CRIMINALIZAÇÃO DO RACISMO: UMA GARANTIA FUNDAMENTAL
A prática de racismo ainda persiste na sociedade brasileira. Ela viola os direitos e liberdades individuais, o que levou o constituinte a definir o crime de racismo no inciso XLII do artigo 5º da Constituição de 1988. A Carta visa, assim, assegurar a concretização desses direitos ao estabelecer punições àqueles que os violam.
Quer saber mais detalhadamente como a Constituição define este crime e por que a sua criminalização é relevante, bem como a história dessa garantia e como ela é aplicada na prática? Continue Conosco! A Politize! em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho irão descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto “Artigo Quinto”.
Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros.
O QUE É O INCISO XLII?
O inciso XLII do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:
a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
Assim, o inciso garante o direito à não discriminação de qualquer indivíduo em razão de raça, cor ou etnia, bem como prevê que a sua pena será definida em lei. Cabe pontuar que essa é uma forma de promoção do direito à igualdade, garantia essencial da democracia.
Em razão da gravidade da conduta e da intenção constitucional de acabar com a discriminação de raça, cor ou etnia no Brasil, o acusado não poderá ser posto em liberdade mediante o pagamento de fiança, e o crime não prescreverá.
Dessa forma, a intenção constitucional de reprovação do racismo é tamanha que quem cometer tal crime poderá ser responsabilizado a qualquer tempo com uma pena necessariamente de reclusão.
O HISTÓRICO DA CRIMINALIZAÇÃO DO RACISMO
A punição para a conduta de racismo foi prevista pela primeira vez na Constituição Federal de 1967, que determinava: “O preconceito de raça será punido pela lei”, previsão mantida na Emenda Constitucional (EC) n. 1/1969.
Apesar da intenção constitucional de punir o racismo, essa conduta era prevista apenas como um ilícito, não como um crime. Assim, ela poderia ter natureza cível ou penal. Em outras palavras, o legislador, ao editar leis infraconstitucionais, poderia ou não tipificar o racismo como crime, pois não havia comando constitucional para sua criminalização.
A nossa Constituição atual, de 1988, foi a primeira a tratar expressamente o racismo como crime.
Como o objeto da tutela penal é o interesse público em sentido amplo, o mandamento constitucional trouxe de forma mais contundente a indicação de que a prática racista ofende direitos fundamentais da sociedade. Assim, a criação de leis punitivas para a prática do racismo é responsabilidade obrigatória do Estado brasileiro, buscando a proteção da coletividade.
A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL DO RACISMO
O inciso XLII do artigo 5º está diretamente vinculado ao direito à igualdade material e, mais especificamente, à tutela das diferenças, ou seja, a busca pela igualdade real por meio do tratamento diferente de pessoas em situações diferentes. A intenção é reduzir a desigualdade, no caso racial, tal qual previsto no texto da Constituição Federal. Tudo isso tem extrema relevância no Brasil, em que a maioria da população – 54,9%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – é negra (o conjunto de pessoas pretas e de pessoas pardas) e, ainda assim, sofre racismo em todas as esferas da vida.
Nesse sentido, convém destacar a situação das pessoas negras em nosso país:
- dentre os desempregados, 67% são negros (IBGE, 2017);;
- dentre os encarcerados, 64% são negros (IBGE, 2016);
- a cada 10 mães mortas durante o parto, seis são negras (Ministério da Saúde, 2014);
- apenas 19,1% dos magistrados são negros (Censo do poder judiciário, 2014).
Dessa maneira, podemos ver o quanto a sociedade ainda reflete as marcas da escravização nos dias atuais, fazendo com que a população negra tenha baixos índices de educação e emprego e, por conseguinte, altos índices de encarceramento e pobreza.
Assim, reafirma-se a necessidade de políticas públicas que visem ao combate ao racismo e que ofereçam igualdade de oportunidades a pessoas de todas as raças, cores e etnias prezando pela igualdade.
A CRIMINALIZAÇÃO DO RACISMO NA PRÁTICA
Na prática, a criminalização do racismo foi assegurada pela Lei do Racismo (Lei n. 7.716/1989), que concretizou a demanda constitucional do inciso XLII do artigo 5º, determinando as punições para crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero se enquadram, por analogia, em discriminação de “raça” e, portanto, também configuram crime de racismo.
Outro caso emblemático envolvendo esse direito foi o do editor Siegfried Ellwanger, acusado de disseminar ideias racistas contra judeus em seus livros. O STF analisou se o preconceito contra os judeus enquadrava-se no conceito de racismo e se as manifestações de Ellwanger seriam protegidas pelo direito à liberdade de manifestação, expressão e pensamento. Entendeu que as ideias propagadas pelo autor eram essencialmente racistas e não configuravam exercício legítimo da liberdade de expressão.
A efetividade dos tipos penais que criminalizam o racismo foi, em grande medida, afetada pela criação do tipo penal de injúria racial pelo artigo 140, § 3º, do Código Penal. Isso porque a injúria racial concentra grande parte da caracterização dos atos discriminatórios envolvendo raça. Entretanto, cabe pontuar que a injúria racial é diferente do racismo, como podemos analisar no quadro a seguir:
→ O infográfico do Instituto Mattos Filho abaixo explica, em detalhes, essa equiparação: https://www.mattosfilho.com.br/wp-content/uploads/2022/10/infografico-injuria-racial-vf-20221028.pdf
CONCLUSÃO
A criminalização do racismo prevista na Constituição Federal brasileira busca combater o racismo estrutural da nossa sociedade, indicando que sua prática ofende não só o direito individual, mas também o coletivo, ambos sob a proteção do Estado.
Nesse sentido, é obrigação do poder legislativo dispor de mecanismos que concretizem a punição dessa conduta, por meio de leis infraconstitucionais. Cabe também aos demais operadores do direito dar execução às previsões constitucionais e legais para que não se torne uma norma sem eficácia social. Nesse contexto, é também importante o entendimento das diferenças entre racismo e injúria racial anteriores à equiparação feita pelo STF, e o entendimento da mudança posterior a ela. Também vale a inclusão de discriminações em relação à identidade de gênero, à orientação sexual, à religião, à raça ou à etnia como crimes racistas.
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em março/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Autores:
- Rodrigo Bezerra de Melo
- Mariana Mativi
- Matheus Silveira
Fontes:
- Instituto Mattos Filho;
- Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;