade e a independência do Poder Judiciário na aplicação da legislação ao caso concreto. Ou seja, ele determina que a autoridade competente para julgar um caso ou pessoa deve obedecer às regras fixadas anteriormente ao seu processamento, impedindo que se escolha arbitrariamente determinado julgador, antecipando certo resultado do julgamento.
Você pode ter lido o inciso e pensado: “mas onde isso está escrito?”. O que acontece é que, ao determinar que um cidadão só poderá ser julgado por uma autoridade competente, o inciso trata de um direito fundamental: a garantia de um julgamento neutro, legal e legítimo. Além disso, define que um cidadão só poderá ser julgado por um indivíduo que esteja no exercício regular do seu cargo.
O inciso LIII está intimamente ligado ao inciso XXXVII do mesmo artigo 5º, que proíbe a criação de tribunais de exceção, instituídos de forma excepcional. Os tribunais de exceção são proibidos porque costumavam ser compostos por indivíduos sem as condições necessárias de imparcialidade.
Além disso, o princípio do juiz natural estabelece também que ninguém poderá ser julgado por um tribunal formado depois que o suposto crime já aconteceu. Ou seja, para que um tribunal tenha competência para julgar um cidadão, ele deverá ter sido constituído e legitimado antes da data da conduta que será julgada.
HISTÓRICO DESSE DIREITO
O princípio do juiz natural é uma reação a diversas práticas estatais arbitrárias no julgamento de indivíduos. Exemplos são: os privilégios das justiças senhoriais, em que estratos sociais eram julgados por órgãos diferentes; a seleção pelos governantes dos julgadores de sua preferência; e a criação de tribunais de exceção, como dito, estabelecidos após os fatos que devem decidir.
No Brasil, o princípio do juiz natural foi incorporado já na primeira Constituição, de 1824. Ela previa que: “ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, por virtude de lei anterior e na forma por ela estabelecida”. A partir daí, o princípio do juiz natural esteve presente em todas as Constituições brasileiras posteriores.
A IMPORTÂNCIA DO INCISO LIII
O princípio do juiz natural é fundamental para o Estado Democrático de Direito, no qual as leis são criadas pelo povo e para o povo, respeitando os direitos fundamentais e coibindo o uso abusivo do aparato estatal.
Isso acontece porque o princípio garante aos indivíduos um julgamento conduzido pelo órgão competente do poder judiciário ao definir regras sobre o âmbito de atuação dos juízos e tribunais, bem como para a nomeação de juízes. Ou seja, o inciso LIII do artigo 5º previne comportamentos autoritários do Estado e evita que um juiz específico seja escolhido pelos governantes para julgar determinado caso, o que tornaria o julgamento parcial e, portanto, injusto.
O princípio do juiz natural também é respeitado naqueles processos penais (cuja pena pode ser a prisão) julgados pelo tribunal do júri. O júri tem competência para julgar crimes dolosos contra a vida e é composto por cidadãos comuns, que são escolhidos após o fato e não precisam ter conhecimento jurídico. Apesar de parecer estranho, o júri não é um tribunal de exceção. Sua competência e composição são previstas pelo inciso XXXVIII do artigo 5º, cujo propósito é ampliar a participação popular na efetivação da justiça.
Além disso, existem diversas regras no ordenamento jurídico que distribuem competências originárias para as diferentes Justiças (como a Comum, a Federal e a Militar) em razão da matéria do julgamento.
Essa distribuição também pode ser feita em função da pessoa a ser julgada, que, por ocupar altos cargos hierárquicos ou exercer funções públicas, não segue o mesmo caminho jurídico de um cidadão comum.
Trata-se do foro especial por prerrogativa de função ou foro privilegiado, que confere um trâmite especial de julgamento para essas figuras. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionou por meio da Ação Penal 937 do Rio de Janeiro, na qual o Ministro Roberto Barroso esclareceu que essa prerrogativa só ocorre quando os crimes forem cometidos durante o mandato e em função do cargo que ocupam.
Desse modo, a ideia não é proteger a autoridade, mas o exercício da função pública contra perseguições indevidas ou tensões políticas e disputas regionais. E, em todo caso, o órgão competente para o julgamento é definido de forma prévia e geral, e não de forma especial e excepcional para julgar um fato determinado praticado por uma autoridade específica.
No início de 2019, o foro privilegiado foi muito questionado quando o STF suspendeu as investigações conduzidas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro contra Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro. Segundo uma reportagem veiculada pelo jornal El País, as investigações estariam sendo conduzidas para apurar movimentações financeiras incomuns conduzidas por Queiroz.
O argumento utilizado para cessar as investigações foi que Flávio Bolsonaro, ao assumir o cargo de senador, teria a prerrogativa de ter suas investigações conduzidas por instâncias superiores. O problema é que a investigação teria se iniciado antes mesmo de Flávio Bolsonaro assumir o cargo de senador.
Além disso, os fatos não teriam vínculo com a atividade parlamentar. Esse caso é complexo e foi amplamente divulgado, trazendo ao debate a aplicabilidade do foro privilegiado e do princípio do juiz natural.
O INCISO LIII NA PRÁTICA
Como já explicamos, o inciso LIII do artigo 5º define que os cidadãos só podem ser julgados e sentenciados pelas autoridades competentes. Por isso, todos os processos devem necessariamente ser julgados apenas pelo poder judiciário e não podem sofrer interferências de outros poderes, como o legislativo (parlamentares) ou o executivo (governantes).
Esse inciso ajuda a garantir a própria independência do poder judiciário, definindo que os casos devem ser julgados de maneira imparcial e protegendo a democracia de um possível governo que queira intervir em julgamentos de seu interesse. Além disso, a Constituição ainda define diferentes justiças para julgar casos distintos. Cada uma com sua respectiva competência, sendo elas:
- Justiça Comum Federal (artigos 106 a 110) e Estadual (artigos 125 a 126) ;
- Justiça do Trabalho (artigos 111 a 116);
- Justiça Eleitoral (artigos 118 a 121); e
- Justiça Militar (artigos 122 a 124);
Dessa maneira, cada caso deve ser analisado e destinado a uma dessas cinco Justiças, em que será recebido por um juiz competente para julgar e sentenciar de forma adequada. Essa é mais uma das formas que este inciso manifesta-se na prática. Por exemplo, a Justiça Eleitoral jamais julgará um crime militar, bem como a Justiça do Trabalho jamais julgará um crime eleitoral.
CONCLUSÃO
O princípio do juiz natural, refletido em parte pelo inciso LIII do artigo 5º, garante ao cidadão brasileiro que a autoridade competente para julgar seu processo não sofrerá manipulações para comprometer a imparcialidade e a independência de seu julgamento. Além disso, este inciso também previne a ação de governantes autoritários, já que define que apenas o poder judiciário poderá julgar e sentenciar um cidadão, de acordo com regras preexistentes sobre que órgão jurisdicional deverá decidir sobre a questão.
Por isso, a garantia da imparcialidade e da independência dos juízes pode e deve ser muito debatida e conhecida por toda a sociedade.
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em junho/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Sobre os autores:
Nathalia Fraifeld
Estagiária de Propriedade Intelectual e Tecnologia da Informação do Mattos Filho
Matheus Silveira da Silva
Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.
Fontes:
- Instituto Mattos Filho;
- Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;