INCISO XLVIII – CRITÉRIOS PARA O CUMPRIMENTO DA PENA
Você sabia que a Constituição impõe alguns critérios para o cumprimento da pena de pessoas condenadas? O inciso XLVIII do artigo 5º da Constituição Federal define esses critérios genericamente.
Quer saber mais sobre como a Constituição define esses critérios e por que eles são tão importantes, bem como a sua história e como são aplicados na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, descomplicará mais um direito fundamental nessa série do projeto “Artigo Quinto”.
Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros.
O QUE É O INCISO XLVIII?
O inciso XLVIII do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:
a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;
A redação do inciso XLVIII do artigo 5º da Constituição traz critérios para a execução da pena de prisão. Encontra-se entre os parâmetros que devem ser observados pelo Estado ao cercear a liberdade de alguém, pois mesmo que um indivíduo seja condenado por crime, seus direitos e garantias fundamentais ainda devem ser respeitados.
O inciso XLVIII está relacionado ao princípio da individualização da pena, previsto no inciso XLVI, cuja finalidade é evitar que a pessoa seja submetida a uma pena desproporcional ao resultado ou perigo gerado pela sua conduta, ou às características pessoais do agente.
HISTÓRICO DESSA GARANTIA
A garantia prevista no inciso XLVIII do artigo 5º não é uma inovação. A Constituição do Império do Brasil de 1824, no inciso XXI do artigo 179, em sua redação original, determinava que: “As cadeias serão seguras, limpas, bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias, e natureza dos seus crimes”.
Contudo, as constituições posteriores omitiram essa garantia. O assunto somente voltou a ganhar relevância constitucional por meio da Constituição Federal de 1988. Vale dizer que esse tema ganhou destaque internacional a partir do momento em que países e nações passaram a se preocupar com assuntos dessa natureza, sobretudo na segunda metade do século XX.
Em junho de 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) atualizou as Regras Mínimas para Tratamento de Presos, também chamadas de “Regras de Mandela”, criadas em 1955 e alteradas em 2015.
No Brasil, de acordo com o artigo 7º das Regras Mínimas para Tratamento dos Presos previstas na Resolução n. 14/1994 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), as diferentes categorias de reclusos devem ser mantidas em estabelecimentos penitenciários separados ou em zonas distintas de um mesmo presídio.
Nesse último caso, os critérios de separação são: gênero, idade, antecedentes penais, razões da detenção e medidas necessárias a aplicar, de forma que:
- em geral, homens e mulheres serão alocados em instalações penais separadas;
- em estabelecimentos mistos, os locais destinados às mulheres serão completamente separados;
- presos preventivos serão separados daqueles que estão presos definitivamente (os presos provisórios serão recolhidos em cadeias públicas ou centros de detenção provisória, ao passo que os presos em caráter definitivo, ficam em presídios, penitenciárias ou prisões);
- pessoas presas por dívidas ou outros reclusos da área civil serão mantidas separadas de reclusos do foro criminal; e
- crianças e adolescentes submetidos à medida de internação serão recolhidos em estabelecimentos próprios.
Entretanto, essa normativa ainda encontra dificuldades em repercutir plenamente na política pública carcerária no Brasil.
A IMPORTÂNCIA DO INCISO XLVIII
Uma das facetas mais importantes do inciso XLVIII é sua relação com a garantia da individualização da pena. A partir desse princípio, um juiz sentenciante – aquele que determina o quantum de pena, bem como o regime inicial de cumprimento – é obrigado a conhecer a conduta do sentenciado para adequá-la à reprimenda. Ele deve equilibrar a gravidade do crime e a sua punição. Isso inclui o modo e o local de cumprimento da pena, que deve diferenciar apenados com base em fatores como a gravidade do seu delito.
Além disso, a principal finalidade da pena é a ressocialização. Assim, durante o período de reclusão ou detenção, o Estado deve proporcionar todas as condições possíveis para que o indivíduo possa voltar à vida em sociedade.
Segundo os dados do relatório do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) elaborado no ano de 2017, o Brasil tem cerca de 1.500 unidades prisionais, que abrigam mais de 726.354 presos. Essa é uma taxa de ocupação de 197,4%. Ou seja, o sistema carcerário nacional conta com apenas 400 mil vagas disponíveis. Assim, as cadeias e os presídios no Brasil comportam menos da metade das pessoas atualmente recolhidas.
Isso é problemático porque a superlotação gera condições insalubres e desumanas. Rebeliões e disputas entre facções tornam o ambiente prisional ainda mais perigoso. Um exemplo foi a rebelião ocorrida em um presídio no interior do Pará em 2019, que deixou mais de 57 pessoas mortas.
Segundo o relatório Infopen Mulheres 2017, existem 37.828 detentas no Brasil, 5.991 acima da capacidade. A legislação penal brasileira estabelece, por sua vez, que as mulheres devem cumprir pena em estabelecimento próprio, observando-se os direitos e os deveres inerentes à sua condição penal.
No mais, os estabelecimentos prisionais destinados às mulheres deverão ter, exclusivamente, agentes mulheres na segurança de suas dependências. Essa divisão de gênero busca, entre outras coisas, garantir a integridade das presas considerando os possíveis riscos de abusos sexuais e de prostituição no cárcere.
O INCISO XLVIII NA PRÁTICA
Todos os princípios definidos na Constituição Federal carecem de uma legislação infraconstitucional para colocá-los em prática – com o inciso XLVIII não é diferente. Dessa forma, são exemplos de normas jurídicas que buscam garantir a efetivação do cumprimento da pena de forma individualizada:
- Código Penal (artigos 32 a 52);
- Código de Processo Penal (artigos 150, 152, 295, 296, 300, 682, 762 e 766);
- Lei de Execução Penal (artigos 5º a 9º, 52 e 82 a 104);
- Lei n. 11.671/2008 (dispõe sobre a transferência e a inclusão de presos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima);
- Decreto n. 6.877/2009 (regulamenta a Lei 11.671/2008);
- Regras de Mandela (regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos).
Ademais, em 2014, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação publicou a Resolução Conjunta n. 1/2014, sobre o acolhimento da população LGBT+ em unidades prisionais. Ela dispõe que esses indivíduos devem ser apenados em espaços de vivência específicos nas unidades prisionais masculinas, a fim de garantir a sua integridade física.
Ainda, de acordo com a Resolução, pessoas trans têm o direito de cumprir pena em estabelecimento feminino e o Estado deverá garantir tratamento igual entre as mulheres transgênero e cisgênero. Também estabelece que será facultativo o uso de roupas femininas ou masculinas e a manutenção de cabelos compridos, garantindo as características pessoais de acordo com sua identidade de gênero.
Vale pontuar que, independentemente da política de acolhimento, a transferência da pessoa presa para o espaço de vivência específico dependerá de sua expressa manifestação de vontade.
Em março de 2019, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em liminar do ministro Rogério Schietti Cruz, concedeu à pessoa LGBT+ o direito de transferência para estabelecimento prisional compatível com sua identidade de gênero. Essa foi a primeira vez que a Corte analisou o tema. Entretanto, a determinação, por vezes, é desrespeitada devido à infraestrutura precária do sistema prisional brasileiro.
Além disso, 11,75% dos estabelecimentos prisionais abrigam indivíduos em regimes de cumprimento de pena diferentes. Isso significa que pessoas no regime fechado ocupam o mesmo espaço que pessoas no regime semiaberto.
Nesse contexto, muitos presos provisórios (cerca de 40% do total) são mantidos em estabelecimentos destinados às pessoas condenadas. O problema disso é que indivíduos que talvez não tenham cometido crimes convivem com criminosos possivelmente perigosos.
CONCLUSÃO
Pelo exposto, está claro que o inciso XLVIII do artigo 5º da Constituição Federal é fundamental não só para assegurar a ordem nos estabelecimentos prisionais, mas também para garantir a dignidade da pessoa humana. Além disso, mostra-se compatível com a finalidade principal da pena: a ressocialização do apenado e a sua reinserção na sociedade.
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em maio/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Sobre os autores:
Gabrielle Graziano
Advogada – Compliance e ética corporativa
Marcelo Kheirallah
Advogado – Direito penal empresarial
Matheus Silveira
Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.
Fontes:
- Instituto Mattos Filho;
- Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;
- Rebelião deixa 57 mortos no presídio de Altamira – G1.