Artigo Quinto

PUBLICADO EM:
julho 23, 2019

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INCISO XI – VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO: O QUE A CONSTITUIÇÃO NOS GARANTE?

“A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”

VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO: O QUE A CONSTITUIÇÃO NOS GARANTE?

Você sabia que a Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, garante a segurança do seu domicílio? Em seu Artigo 5º estão previstos os chamados direitos fundamentais, que têm como objetivo assegurar uma vida digna, livre e igualitária a todos. Ele tem 79 incisos que descrevem esses direitos, e a Civicus e a Politize!, em parceria com o Instituto Mattos Filho, desenvolveram um projeto para explicar cada um deles. Agora, falaremos sobre o Inciso XI, que trata da violação de domicílio. Para ver outros incisos, confira a página exclusiva sobre o Artigo Quinto.

INCISO XI – INVIOLABILIDADE  DO DOMICÍLIO

O inciso XI do Artigo 5º define que:

A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial […].

O inciso consagra o chamado direito à inviolabilidade do domicílio. Para os que violam a norma, as sanções estão definidas no Código Penal

O inciso XI também está diretamente ligado ao direito à intimidade, garantido no inciso X do mesmo artigo, já que a casa é entendida como refúgio ou espécie de santuário, espaço imprescindível para o desenvolvimento da pessoa humana.

Porém, o que é considerado “casa”? Encontramos a resposta no art. 150 do Código Penal, que define casa como:

  • “qualquer compartimento habitado” – aqui estão incluídas desde residências até veículos utilizados como habitação, por exemplo, trailers e cabines de caminhão;
  • “aposento ocupado de habitação coletiva” – como hotel, pensão, entre outros. Contudo, sendo abertas ao público, habitações coletivas podem ser acessadas normalmente e não são consideradas como casas. Ou seja, os quartos ocupados pelos cidadãos são invioláveis, mas nas áreas de comum acesso de um hotel, por exemplo, pode-se entrar livremente quando o estabelecimento estiver aberto;
  • “compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade” – em outras palavras, o local de trabalho do cidadão;

Vale dizer que não está incluído no conceito de casa estabelecimentos como bares, casas de jogo e outros locais semelhantes.

EXCEÇÕES À INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO

Além de definir a ilegalidade da violação de domicílio, o inciso XI também prevê situações em que entrar na casa de alguém sem sua autorização não é crime. Tais exceções são descritas a seguir.

Flagrante delito

Quando alguém é flagrado cometendo um crime, as autoridades, e somente elas, têm o direito de entrar no local para deter o infrator. Esse direito independe do horário ou do lugar, seja o local uma casa ou ambiente público, e não é tratado como uma violação de domicílio. Segundo o Código Penal, a definição de flagrante delito é:

Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:

I – está cometendo a infração penal;

II – acaba de cometê-la;

III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

Prestação de socorro ou desastre

Há um caráter emergencial na prestação de socorro assim como quando ocorrem desastres, que permite que a casa seja adentrada sem a permissão do dono, em qualquer horário. 

Imagine que alguém se encontra preso em casa durante uma enchente, situação configurada como desastre. Para prestar socorro, os bombeiros – ou qualquer outra pessoa – não precisam de permissão para entrar no local. Logo, não há violação de domicílio.

Determinação judicial

Caso seja necessário entrar na casa de alguém para alguma finalidade, por exemplo, para investigar um crime, é necessária a permissão do morador ou uma determinação judicial. Nesses casos, não há que se falar em violação de domicílio.

No caso de ingresso no domicílio para cumprimento de ordem judicial, permite-se a entrada apenas durante o dia. Houve bastante debate no meio jurídico sobre o que é considerado “dia”, e o consenso por muito tempo foi de que compreenderia o período de luz solar, tendo em vista as variações climáticas, sazonais, regionais etc. 

Entretanto, recentemente, com a vigência da Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019), há um novo parâmetro objetivo a respeito do período em que é permitido o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar: entre 5h e 21h.

Ou seja, as autoridades não podem entrar em casas entre as 21h e às 5h da manhã, mesmo quando estão portando determinação judicial. Caso essa regra não seja respeitada, qualquer prova obtida será considerada ilegal. 

Você já deve ter percebido que a Polícia Federal  cumpre mandados no domicílio de uma pessoa investigada logo pela manhã. Isso acontece para que não haja uma violação de domicílio irregular, o que acabaria invalidando qualquer prova encontrada.

Para evitar a emissão de mandados judiciais que sirvam como carta branca para o ingresso em domicílios, analisa-se também a legitimidade da autorização judicial concedida. Dessa forma, a fim de que não haja violação de domicílio – ou seja, não haja desrespeito ao inciso XI –, o mandado deve ser expedido com justa causa. Isso significa respeitar as condições definidas no art. 243 do Código Penal, justificando o motivo de aquela pessoa ser suspeita e a necessidade de que sua casa seja investigada. Portanto, segundo a lei, o mandado de busca deverá:

I – indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem;

II – mencionar o motivo e os fins da diligência [investigação];

III – ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir.

ESCUTA E CÂMERA SÃO FORMAS DE VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO?

Embora o inciso use a palavra “penetrar”, não é só quando alguém entra em sua casa que ocorre violação de domicílio. Se houver escutas e câmeras filmando o que acontece dentro de seu domicílio, esse material é ilegal. 

É proibido o uso de recursos técnicos para a escuta e/ou a visualização do que ocorre no espaço da privacidade pessoal e profissional do titular do direito, sendo somente permitido em alguns casos, apenas com as devidas atribuições legais, como autorizações judiciais.

Atualmente, os drones configuram a principal forma de violação de domicílio e privacidade nesse formato. Por conseguirem sobrevoar as propriedades e estarem embutidos com câmeras, esses aparelhos são capazes de registrar perfeitamente o local e são controlados remotamente, aumentando a chance de o infrator manter seu anonimato.

PERSPECTIVA HISTÓRICA: COMO SURGIU O INCISO XI?

A experiência constitucional dos Estados Unidos trouxe, no art. X do Bill of Rights do estado de Virginia, um precursor do direito à inviolabilidade do domicílio, ao consagrar, desde 1776, a proteção contra as ordens de buscas domiciliares arbitrárias.

A questão da inviolabilidade do domicílio sempre foi citada nas Constituições do Brasil. Desde a época do Império, a casa era tida como espaço inviolável. Em nossa primeira Constituição, de 1824, lia-se, no Capítulo III, que:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. […]

VII. Todo o Cidadão tem em sua casa um asylo inviolavel. De noite não se poderá entrar nella, senão por seu consentimento, ou para o defender de incendio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada nos casos, e pela maneira, que a Lei determinar.

Vale dizer que a ditadura militar no Brasil, a Constituição de 1967 e depois a Emenda Constitucional nº 01/69 asseguravam, ao menos textualmente, a inviolabilidade do domicílio. 

VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO POR AUTORIDADES

Ao falar em violação de domicílio, é comum que as pessoas se preocupem com invasões relacionadas a indivíduos com intenção de roubo ou assalto. Entretanto, a violação de domicílio pode vir daqueles que têm a função de nos proteger e garantir nossos direitos, como os agentes de segurança pública. 

Nesses casos, por terem autoridade concedida pelo Estado, pode ocorrer deturpações da situação para encaixá-la na autorização de ingresso no domicílio nos moldes constitucionais. 

Sobre esse tipo de ocorrência, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou um exemplo icônico em 2017. Nele, um homem teve sua casa vasculhada por policiais que não tinham uma autorização judicial para realizar a busca. Os agentes encontraram oito gramas de crack e 0,3 grama de cocaína na residência e realizaram a prisão em flagrante do morador, acusando-o de tráfico de drogas.

Entretanto, o ponto avaliado pelo STF foi a legitimidade da ação policial. A busca foi motivada pelo fato de os policiais, que faziam uma operação contra o tráfico na cidade paulista de Americana, terem suspeitado que o homem em questão os estaria filmando. A partir dessa suspeita, abordaram o homem e realizaram uma busca em sua residência sem um mandado judicial.

Lembra que falamos, no início do texto, que para que as provas obtidas sejam consideradas lícitas – ou seja, válidas num processo judicial – é necessário que a ação de busca que permitiu encontrar tais evidências esteja de acordo com a lei? No caso analisado pelo STF, os policiais não tinham permissão judicial para quebrar a regra de inviolabilidade do domicílio. Assim, houve uma violação de domicílio ilegal, que não se encaixava nas exceções previstas no inciso XI do art. 5º da Constituição.

De acordo com o STF, “os policiais agiram irritados pelo fato de estarem sendo filmados durante o desenvolvimento da operação: não vivemos em um regime ditatorial no qual esse tipo de comportamento do cidadão é proibido”. O ministro Celso de Mello ainda afirmou que “a busca sem mandado judicial só seria justificada por uma fundada suspeita da prática de crime, o que não se verificou no caso”. 

Dessa forma, a decisão do STF – a qual foi pautada no inciso XI do art. 5º – não considerou as provas válidas, pois foram obtidas por meio da “intuição” dos policiais. Por mais que esses agentes possam, apenas com base em uma suspeita, realizar uma abordagem em ambiente público, o sentimento de desconfiança não é o suficiente para que seja realizada uma violação de domicílio.

COMO A VIOLAÇÃO ILEGAL DE DOMICÍLIO É COMBATIDA?

Além do inciso XI, vários trechos da legislação brasileira criminalizam a violação de domicílio. O art. 150 do Código Penal é um dos principais mecanismos que garantem a privacidade e a segurança da casa de uma pessoa. Esse artigo determina que quem violar esse direito cumprirá pena de um a três meses de detenção ou pagamento de multa.

 A pena é mais dura, indo de seis meses a dois anos, “se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo [desabitado], ou com o emprego da violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas”. 

Quando a violação de domicílio é realizada por agentes oficiais, o autor pode incorrer em Abuso de Autoridade, na configuração da Lei 13.869/19. A legislação define como crime:

Art. 22.  Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

  • 1º  Incorre na mesma pena, na forma prevista no caput deste artigo, quem:

I – coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;

II – (VETADO); III – cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).

Além das normas nacionais, tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário também garantem o caráter da casa como local inviolável, entre eles, a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, e a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, elaborada e assinada pelos países-membro da Organização das Nações Unidas (ONU).

O fato de tantas leis reforçarem o direito à não violação de domicílio demonstra a importância do inciso XI do art. 5º. A casa de um indivíduo é seu refúgio e ninguém, seja pessoa comum ou que tenha alguma autoridade, pode atentar contra esse direito fundamental. 

  • Esse conteúdo foi publicado originalmente em julho/2019 e atualizado em agosto/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.

Autores:
  • Beatriz de Almeida Borges
  • Mariana Mativi
  • Pâmela Morais

Fontes:
  1. Minuto Constitucional #20, Art. 5º, inc. XI, Casa Asilo Inviolável
  2. Artigo 150 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940
  3. http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11976
  4. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=303364
  5. Invasão de domicílio – Jus.com.br
  6. http://www.justificando.com/2017/04/24/o-stf-e-violacao-domicilio-enfim-uma-decisao-conforme-constituicao-federal/
  7. A arbitrariedade da invasão de domicílio como método de obtenção de provas

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