IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL E CIVIL DO PROCESSO
O inciso LVIII do artigo 5° da Constituição Federal garante ao cidadão que a identificação criminal não será necessária em casos em que o indivíduo pode se identificar por meio de RG, carteira de trabalho e outras formas de identificação civil – salvo nas hipóteses previstas em lei. Nesse sentido, o presente inciso reflete a realidade do período de redemocratização brasileira, em que a afirmação de garantias para evitar condutas repressivas abusivas por parte do Estado foi fundamental para que o Brasil voltasse a ser um país democrático.
Quer entender o que a Constituição diz sobre essa garantia e qual a importância dela no contexto histórico em que estava inserida? Então, continue conosco! A Politize!, em parceria com a Civicus e o Instituto Mattos Filho, irá descomplicar mais um direito fundamental nessa série do projeto “Artigo Quinto”.
Para conhecer outros direitos fundamentais, confira a página do projeto, uma iniciativa que visa tornar o direito acessível aos cidadãos brasileiros.
DESCOMPLICANDO O INCISO LVIII
O inciso LVIII do artigo 5º, promulgado pela Constituição Federal de 1988, define que:
o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei
Mas o que é “identificação criminal”? E o que é “identificação civil”? Vamos descomplicar esses termos e você verá que, na prática, este inciso não é tão complexo quanto parece:
- Identificação civil: é o documento de identificação, frequentemente emitido por órgãos estatais, que contém nome, data de nascimento, data da emissão, filiação, foto, assinatura e, muitas vezes, a impressão digital do polegar direito do indivíduo. Exemplos de documentos de identificação civil são RG, passaporte e carteiras de identificação profissional, como as carteiras da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) dos advogados.
- Identificação criminal: é um procedimento feito em situações em que há a necessidade de identificação de pessoas por autoridades policiais, órgãos investigativos ou pelo poder judiciário. Consiste na coleta de impressões digitais, fotografias e até mesmo material biológico para identificação, por exemplo, do DNA.
Contudo, cabe pontuar que o inciso LVIII autoriza algumas hipóteses – previstas em lei, que serão apresentadas mais à frente –em que a identificação criminal será necessária, mesmo com a apresentação de documentos de identificação civil.
O HISTÓRICO DESSA GARANTIA
Esse direito fundamental não era previsto no texto das Constituições anteriores à vigente, de 1988. Também não há previsões similares em Constituições de outros países, os quais, em geral, disciplinam o tema em suas legislações infraconstitucionais. Entretanto, o contexto histórico do Brasil no momento de promulgação da Constituição – período da redemocratização – explica o porquê dessa preocupação por parte da Assembleia Constituinte.
Nesse sentido, antes da Constituição de 1988, a identificação criminal do acusado era a regra para todas as pessoas, não sendo levado em consideração se a pessoa possuía documentos para provar sua identidade.
Ou seja, sempre que um cidadão fosse suspeito de cometer algum crime, ele poderia ser exposto à identificação criminal. Essa regra cristalizou-se em 1976, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) editou a Súmula n. 568 admitindo a coleta de impressões digitais pela autoridade policial durante o inquérito em todas as situações, mesmo quando feita a identificação civil.
Entretanto, com o fim do período ditatorial e o início da redemocratização, surge um movimento para romper com o regime anterior e com suas práticas repressivas excessivas. Dessa forma, o constituinte julgou necessário trazer proteções adicionais aos direitos humanos.
O direito fundamental previsto no inciso tem origem também na afirmação de credibilidade e eficiência do serviço de identificação civil realizado pelo próprio Estado. Afinal, se o serviço de identificação civil oferecido pelo Estado é eficiente, não há necessidade de outras formas de identificação, como a criminal, no território brasileiro.
A IMPORTÂNCIA DO INCISO LVIII
O direito aqui trazido relaciona-se com outros direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), a proteção da honra e da imagem (artigo 5º, inciso X) e a presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII). Nesse sentido, o inciso reforça a proteção constitucional dos cidadãos em relação a possíveis abusos do Estado, protegendo-os de situações constrangedoras e arbitrárias.
Ser obrigado a fornecer impressões digitais e fotografias em uma investigação pode ser entendido como uma situação constrangedora e desnecessária, podendo prejudicar a honra, a dignidade e a autoestima da pessoa.
Portanto, não há necessidade de alguém que já tem documentos públicos suficientes para sua identificação ser submetido à identificação criminal somente por estar sujeito a uma possível acusação e investigação. Afinal, a pessoa poderá ser declarada inocente em eventual processo penal, ou poderá nem ser processada. Se, mesmo com a possibilidade de inocência, seu nome, foto e impressões digitais fossem coletados e armazenados, isso poderia prejudicar sua imagem e dignidade.
Mesmo nos casos em que a identificação criminal tenha sido necessária, há a possibilidade de a pessoa requerer a retirada de sua identificação fotográfica do inquérito ou processo, nas hipóteses de:
- não oferecimento da denúncia: quando a denúncia, ato do Ministério Público que formaliza uma acusação criminal perante a Justiça, não é feita;
- rejeição da denúncia: quando a Justiça não encontra motivos suficientes para abertura de um processo contra a pessoa, entre outras hipóteses;
- absolvição: quando o acusado é inocentado ao final do processo criminal, entre outras hipóteses.
Também é possível requerer a retirada do perfil genético dos bancos de dados no caso de absolvição do acusado ou após decorridos 20 anos do cumprimento da pena.
O INCISO LVIII NA PRÁTICA
Este direito fundamental é regulamentado pela Lei n. 12.037/2009, que estabelece as situações excepcionais em que a identificação criminal poderá ser solicitada, mesmo quando houver a identificação civil. São elas:
- o documento apresenta rasura ou indícios de falsificação;
- o documento é insuficiente para identificação (por exemplo, por não ter foto, como a Certidão de Nascimento);
- o indiciado apresenta documentos distintos com informações diferentes entre si;
- a identificação criminal é essencial à investigação, caso em que será necessária autorização judicial para sua realização;
- consta, nos registros policiais, que o indivíduo utilizou outros nomes ou diferentes qualificações em abordagens anteriores;
- o estado de conservação ou a distância temporal e/ou geográfica da expedição do documento civil apresentado impossibilita a identificação das informações essenciais. Por exemplo, quando o documento civil é expedido enquanto a pessoa ainda é muito nova, impossibilitando a identificação do adulto pela foto, ou quando o documento civil é expedido por outro estado da federação ou por outro país que não o Brasil.
Nesse sentido, essa lei dá efetividade ao direito previsto no inciso LVIII do artigo 5º. Afinal, é a Lei n. 12.037/2009 que dita como essa garantia constitucional será aplicada e quando poderá ser relativizada para permitir a identificação criminal.
Entretanto, antes da promulgação da Lei n. 12.037/2009, o referido inciso LVIII era regulamentado pela Lei n. 10.054/2000. Essa lei autorizava a realização de identificação criminal em um número maior de situações do que é atualmente permitido:
- quando o investigado era acusado de homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, crimes de receptação qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de documento público;
- quando há registro de extravio do documento de identidade;
- quando o investigado não apresentava sua identificação civil em 48 horas.
Dessa maneira, a Lei n. 12.037/2009 representou um avanço na proteção do direito trazido pelo inciso LVIII. Ela restringiu a legalidade de identificação criminal para situações fáticas relativas ao documento apresentado e à investigação, desvinculando-a do tipo de crime possivelmente praticado pelo investigado.
O INCISO LVIII E A LEI DE EXECUÇÃO PENAL
A Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal – LEP) estabelece que os condenados com processo transitado em julgado por crimes dolosos com violência grave contra pessoa ou hediondos (conforme a Lei n. 8.072/1990) deverão ser submetidos à identificação criminal de perfil genético, que inclui a extração de DNA para ser armazenada em banco de dados sigiloso.
A LEP estabelece, ainda, que a recusa em se submeter ao procedimento de identificação do perfil genético constituirá falta grave do condenado, que traz consequências para o cumprimento da pena.
Todavia, a Lei n. 12.654/2012 está sob análise do Supremo Tribunal Federal (STF) para confirmação de sua constitucionalidade. A norma, inclusive, é objeto de censura por parte da comunidade jurídica, pela suposta violação ao princípio da não autoincriminação (direito de não ser obrigado a produzir prova contra si).
Nesse sentido, esse debate conecta-se com discussões quanto à obrigatoriedade dos indivíduos a se submeterem a qualquer tipo de identificação criminal quando solicitado pela autoridade policial. Parte da doutrina entende que quando um indivíduo se nega a realizar a identificação criminal, a polícia tem o direito de constrangê-lo, sendo cabível, inclusive, o uso de força moderada.
Outra corrente doutrinária entende que a recusa desse indivíduo constituiria o crime de desobediência, descartando a possibilidade de uso da força. Por fim, uma terceira posição indica que os acusados não poderiam ser obrigados a se submeter à identificação criminal por violação do princípio da não autoincriminação.
CONCLUSÃO
O inciso LVIII do artigo LVIII define que não há necessidade de identificação criminal quando o indivíduo possui identificação civil, salvo em situações determinadas em lei. Afinal, submeter alguém a uma situação de identificação criminal sem necessidade seria injusto do ponto de vista de diversos direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e o direito à intimidade.
Por conta disso, esse dispositivo é de extrema importância para que os cidadãos sejam protegidos legalmente de possíveis repressões por parte do Estado e, também, para a afirmação de direitos e garantias individuais.
- Esse conteúdo foi publicado originalmente em julho/2020 e atualizado em setembro/2023 com objetivo de democratizar o conhecimento jurídico sobre o tema de forma simples para toda população. Para acessar maiores detalhes técnicos sobre o assunto, acesse o Livro do Projeto Artigo Quinto.
Sobre os autores:
Marcelle Fazzato Lopes
Advogada de Aviação do Mattos Filho
Matheus Silveira da Silva
Membro da equipe de Conteúdo do Politize!.
Mariana Mativi
Fontes:
- Instituto Mattos Filho;
- Artigo 5° da Constituição Federal – Senado;
- Identificação Civil – Perícia Oficial do Estado de Alagoas.