DISCRIMINAÇÃO DE DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS
A Constituição Federal brasileira garante direitos e liberdades fundamentais, tais quais: o direito à vida, à igualdade, à educação etc. Entretanto, a Assembleia Constituinte (responsável por redigir a Constituição Federal) se preocupou também com a possibilidade de violação desses princípios tão importantes para a vida em sociedade e, por isso, dispôs de mecanismos para sua afirmação. Dessa maneira, é por meio do inciso XLI do artigo 5º da Constituição que a punição de condutas danosas a esses direitos e liberdades fundamentais é definida.
Quer saber mais sobre como a Constituição pune tais condutas e por que é tão importante, bem como a história dessa garantia e como ela é aplicada na prática? Continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, descomplicará mais um direito fundamental no projeto “Artigo Quinto”.
Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa a tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros, por meio de textos com uma linguagem clara.
O QUE É O INCISO XLI?
O inciso XLI do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:
a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
Segundo este inciso, é dever do Estado criar e editar leis para punir quaisquer formas de discriminação que atentem contra os direitos e as liberdades fundamentais, especialmente aqueles previstos nos demais incisos do artigo 5º.
Dessa forma, não foi suficiente que a Constituição Federal previsse a igualdade entre todos os seres humanos. Entendeu-se necessária a criação de normas afirmativas dos direitos e das liberdades fundamentais, bem como de mecanismos para assegurar a punição em casos de violação daqueles, especialmente em caso de discriminação.
Discriminação é toda e qualquer conduta que se traduza em distinção, exclusão ou privilégio cujo objetivo seja negar igualdade de oportunidade ou tratamento aos indivíduos. No entanto, a discriminação não pode ser confundida com o preconceito. Ela é, na verdade, a exteriorização do preconceito para impedir que uma pessoa ou grupo de pessoas tenha acesso às mesmas oportunidades e condições de tratamento a que outros estão sujeitos. Portanto, a discriminação é incompatível com os princípios da igualdade e da isonomia, que são previstos constitucionalmente.
O HISTÓRICO DESTA GARANTIA
A legislação de diversos países, incluindo o Brasil, já previram discriminação. É o que acontecia, por exemplo, na época da escravatura e por muitos anos após sua abolição, quando a discriminação racial era uma prática comum.
Essa discriminação também já aconteceu com as mulheres, que até o início do século XX não tinham direito ao voto e quase nenhum espaço no mercado de trabalho, por exemplo.
Nesse contexto, a atuação de diversos movimentos sociais, como o movimento negro e o movimento sufragista (luta das mulheres pelo direito ao voto), foi decisiva para a busca pela igualdade ao longo do século XX. Foi assim que surgiram os primeiros marcos normativos internacionais que previam o direito à não discriminação, como:
- a Carta das Nações Unidas, de 1945, que criou a Organização da Nações Unidas (ONU) e previu a igualdade entre homens e mulheres e entre os povos;
- a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que prevê que “Todos têm direito à proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”;
- a Convenção n. 100 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1951, que estabelece aos Estados-membros o dever de adotar medidas internas para erradicar a discriminação por gênero para fins de salário, de modo que homens e mulheres sejam remunerados igualmente no exercício de trabalhos de igual valor;
- a Convenção n. 111 da OIT, de 1958, que estabelece a obrigação de os Estados-membros formularem e aplicarem políticas nacionais para promover a igualdade de oportunidade e de tratamento em matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar a discriminação em seu conceito mais amplo – isto é, eliminar:
toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão;
- o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966, que obrigam os Estados-membros a garantir que todos os indivíduos estejam sujeitos à sua legislação “sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação”;
- a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1966, que define a discriminação racial como
qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública;
- a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, que define a discriminação contra a mulher como:
toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 surge nesse contexto de crescente proteção aos direitos humanos. O conteúdo atual do inciso XLI do artigo 5º é a primeira versão proposta na Assembleia Constituinte, mas foi amplamente discutida por diversos deputados e senadores que insistiam em listar os direitos e as liberdades fundamentais que poderiam estar sujeitos à discriminação.
No entanto, seu conteúdo original foi mantido, de modo a evitar que algum grupo de indivíduos fosse excluído da abrangência da norma. Por isso, a redação é genérica e depende da criação de normas infraconstitucionais – leis de menor estatura que a Constituição, que é nossa lei máxima – para surtir efeito.
A luta contra a discriminação continua e avanços ainda são necessários. Mas isso não reduz a relevância do inciso XLI. Ainda que genérico, ele estabelece claramente a intenção da Carta Magna de punir atos discriminatórios, que atentam contra as liberdades fundamentais garantidas por ela.
A IMPORTÂNCIA DO SANCIONAMENTO DE ATITUDES QUE VIOLEM OS DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS
A criação de dispositivos infraconstitucionais que prevejam, por exemplo, a igualdade de gênero e a liberdade religiosa é extremamente importante e representa um marco normativo na evolução dos direitos e das liberdades fundamentais. Porém, a sua eficácia é limitada se não existirem medidas de punição aos atos discriminatórios que atentem contra tais direitos e liberdades.
A discriminação racial, por exemplo, é gritante no Brasil até hoje. Dados compilados pela campanha Vidas Negras da ONU demonstram que:
- 68% das mulheres e 64% dos homens encarcerados são negros;
- em 2015, a taxa de homicídios de jovens negros era de 86,3 a cada 100 mil habitantes, em comparação a 31,9 entre os jovens brancos;
- no Brasil, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado.
A discriminação de gênero também é bastante presente, apesar de existirem diversas normativas nacionais e internacionais sobre o tema. Por isso, alcançar a igualdade de gênero é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
As mulheres ainda são submetidas a uma série de violências e exclusões, o que motivou a criação do movimento ElesPorElas (HeForShe) da ONU Mulheres. Seu objetivo é engajar “homens e meninos na remoção das barreiras sociais e culturais que impedem as mulheres de atingir seu potencial.”
Além disso, a discriminação por orientação sexual tem sido discutida nos poderes judiciário e legislativo. Há também obstrução à acessibilidade de pessoas com deficiência física nas ruas, além de diversas outras formas de discriminação.
Portanto, o inciso XLI do artigo 5º é importante para guiar os legisladores infraconstitucionais na confecção de leis regulamentadoras que protejam os direitos e liberdades fundamentais na prática. É dever deles efetivar a vontade expressa pela Constituição e editar normas para punir e prevenir qualquer tipo de discriminação.
O INCISO XLI NA PRÁTICA
Há um esforço contínuo para erradicar todas as formas de discriminação: por gênero, raça/cor, estado civil, idade, trabalho rural ou urbano, credo religioso, orientação sexual, convicção política ou filosófica, deficiência física ou mental ou condição social.
Nesse sentido, a eficácia do inciso XLI do artigo 5º da Constituição depende da criação de leis específicas que definam punições para atos discriminatórios e implementem políticas públicas voltadas à promoção dos direitos fundamentais.
Nesse contexto, são exemplos de leis que preveem a punição a atos de discriminação:
- Lei n. 7.716/1989, alterada pela Lei n. 9.459/1997: define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito por raça/cor, etnia, religião ou procedência nacional;
- Lei n. 9.029/1995: dentre outras providências, proíbe a exigência de atestados de gravidez/esterilização e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho;
- Lei n. 10.741/2002 (Estatuto do Idoso): criminaliza a discriminação da pessoa idosa;
- Lei n. 10.406/2002 (Código Civil): traz uma série de alterações no sentido de acabar com a discriminação de gênero pela legislação cível, como a partilha desigual de bens e a referência ao homem como chefe da família.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o atraso do Congresso Nacional para incriminar atos que violem os direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGBTQIAPN+. Oito dos onze ministros do STF votaram pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei n. 7.716/1989 até que o Congresso Nacional edite uma lei específica sobre a matéria.
Nesse contexto, vale refletir também sobre a necessidade de discutir a discriminação na sociedade como um todo, por exemplo, dentro das escolas de ensino fundamental e médio. Afinal, considerando que a educação aborda os mais variados assuntos e pode prevenir que mecanismos de punição sejam necessários, ela deve ser usada como uma ferramenta para se alcançar a igualdade.
CONCLUSÃO
Como vimos, é importante que a legislação preveja mecanismos de proteção aos direitos e às liberdades fundamentais de todos os indivíduos, sem distinção, de modo a prevenir a discriminação na prática. Para isso, é essencial que seja dada a devida atenção às necessidades específicas dos diferentes grupos de pessoas, de forma a garantir a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente de cor, gênero, orientação sexual, origem ou classe social.
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em março/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Autores:
- Mariana Mativi
- Matheus Silveira
- Melina Siemerink Biasetto
Fontes:
- Instituto Mattos Filho;
- Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;